segunda-feira, 8 de abril de 2024

FINS E MEIOS DO SERVIÇO PÚBLICO DE ENERGIAS RENOVÁVEIS

Porquê a propriedade pública?

 

Em Portugal, seguindo a lógica do capitalismo, a energia, enquanto corrente elétrica ou enquanto combustível, é uma mercadoria. Como tal, as decisões que determinam o seu percurso, desde a sua produção até à comercialização, têm sido deixadas nas “mãos” do mercado. Isso significa que essas decisões não são tomadas em função das necessidades ambientais e sociais, mas da necessidade de lucratividade e expansão do capital. 

Além da falha em conseguir as reduções necessárias das emissões, a propriedade privada dos meios de produção e distribuição de energia foi também motivo para a subida especulativa dos preços da energia, que levou a um aumento da inflação para níveis que não aconteciam há décadas. Esta subida do custo de vida em geral, que afeta em especial os mais pobres, foi particularmente acentuada em 2022, e os seus efeitos continuam a ser fortemente sentidos. 

Mesmo antes da enorme subida de preços dos últimos anos, na década anterior, entre 2010 e 2020, uma década marcada pela concretização das privatizações da EDP, da GALP e da REN, a conta da eletricidade ao domicílio já tinha subido em 43% em Portugal²⁷. 

Também à escala europeia, a liberalização do sistema energético levou à duplicação dos preços da energia para os consumidores, de 2009 a 2019. A promessa de que a liberalização e a introdução de concorrência resultariam numa diminuição de preços era falsa. Pelo contrário, a liberalização levou a maior concentração da propriedade e a menos e piores empregos no setor²⁸. 

Estes preços elevados de energia, juntamente com a falta de isolamento térmico, têm contribuído para a pobreza energética, que afeta entre 1,8 milhões e 3 milhões de pessoas em Portugal²⁹. Como demonstrado pelas sucessivas condenações aplicadas pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) e pela Autoridade da Concorrência, no atual mercado energético, os consumidores são sucessivamente prejudicados³⁰ ³¹. Além dos consumidores, também os cofres públicos foram lesados pela liberalização do mercado, por exemplo através das “Rendas Excessivas” pagas a empresas de energia³². 

Outro falhanço da forma como a energia é gerida prende-se com os direitos dos trabalhadores, que são muitas vezes deixados em segundo plano face a decisões com base em critérios de lucratividade. Devido a encerramentos, deslocalizações, modernizações ou reconversões industriais, perdem-se postos de trabalho sem quaisquer garantias para os trabalhadores em termos de formação, emprego e perspetivas de futuro. Em Portugal, como apontado por várias iniciativas desta campanha, isto é claro em casos como o do encerramento da Central Termoelétrica de Sines³³, e da refinaria de Matosinhos. 

A energia é um bem essencial para a vida de toda a população. Para que a riqueza, recursos e infraestruturas do setor energético sejam postos ao serviço da sociedade como um todo, é necessário o Estado ter uma presença maior no setor energético e trazer uma nova lógica à forma como a energia é gerida. Para que bens essenciais deixem de estar mercantilizados, é necessário que a sua produção e distribuição sejam planificadas democraticamente. Essa planificação é incompatível com o atual papel reduzido do Estado no setor energético, que resulta num mercado à medida das grandes empresas. 

Quer os donos dessas empresas queiram quer não, face ao modelo económico que lhes é inerente, a lucratividade terá de vir antes de quaisquer outras considerações, incluindo antes do bem-estar das populações e do ambiente. Se não o fizerem, o seu negócio não será suficientemente competitivo para sobreviver no sistema capitalista, e assim as metas que possam ser mandatadas pelo Estado serão incompatíveis com os objetivos de lucro. Não basta ao Estado ter uma maior presença ao legislar objetivos para as empresas privadas. A natureza dos investimentos e a necessária reconfiguração do setor energético não são compatíveis com os objetivos do setor privado. Mesmo que o Estado mandatasse as metas aqui propostas, as empresas privadas seriam incapazes de as concretizar. 

O caso da produção de energia nuclear francesa (plano Messmer) é interessante de analisar. Este é um exemplo de uma mudança no sistema elétrico com vários sucessos, que não só foi conduzido pelo Estado, mas no qual o setor público esteve na frente, em especial através da empresa pública EDF (Électricité de France). Mesmo recentemente, face as dificuldades da EDF em manter a produção, para revitalizar a empresa, o Estado decidiu renacionalizar uma parte da empresa que tinha sido privatizada no início deste século, agora tornando-a de novo pública para poder voltar a cumprir os seus objetivos³⁴. A transição energética que propomos é claramente diferente em vários aspetos, mas a coordenação aqui proposta, tem vários pontos em comum. 

É também necessário que o planeamento abranja a produção de eletricidade ao longo das diversas atividades: a gestão da infraestrutura de transmissão, a produção, o armazenamento e a distribuição. Isto porque, para evitar colapsos na rede, o fornecimento e procura de eletricidade devem ser iguais, em todos os momentos. Este papel de planeamento, coordenação e gestão integrada na ótica de serviço público e segurança energética não pode ser atribuído ao setor privado. Este não tem esta capacidade, o que se traduz em entraves a uma total substuição de energias fósseis por fontes de energias renováveis³⁵. 

A propriedade e o controlo privado dos mais importantes setores económicos vai certamente contribuir para a crescente catástrofe climática. Necessitamos, portanto, duma alternativa quer à propriedade privada quer à economia de mercado. Uma reforma do mercado não é suficiente, os desafios que enfrentamos e o carácter essencial da energia exigem um modelo de desenvolvimento completamente alternativo, planificado e fora da esfera dos mercados. 

 

Transcrito de: Relatório Empoderar o Futuro - Serviço Público de Energias Renováveis

Em: https://www.empregos-clima.pt/wp-content/uploads/2023/09/relatorioSITE.pdf