quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Consumo diário de carne e alimentos processados ligado à doença de Alzheimer


O consumo diário de carne e de alimentos transformados está fortemente ligado à doença de Alzheimer.
De  Verónica Romano

Um novo estudo descobriu que os doentes diagnosticados com Alzheimer tendem a comer regularmente carne e alimentos processados.

O consumo diário de alimentos à base de carne e processados está ligado ao desenvolvimento da doença de Alzheimer, de acordo com um novo estudo.

Os investigadores da Universidade de Bond, na Austrália, acreditam ter encontrado uma forte associação entre a doença degenerativa do cérebro e o consumo destes alimentos, depois de estudarem 438 pessoas.

Dos participantes no estudo, 108 tinham a doença de Alzheimer e 330 pertenciam a um grupo de controlo.

As pessoas diagnosticadas com a doença neurológica comiam regularmente alimentos processados, como empadas de carne, salsichas, fiambre, piza e hambúrgueres, segundo os investigadores.

As suas dietas consistiam também em menos frutas e legumes, enquanto o consumo de vinho era comparativamente mais baixo do que no grupo de controlo.

Uma questão de família

Tahera Ahmed, a principal autora do estudo, tem uma ligação pessoal a esta investigação. Ela tinha uma avó e uma tia que sofriam de Alzheimer.

"Infelizmente, não o sabíamos na altura. Pensávamos que era apenas um problema de demência devido à idade avançada", afirmou Ahmed num comunicado publicado pela Bond University.

"Quando comecei a minha investigação sobre a doença de Alzheimer, apercebi-me de que a minha avó tinha todos os sintomas".

Kuldeep Kumar, que também participou na investigação, perdeu o pai com a doença.

Ahmed espera que a sua investigação leve os jovens a adotar hábitos alimentares mais saudáveis para proteger o cérebro.

"É essencial sensibilizar os jovens para os benefícios do consumo de folhas verdes, alimentos orgânicos ou refeições caseiras, em vez de se entregarem regularmente a alimentos de plástico ou processados", acrescentou.

Estudos anteriores também encontraram ligações entre dietas ricas em carne e a doença de Alzheimer.

Um estudo publicado no ano passado no Journal of Alzheimer's Disease concluiu que os factores de risco de demência incluem um maior consumo de gorduras saturadas e carnes, bem como de alimentos processados e ultraprocessados.

A doença de Alzheimer é uma doença fatal para a qual não existe atualmente tratamento ou cura. É a forma mais comum de demência, que se pensa ser responsável por mais de 50 por cento dos casos.

De acordo com a ONG Alzheimer Europe, mais de 7,8 milhões de cidadãos da UE viviam com demência em 2018.

Em: https://pt.euronews.com/saude/2024/02/09/consumo...

CIENTISTAS ASSOCIAM ALIMENTOS ULTRAPROCESSADOS A 32 PROBLEMAS DE SAÚDE: estes alimentos estão consistentemente associados a um maior risco de doenças crónicas.


Alimentos ultra-processados
De  Euronews

Nova pesquisa encontrou ligações diretas entre os alimentos ultraprocessados e os maus resultados para a saúde.

Os alimentos ultraprocessados estão associados a 32 efeitos adversos para a saúde, incluindo doenças cardiovasculares, cancros e diabetes tipo 2.

É o que revela um novo estudo de grande dimensão publicado no British Medical Journal (BMJ), que vem juntar-se à crescente investigação sobre os malefícios dos alimentos que incluem normalmente cinco ou mais ingredientes e vários aditivos.

Os alimentos ultraprocessados mais comuns incluem gelados, batatas fritas, cereais de pequeno-almoço, iogurtes aromatizados e bolachas, de acordo com a British Heart Association.

Uma equipa internacional de investigadores da Austrália, EUA, França e Irlanda contribuiu para a revisão de 45 análises que incluíram uma população total de 9,8 milhões de participantes.

"Esta é uma revisão importante que nos fornece dados recentes de alto nível que apelam a uma discussão política clara e, em última análise, a ações que tornem claro para a população quais os alimentos que são ultraprocessados e prejudiciais para a saúde", afirmou Amelia Lake, professora de nutrição em saúde pública na Universidade de Teesside, que não esteve envolvida no estudo, num comunicado.

"Este é um debate vivo e animado, mas temos um conhecimento sólido sobre os efeitos nocivos das dietas ricas em gordura, açúcar e sal para a nossa saúde.

"Trata-se de uma investigação de boa qualidade que reúne provas recentes (no período de três anos). Existem sempre questões relacionadas com a forma como os dados dietéticos são recolhidos, mas os autores reviram as provas e classificaram a sua qualidade", acrescentou.

Nocivo para a maioria, se não para todos os sistemas do corpo

Num editorial associado, Carlos Monteiro, professor da Universidade de São Paulo, no Brasil, escreveu que os autores descobriram que "as dietas ricas em alimentos ultraprocessados podem ser prejudiciais para a maioria dos sistemas do corpo - talvez todos".

Acrescentou que estes alimentos não são "meramente modificados", mas incluem frequentemente "ingredientes baratos manipulados quimicamente", tais como amidos, açúcares e gorduras modificados, com poucos alimentos integrais.

"Não existe qualquer razão para acreditar que o ser humano se possa adaptar totalmente a estes produtos. O organismo pode reagir a eles como inúteis ou nocivos, e os seus sistemas podem ficar comprometidos ou danificados, dependendo da sua vulnerabilidade e da quantidade de alimentos ultraprocessados consumidos", acrescentou Monteiro.

Segundo os autores, estes alimentos estão a fazer cada vez mais parte das dietas a nível mundial, representando mais de metade da ingestão calórica diária nos EUA e no Reino Unido.

"Observamos que a tendência consistente que liga os alimentos ultraprocessados a maus resultados em termos de saúde é suficiente para justificar o desenvolvimento e a avaliação de políticas governamentais e estratégias de saúde pública destinadas a visar e reduzir a exposição alimentar a alimentos ultraprocessados", disse Melissa Lane, a principal autora do estudo da Universidade de Deakin, numa publicação nas redes sociais.

Os investigadores também avaliaram a credibilidade das provas das análises.

Concluíram que as provas mais fortes revelavam ligações diretas entre o consumo de alimentos ultraprocessados e um maior risco de morte, mortalidade relacionada com doenças cardiovasculares, problemas de saúde mental, obesidade e diabetes tipo 2.

Afirmaram que são necessários mais ensaios clínicos aleatórios para determinar a causalidade, referindo que existem várias limitações a este tipo de revisão global.

A inclusão de pesquisas com diferentes métodos de avaliação da dieta, por exemplo, leva a "um inevitável viés de medição".

Os autores salientaram também que alguns alimentos ultraprocessados podem apresentar um risco mais elevado do que outros, mas afirmaram que, em geral, estes alimentos estão consistentemente associados a um maior risco de doenças crónicas.

 

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

DIZER "NÃO" À EXPANSÃO ENERGÉTICA DA MODERNIDADE CAPITALISTA: mobilizações e alternativas a partir das montanhas do Barroso


Mariana Riquito, doutoranda em Ciências Sociais no Instituto para Investigação em Ciências Sociais da Universidade de Amsterdão. Investigadora Júnior no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Ecofeminista. Acredita que outros mundos, mais justos, são possíveis.

Fotografias: Mariana Riquito, João Veloso e de autor/a desconhecido

Tempo médio de leitura: 38 minutos

Iluminada pela lua cheia, caminho por entre os carvalhais, que me guiam até ao Olhar do Guerreiro. Chegada ao miradouro altaneiro, sento-me numa pedra milenar e inspiro a beleza imponente das montanhas barrosãs. As ondulantes serras envolvem-se numa mística bruma, aclarada pontualmente pelos reflexos da lua farta. O céu noturno, habitualmente coberto por um ímpar espetáculo astral, torna-se, em noites como esta, súbdito do reino da lua. Ainda não estou totalmente confortável: embora este me seja um lugar familiar, a noite e a solidão ativam sentimentos de medo. Atento no espaço; procuro enraizar-me nele; acordo os meus sentidos; desperto o meu corpo animal. Ouço o vento que levemente acaricia os galhos das árvores e distingo as silhuetas sombrias da vegetação. Escuto o silêncio das pedras e imagino as vastas redes miceliais que me suportam. Sinto o corpo da terra — o vento, ora macio, ora transtornado; os pássaros, que retornam tímidos ao seu poiso; as árvores, que misteriosamente parecem comunicar. A montanha, casa para tantos seres, está viva.

Generosa como é, abre-me as suas portas, acolhendo-me na sua ecologia de existências. Do alemão Ökologie — junção dos termos gregos, oikos, que significa “casa”, com logos, “estudo” —, o termo “ecologia”, etimologicamente, designa a ‘terra’ como ‘casa’. Implicitamente, pois, convida-nos a estimar a Terra como estimamos a nossa casa. Recuperar a raiz do termo relembra-nos das nossas responsabilidades acrescidas: uma casa ama-se e cuida-se, pois nela nos abrigamos e nos aconchegamos.

Ora, a Terra, nosso lar comum, tem, nos últimos anos, emitido sinais preocupantes: chamas que consomem florestas ancestrais; secas que queimam culturas inteiras; ondas de calor que derretem até os territórios mais gelados; chuvas torrenciais que desalojam milhares de pessoas ou forçam outras tantas a migrar; ventos que matam seres vivos e arrasam infraestruturas. Estes gritos são o resultado de uma relação profundamente violenta e descuidada para com a nossa casa — proveniente de uma narrativa hegemónica que se baseia na suposta separação entre ‘Natureza’ e ‘Cultura’, e legitima o domínio de uma sobre a outra. Particularmente desde a Revolução Industrial que o “progresso” e o “desenvolvimento” das sociedades modernas se têm baseado na exploração, exaustão e extenuação massivas do planeta. Em prol do crescimento económico infinito e do desenvolvimento industrial-tecnológico, justificou-se o consumo de energias altamente poluidoras, a extração massiva de recursos, o desgaste intensivo dos solos, o uso de agrotóxicos, a destruição de ecossistemas inteiros, ou ainda a desumanização e sobre-exploração de corpos-territórios construídos como “inferiores”. Os atuais níveis de degradação socioecológica são, pois, consequência de uma narrativa sobre o mundo e de um sistema socioeconómico hegemónicos, que converteram a nossa casa-Terra num mero ‘recurso’ a ser explorado.

Longe de autoimplodir pelas suas contradições internas, o capitalismo tem vindo a reconfigurar-se, procurando, em permanência, a criação de novos mecanismos de acumulação de capital. O sistema capitalista — cuja perpetuação e expansão dependem da mercantilização de bens previamente não mercantilizados — tem vindo a demonstrar uma grande capacidade de adaptação: parece não haver limites para a superexploração e o hiperconsumo. O ‘clima’, a ‘biodiversidade’, a ‘energia renovável’, a ‘sustentabilidade’, o ‘carbono’ constituem-se agora como oportunidades lucrativas para os mercados. Muitas das políticas, instrumentos e iniciativas que procuram “dar resposta” aos desafios ecológicos e climáticos, ao invés de questionarem as estruturas hegemónicas, acabam por reproduzir o extrativismo, o produtivismo e o expansionismo económico, aumentando — e potencialmente acelerando — os níveis de degradação socioecológica que pretendem combater.

Resistindo à expansão capitalista “verde” desde as montanhas barrosãs

“Lítio? Nós nem nunca tínhamos ouvido falar do lítio!”. “Para mim, o lítio era só um elemento na tabela periódica”. O lítio, um ator-chave desta história, chegou de forma camuflada às aldeias de Covas do Barroso, Muro e Romainho. Contam-me que, em 2017, “a companhia [Savannah Resources] chegou aqui e disse que estava apenas a fazer algumas prospeções… Quando questionados para o que era, nem eles sabiam o que era! (…) E, claro…. Eles diziam que já tinham uma licença, uma autorização do governo”. Na altura, as autoridades locais e alguns particulares autorizaram a realização de trabalhos de prospeção mineira nos seus terrenos, pois “ninguém tinha noção do que eles queriam fazer, da dimensão do projeto”. Ademais, visto que já havia “um contrato de exploração mineira desde 2006 e não tinha havido praticamente exploração nenhuma, o que as pessoas pensaram foi do género: só querem fazer mais prospeções, ok…”. Foi apenas quando uma pessoa local emigrada leu num jornal internacional uma notícia sobre “a sua pequenina aldeia” que soaram os alertas: a notícia dizia que, ali, em Covas do Barroso, estaria localizada a maior mina de lítio a céu aberto da Europa.

“Alto lá!” — gritaram algumas locais.

Quiseram saber “o que realmente se estava a passar, o que é que a empresa realmente pretendia”. Começaram a reunir informações e a juntar as peças do puzzle: em 2006, o Estado português assinou um contrato de exploração de quartzo e feldspato denominado “Mina do Barroso” com a empresa Saibrais – Areias e Caulinos, para uma área de 120 hectares. É este o tal contrato de exploração que existia e era conhecido das pessoas, mas que nunca esteve realmente em funcionamento. Em 2008, a Saibrais alterou a sua denominação para Imerys Ceramics Portugal, tendo esta celebrado um novo Contrato de Prospeção e Pesquisa na zona envolvente à área de concessão. A 23 de junho de 2016, o Estado assina uma Adenda a este contrato, alargando a área de exploração para 548 hectares e adicionando o mineral lítio. Em 2017, estes direitos de concessão foram transmitidos à empresa Splistream Resources, uma joint venture entre a Savannah Resources e a Splistream Resources Investment, constituída especificamente para explorar o projeto de lítio da “Mina do Barroso”. Por outras palavras: um projeto de exploração de quartzo e feldspato em 120 hectares é transformado, através de uma adenda, num projeto de exploração de lítio em 548 hectares.

Reunir as peças deste complicado puzzle apenas foi possível graças à organização popular: em dezembro de 2018, criou-se a Associação Unidos em Defesa de Covas do Barroso (UDCB). A UDCB tem sido, desde então, uma atriz-chave nesta luta. Na altura, graças à sua organização, as pessoas conseguiram não só travar as prospeções como também exigir uma compensação monetária à empresa pelos danos ambientais que causou durante a realização das sondagens de prospeção. Ainda assim, e de acordo com a empresa, foram efetuadas 135 perfurações entre 2017 e 2018. A empresa nunca “restaurou” as terras afetadas: ao caminharmos hoje pelos montes, podemos ainda ver e sentir essas feridas abertas no corpo da Terra — extensas áreas de solo terraplanadas e tubos de plástico que perfuram até às veias do rio.

Embora a contestação popular tenha crescido e as prospeções tenham sido travadas, a empresa continuou com a sua estratégia de penetração nas aldeias. Em 2018, as eleições para o Conselho Diretivo dos Baldios de Covas do Barroso foram particularmente participadas e agitadas: houve duas listas candidatas, sendo que uma delas era encabeçada por pessoas que trabalhavam para a empresa. Ganhou a lista concorrente. Mal tomou posse, a nova Direção organizou uma Assembleia de Compartes para consultar as populações: a larga maioria manifestou-se contra. Os Baldios de Covas do Barroso são, desde então, um outro ator-chave nesta luta. Dos quase 600 hectares previstos para o projeto mineiro, mais de metade estariam localizados em terrenos baldios. Os baldios são um tipo de propriedade de cariz especificamente comunitária, cuja administração, posse e gestão são da responsabilidade dos compartes1. Pela sua especificidade, os baldios não podem ser vendidos nem penhorados, pelo que, para realizar o projeto, a empresa teria de chegar a um acordo com a comunidade. Sem acordo, só a violência da expropriação estatal permitiria o início do projeto.

1Segundo o artigo n.º 7 da Lei dos Baldios: são compartes todas/os as/os cidadãs/os com residência na área onde se situam os correspondentes imóveis, no respeito pelos usos e costumes reconhecidos pelas Comunidades Locais, podendo também ser atribuída pela Assembleia de Compartes a qualidade de compartes a cidadãs/os não residentes.

Em junho de 2020, a Savannah Resources apresenta um Estudo de Impacte Ambiental (EIA) para a Ampliação da Mina do Barroso, que prevê o alargamento da área de concessão até 593 hectares. Este foi inicialmente declarado “não conforme” pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Em dezembro de 2020, apesar dos documentos adicionais facultados pela empresa, a APA continuou a declarar o EIA “não conforme”. Perante isto, em janeiro de 2021, e à luz das leis que promovem o direito de acesso a documentos administrativos, a ONG galega, Fundação Montescola, faz um pedido formal à APA para ter acesso a todos os documentos relativos ao contrato da “Mina do Barroso”, incluindo o EIA entregue pela Savannah. A APA ignora este pedido. Em março de 2021, a Comissão Portuguesa de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) emitiu um parecer definitivo que determinava que a APA fornecesse os documentos em 10 dias. Ainda assim, a APA ignorou este pedido e não facultou os documentos. Por isso mesmo, em abril de 2021, a Fundação Montescola avançou com uma ação judicial contra o Ministério do Ambiente para aceder à documentação relativa ao contrato “Mina do Barroso”. Ao invés de fornecer os documentos exigidos, a APA disponibiliza o EIA para consulta pública. Entre 22 de abril e 16 de julho de 2021, o EIA relativo ao projeto de “Ampliação da Mina do Barroso” recebeu 168 participações, sendo que apenas 7 manifestaram a sua “concordância”.

Após um ano de espera, em julho de 2022, o projeto recebeu um parecer “não favorável” por parte da Comissão de Avaliação da APA. Contudo, ao abrigo do artigo 16.º do regime jurídico de Avaliação de Impacte Ambiental, foi dada à empresa mais uma oportunidade para reformular o seu projeto. A empresa anunciou, assim, que iria ter mais seis meses para “colaborar” com a APA no sentido de “otimizar” o projeto. Em março de 2023, a Savannah Resources entregou o EIA referente às Alterações ao Projeto de Ampliação da Mina do Barroso. Este EIA reformulado esteve em consulta pública entre 22 de março e 19 de abril de 2023. A APA contou uma participação recorde de 916 participações, sendo 894 provenientes de cidadãos — dos quais apenas 15 concordaram com o projeto.

Pese embora a forte contestação popular, a 31 de maio de 2023, a APA emitiu uma Declaração de Impacte Ambiental (DIA) condicional favorável a este projeto. A empresa espera assim receber a Licença Ambiental em 2024.

O objetivo do projeto da Savannah Resources é a produção de concentrado de espodumena a partir da extração de rocha. O projeto contempla uma área total de 593 hectares, sendo que a exploração mineira ocuparia entre 348 e 476 hectares, divida por 4 cortas. O termo “cortas” remete diretamente para a violência aplicada às montanhas: as montanhas e as suas existências são cortadas, esventradas, arrasadas. Embora o projeto preveja um tempo de funcionamento das minas de apenas 12 anos, à escala do tempo geológico, os seus efeitos far-se-ão sentir duradouramente, deixando cicatrizes incontornáveis na paisagem. Essas cortas — algumas com 100 metros de profundidade — estariam situadas a escassos metros das aldeias circundantes: a aldeia de Romainho estaria localizada a apenas 200 metros da área de concessão e a 500 metros da área de escavação da maior corta; Covas do Barroso a apenas 750. Para além das 4 minas a céu aberto, o projeto contempla ainda a construção de uma unidade de processamento (lavaria), instalações de resíduos (escombreiras de rejeitos), estruturas de gestão de águas, novas estradas, o desvio de uma linha elétrica existente e a construção de uma nova.

O projeto mineiro prevê o desmonte das montanhas, através de explosões diárias. As toneladas de rocha explodidas

desmontadas

cortadas

dizimadas

arrasadas

seriam depois transportadas por pás carregadoras ou escavadoras giratórias para dumpers.
A mineralização bruta para a lavaria.                                      O “estéril” para a escombreira.

 

 

Na lavaria, a rocha extraída seria “processada”,
isto é,
triturada
e depois moída

a rocha
agora pó
seguiria para os “processos de separação”,
dependentes de litros e litros e litros e litros e litros e litros e litros e litros e litros de água
que separariam

a espodumena                                                                                                                                                                         da rocha hospedeira.

 

a labutar 24h/dia,

a lavaria processaria

1 tonelada de rocha
para extrair 6% de espodumena
o resto
o lixo
o estéril
segue para as escombreiras

Na escombreira, os “resíduos” “rejeitados” e “estéreis” seriam
em
pi
lha
dos.

cento
e
quarenta
metros
de
altura
de
rejeitos

a menos de 1 quilómetro do rio Covas

por ano
a taxa
de produção de rejeitados
chegaria a 1,5 milhão de toneladas

Poderíamos continuar a elencar muitos dos outros impactos ambientais, ecológicos, climatéricos, sociais e humanos negativos muito significativos — e até irreversíveis — deste projeto, identificados tanto pela APA como por especialistas independentes. Apesar disso, a APA aceitou-o.

 

“O lítio é um mineral que tem um papel central em toda a agenda da transição energética e descarbonização da economia (…). O recurso lítio revela-se muito importante para o cumprimento das metas da neutralidade carbónica (…). O lítio é um mineral metálico imprescindível para a vida moderna em sociedade, tal como reconhece a Comissão Europeia, na sua Raw Materials Iniciative”.

 

Voilà o “enquadramento” e “justificação” dados pelo Parecer da Comissão de Avaliação da APA para aprovar, ainda que condicionalmente, este projeto. A mercantilização, comodificação e consequente extração da Natureza; a despossessão e expropriação de terras agrárias; a erradicação de práticas culturais ancestrais são justificadas em nome de um bem superior e de uma necessidade absoluta: a descarbonização.

Com características e práticas únicas em termos agrícolas, humanos, culturais, sociais, geográficos e ambientais, o Barroso é a única região em Portugal — e uma das poucas na Europa — a ser classificada como Património Agrícola Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). O parecer emitido pela Comissão de Avaliação da APA admite que este prestigiante selo é “incompatível” com o projeto mineiro da Savannah Resources.

Não é só esta empresa britânica que tem planos extrativistas para as montanhas barrosãs: há, no total, 8 contratos de exploração mineira assinados na região do Barroso, incluindo o projeto da portuguesa LusoRecursos, no concelho de Montalegre, que também recebeu uma DIA Condicional Favorável a 7 de setembro de 2023. Contudo, pela dimensão do projeto da Savannah, o epicentro desta corrida ao lítio português são, sem dúvida, as aldeias de Covas do Barroso, Muro e Romainho e são também elas o ponto nevrálgico da resistência à mineração dita “verde” e de oposição às atuais políticas de descarbonização.

Ao longo dos últimos seis anos, estas populações e as suas montanhas têm resistido firmemente, formando associações e coletivos; participando em assembleias municipais; organizando-se em assembleias de compartes; criando canais de comunicação e de partilha de informação; elaborando mapas e relatórios; organizando manifestações e protestos; participando em eventos académicos e culturais; escrevendo e falando para várias plataformas mediáticas e académicas; mobilizando centenas de pessoas para participar nas consultas públicas; agindo judicial e legalmente em todas as fases dos processos administrativos; organizando acampamentos e residências artísticas; levando a cabo ações de bloqueio e boicote a representantes estatais; bloqueando máquinas e impedindo a empresa de avançar no terreno.

As populações do Barroso sabem que esta luta não é (só) uma luta local, e sabem que não estão sozinhas. Desde o início têm procurado tecer redes com pessoas, territórios e lutas além-fronteiras, como é o caso da vizinha Galiza, da mais distante Sérvia, ou do Chile longínquo. Todos os verões, centenas de pessoas viajam até Covas do Barroso, vindas de todos os pontos do mundo, para o Acampamento em Defesa do Barroso. Esta primavera, todos os caminhos darão rumo ao Barroso uma vez mais: aqui, entre os dias 5 e 7 de abril de 2024, organizar-se-á o 9.º Encontro pela Justiça Climática.

O ‘Barroso’ viaja e multiplica-se, tornando-se já num símbolo da resistência e das tensões suscitadas pelas políticas atuais da dita “transição energética”. Aqui, desmascara-se a tripla falácia da narrativa hegemónica: “isto não representa nem uma ‘transição’, nem é ‘verde’, nem é ‘socialmente justa’”. Não é uma ‘transição’ porque as energias ditas renováveis dependem todas de combustíveis fósseis e da extração de recursos; não é ‘verde’ porque está a promover práticas ecologicamente destrutivas; e não é ‘justa’ porque ignora e sacrifica comunidades inteiras. As comunidades barrosãs, que se vêem ameaçadas diretamente por um mega-projeto extrativista, são um exemplo de lutas de base por justiça social, ambiental, climática e ecológica.

Mesmo perante toda a resistência das pessoas locais e das suas companheiras além-montes, a empresa, com a conivência do Estado, tem continuado a tentar penetrar neste território, por forma a obter a Licença Social para Operar (LSO). Obter a LSO significa, na prática, conseguir a aceitação das partes interessadas, nomeadamente de quem se opõe aos projetos, bem como do público em geral. Há uns anos, ofereceram um Bolo Rei às pessoas locais por ocasião do Natal. Como os locais não são tolos, não se compraram com bolos. A empresa passou então a um segundo nível: aproximou-se das pessoas mais vulneráveis economicamente, oferecendo-lhes apoios materiais, assim como das famílias mais influentes, ganhando, assim, legitimidade e acessos sociais na região. Começou a comprar terrenos a um preço bem acima da média do mercado e a espalhar as suas newsletters nas quais promete mundos e fundos e se apresenta como uma empresa próxima da comunidade.

Mais recentemente, com uma DIA em mãos, e ao entender que estas estratégias não desmobilizaram a resistência, a empresa e o Estado subiram de patamar: desde o mês de outubro, há uma patrulha da GNR destacada para vigiar Covas do Barroso diariamente, há máquinas a laborar praticamente todos os dias dentro da área de concessão mineira, e há uma empresa de segurança privada a vigiar o local dia e noite. Estando a Savannah obrigada a cumprir com certas condições impostas pela APA, contratou uma empresa de psicólogos sociais para efetuar mais um estudo de impacte social sobre o projeto — pese embora as vozes firmes de parte da comunidade local que gritam um contundente “não” desde o início. Para além de medir o impacte social, a empresa tem também de realizar mais sondagens de prospeção — muito embora se afirme que, aqui, há lítio suficiente para alimentar parte das necessidades europeias, a verdade é que, a este ponto, isso é (ainda) especulação. Para tal, a empresa tentou, no mês de novembro, entrar para uma parcela de terreno que, alegam as pessoas locais, não lhe pertence, e que se encontra, inclusive, em processo de litígio nos tribunais. Desde 16 de novembro de 2023 que os locais vigiam e protegem este terreno, impedindo, todos os dias, a máquina de laborar e abrir novas feridas no corpo da Terra. À resistência legal, soma-se agora a ação direta, apoiada na legitimidade popular.

Construindo alternativas sociológicas a partir das montanhas barrosãs

Nos últimos anos, as montanhas do Barroso têm sido palco de experimentações: o governo e a empresa ensaiam megaprojetos capitalistas e extrativistas, ao mesmo tempo que as populações ensaiam práticas que escapam e resistem a estas lógicas hegemónicas. Aqui, onde a serra encontra o rio, subsistem muitas práticas que ainda não foram devoradas pela máquina totalizante da modernidade capitalista. Aqui, onde o céu encontra a terra, vislumbram-se já possibilidades de mundos mais lentos, colaborativos, comunitários e cuidadosos. Aqui, onde a nascente encontra o rio, existem narrativas e práticas socioecológicas outras que as da expansão energética.

 

A terra, a água e o pão: apontamentos sobre a gestão dos comuns no Barroso

Para chegar a Covas do Barroso, é preciso atravessar estradas sinuosas que parecem engolir-nos a cada nova curva. Até há poucas décadas, estas não existiam; só as serras banhavam a vista. Protegida a Norte pela Serra da Sombra e a Sul pela Serra do Pinheiro, Covas recebe este nome por estar localizada no sopé das montanhas, parecendo, vista de cima, uma cova. Rodeada pelas serras, é delas que os e as habitantes de Covas do Barroso historicamente retiram o seu sustento. Atualmente, cerca de 2.000 hectares destas serras são baldios.

As terras comunitárias são utilizadas principalmente para projetos florestais; para o cultivo agrícola ou o pastoreio; para a recolha de madeira ou de pedras para a construção de casas; a caça; a recolha de lenha para aquecer as casas; a recolha de mato para fertilizar a terra ou para fazer a cama dos animais; ou ainda para a produção de mel. Os baldios representam uma forma ancestral de gestão e uso comunitário da terra que tem, historicamente, garantido a autonomia dos povos serranos. Este sistema tem promove uma gestão sustentável, comunitária e democrática do uso da terra. Nas palavras do sociólogo Pedro Hespanha, os baldios são um “repositório da experiência de cooperação acumulada ao longo de gerações, (…) [uma] escola de aprendizagem de cooperação e de autogestão democrática”. Isto porque as decisões sobre os usos dos baldios são tomadas na Assembleia de Compartes, um espaço de decisão que promove uma cidadania ativa, engajada, direta, onde é dado espaço a quem conhece e vive da terra para sobre ela decidir.

Mas não só a terra é gerida de forma comunitária: no Barroso, também a água está nas mãos da comunidade. O sistema de regadio tradicional constitui uma outra forma de organização comunitária ancestral, que reflete uma gestão sustentável e democrática dos recursos comuns das montanhas. Durante os meses invernais, a abundância de água dispensa partilhas: qualquer um/a pode ‘tornar’ a água ao ritmo desejado. Durante os meses estivais, mais secos, a água tem de ser partilhada. A água de verão é repartida equitativamente entre todos os terrenos, segundo convenções seculares, em que o tempo é ritmado pelo sol e as suas sombras. A abertura das comportas que encaminham a água para os terrenos depende de relógios do sol, cujas marcações assentam em pedras milenares. Ao ritmo do Sol Quente ou da Última Estrela Pintada, abrem-se as comportas pelas quais flui a água que mantém vivas as terras, as hortas e os lameiros. Em Covas do Barroso, os direitos consuetudinários da “água do povo” são transmitidos oralmente, de geração em geração, desde há pelo menos três séculos. Este sistema, simbolicamente apelidado “torna da água”, mostra bem como a água é considerada um bem comum, cuja gestão comunitária garante o seu uso parcimonioso e responsável.

Em Covas do Barroso, Muro e Romainho, também o pão é um símbolo do comunitarismo destas terras, como escrevia outrora Miguel Torga, numa das suas passagens por estas aldeias. Embora a prática de cozer o pão no forno comunitário tenha diminuído drasticamente com a emigração massiva e o envelhecimento da população, este ainda é aceso regularmente por algumas mulheres que vão alimentando a sua chama. O forno comunitário é simultaneamente porto-abrigo, mantendo as suas portas abertas para acolher quem por bem vier; e porto-abastecedor, mantendo as suas cosedeiras intactas para quem as quiser acender. O pão, cosido lentamente nas pedras do forno comunitário, é por todos distribuído, durante as festividades das aldeias, ou ainda durante os casamentos e funerais.

O comunitarismo foi precisamente reconhecido pela FAO como “um dos valores e costumes mais típicos do Barroso” e uma “forma de organização rural”. Todas estas práticas, valores e saberes estão, de facto, enraizados no território barrosão, desenhando, assim, um retrato vivo da resiliente ancestralidade destas comunidades serranas. Este sistema de práticas e crenças comunitárias parece escapar à gramática hegemónica sobre o território, oferecendo-nos, assim, práticas e narrativas alternativas às do modelo decisório centralizado, que favorece os Estados e o capital, que replica o individualismo, a competição e a concentração da riqueza. Não é de estranhar, pois, que os baldios e as águas sejam os bens mais cobiçados pelo projeto de mineração da Savannah.

 

Tecendo redes de cuidados entre diferentes seres

Nas aldeias transmontanas do Barroso, a agricultura de subsistência cria uma proximidade muito grande entre as pessoas, os animais, as plantas, os micróbios, as águas, as terras. Essa proximidade favorece a intimidade entre as pessoas e os seus ecossistemas, permitindo uma harmonia entre as práticas sociais e económicas e as suas realidades ambientais e ecológicas. Respeitando os ritmos da Terra, as populações barrosãs têm cuidado e zelado pelo seu território, moldando-se e adaptando-se a ele, numa dança que não atropela os ciclos de vida. Foram estas práticas de cuidado entre seres humanos e o seu meio que levaram a FAO a reconhecer o “importante número de áreas ambientais muito significativas e relativamente intactas encontradas nesta região” que albergam “numerosas espécies vegetais e animais que são extremamente importantes para a conservação da natureza”.

Conclusões

Ao lusco-fusco, o azul do céu tinge-se de rosa e cobre os verdes campos. A mistura onírica de cores é pontilhada pelo voo dos pássaros, que, em bando, retornam aos seus ninhos, oferecendo um adeus suave ao dia. Enquanto o sol se despede dos montes, já a lua sorri, alta. Olho-a. A luz da lua diurna — essa luz que não encandeia, que tranquiliza e instiga — dará em breve lugar à noite. Voltarei ao Olhar do Guerreiro. Lembrar-me-ei que o meu corpo se sente confortável na presença das sombras. Afinal, estou em casa.

O medo
transforma-se em amor

É este amor pela terra que urge resgatar nos debates e práticas contemporâneas sobre justiça socioecológica. Quando começamos a sentir a profunda interligação entre comunidades, espécies e ecossistemas, passamos a olhar de uma forma diferente para os desafios socioecológicos. Quando sentimos as montanhas, passamos a sentir que a sua destruição poderá afetar o ciclo da água a milhares de quilómetros de distância, poderá destruir os longos quilómetros de redes de micélios, poderá quebrar as redes alimentares de vários animais. Quando sentimos as montanhas, sentimos que os danos que infligimos à Terra são danos que infligimos à nossa casa e, consequentemente, a nós próprias. Quando sentimos as montanhas, amamo-las e defendemo-las, jamais as esventraremos em nome de uma suposta “descarbonização”. Recuperar a gramática e a prática do cuidado e do amor, reconhecendo que é assim que a vida na Terra é mantida, é, por isso, um ato radical na busca por alternativas socioecológicas, face a um mundo emaranhado de catástrofes e medos.

 
 

Artigo originalmente publicado em: https://outraseconomias.pt

domingo, 25 de fevereiro de 2024

JP SIMÕES CANTA JOSÉ MÁRIO BRANCO

JP Simões canta José Mário Branco 

JP Simões canta José Mário Branco é um disco de homenagem a José Mário Branco, nascido no Porto, mas cidadão Universal, que continua mais vivo que morto, uma das  personalidades que mais marcaram a música portuguesa desde a década de 1960, como cantor, autor,  compositor, arranjador e produtor musical, e que nos deixou em 2019. 

Mas, como insere neste disco a canção "Mudam-se os tempos, Mudam-se as Vontades", do álbum do mesmo nome gravado em Paris em 1971 - onde José Mário Branco se encontrava exilado - com poema de Luís de Camões musicado e interpretado por José Mário Branco, JP Simões também está a homenagear Luís Vaz de Camões, já que celebramos este ano os quinhentos anos do seu nascimento. 

Todas as pessoas que oiçam e divulguem este trabalho,  estão a homenagear três dignos autores, criadores, interpretes e cidadãos Universais. De um mundo livre, igualitário, solidário e fraterno, onde a justiça seja lei e a harmonia entre os povos seja real e efectiva quotidianamente, sem donos nem senhores da guerra, declarada ou encapotada.  

Contando com a preciosa contribuição de Nuno Ferreira (guitarra e voz), Pedro Pinto (contrabaixo),  Ruca Rebordão (percussão) e Márcio Pinto (marimba e electrónica), o disco será editado pela editora  Omnichord Records no primeiro trimestre de 2024, ano em que se comemoram os 50 anos do 25 de  Abril de 1974. 

Por apropriação profissional, creio que comecei a sentir-me cada vez mais próximo da música de José  Mário Branco à medida que a fui tocando e cantando, sempre que a oportunidade surgia. Como se a  espessura ética e poética das suas canções fosse progressivamente ocupando e fortalecendo um lugar  onde antes havia insegurança e incerteza, à medida que as fui cantando e cantando e acreditando cada  vez mais no que cantava. 

Depois de uma muito considerável quantidade de concertos centrados no seu trabalho, que foram  afinando essa proximidade, surgiu um convite para - porque não? - fazer um registo que lhe fosse  inteiramente dedicado. É uma voz agora oportuna e necessária a de José Mário Branco? É pungente e  transborda beleza e coragem? Sem dúvida. E aqui estamos. E o mais intrigante para mim é lançar um  disco onde pela primeira vez sou exclusivamente intérprete das canções de outra pessoa e sentir que é  talvez o disco mais íntimo que alguma vez produzi. Cabe-me agradecer ao autor este privilégio de me  sentir mais completo e menos só, na casa que ele construiu para todos". JP Simões


AJUDE O PAI DA BÉBÉ LUSO-PALESTINIANA SOBREVIVENTE A 3 BOMBARDEAMENTOS EM GAZA

Campanha para travar o despejo do pai da bébé luso-palestiniana que sobreviveu a 3 bombardeamentos em Gaza e impedir a sua ida para uma instituição e a separação familiar

Ahmed Ashour é o pai da bébé luso-palestiniana com pouco mais de 1 ano que sobreviveu miraculosamente a 3 bombardeamentos diferentes em Gaza e em que morreram praticamente todos os familiares e que está desde o final de novembro em Portugal com o seu único familiar direto sobrevivente, o seu pai.

Ahmed, também luso-palestiniano, encontra-se em Portugal há 10 anos, veio para estudar, por cá tem trabalhado e fez deste país o seu. A mulher e filhos tinham ido uns meses antes para Gaza, não prevendo a escalada grave que se seguiu, por necessidade de terapias específicas para um filho com necessidades especiais que em Portugal se tornavam incomportáveis enquanto aguardava em Portugal a reunificação familiar.

Nos bombardeamentos a Gaza em meados de novembro, Ahmed perdeu os dois filhos, a mulher, os pais e 2 irmãos, só Nour sobreviveu 3 vezes entre os escombros. No total, contando com os familiares diretos e a família alargada, Ahmed já perdeu 20 familiares nesta guerra e, dos 2 irmãos que ainda estão vivos em Gaza, um deles foi gravemente ferido e o outro teve ferimentos ligeiros.

Quando Nour chegou a Portugal foi internada no Hospital Santa Maria. Teve alta clínica 2 semanas depois mas não lhe foi atribuída alta social durante mais umas semanas devido à situação financeira grave e ao facto da atual casa do seu pai nessa altura, não possuir frigorífico, fogão ou máquina de lavar e pelo facto de ter uma divisão com o teto em risco de ruir, apenas com umas vigas finas improvisadas a suster o teto.

Após as primeiras notícias sobre este caso em alguns canais de televisão, Ahmed recebeu alguma ajuda com eletrodomésticos e equipamentos e géneros/roupas para a bébé. No entanto, apesar de já estar a viver com a sua filha, Ahmed continua desempregado, endividado, sem dinheiro para pagar a sua renda e na iminência de despejo a qualquer momento.

A família está a ser monitorizada pela CPCJ e é imprescindível Ahmed resolver a sua situação financeira grave para se poder manter com a sua filha e para que esta (“a sua razão para viver”, como disse na reportagem da SIC de finais de novembro) não seja entregue a uma instituição.

O objetivo da campanha é que Ahmed consiga ter dinheiro suficiente para pagar a sua dívida de renda acumulada (tem uma ação de despejo em tribunal por esta dívida – mais informações na secção “Orçamento e calendarização) e arrendar uma outra casa que já possua condições de segurança em termos habitacionais até que se consiga reorganizar para voltar a trabalhar e para manter a nova casa.

Se Ahmed não conseguir resolver muito rapidamente a sua grave situação financeira e não travar o mais rapidamente possível a ação de despejo em tribunal, corre o risco de a qualquer momento ser despejado e a sua filha ir parar a uma instituição. Através do seu contributo poderemos impedir que aconteça mais uma tragédia a esta família, que seria a separação de Ahmed e Nour, depois de já terem sofrido tantas tragédias familiares em tão pouco tempo, e poderemos ajudar a criar um final mais feliz para esta história.

(é possível fazer donativos através do MB Way)

 
 

Sobre o promotor

O meu nome é Ricardo, não pertenço a nenhuma instituição do tipo IPSS/associação ou ONG. Sou apenas um cidadão que ficou muito preocupado e sensibilizado com este caso que vi nas notícias e o meu objetivo é ajudar a resolver esta situação muito difícil e complexa em que Ahmed e Nour se encontram.

Fiquei bastante sensibilizado com o facto de me ter apercebido pouco tempo depois da notícia no final do ano passado que a bébé luso-palestiniana com pouco mais de 1 ano que sobreviveu ao que pensava ter sido um bombardeamento em Gaza e em que perdeu praticamente todos os seus familiares, afinal tinha sobrevivido a 3 bombardeamentos diferentes e foi logo no 1º bombardeamento que a sua mãe e irmãos foram mortos.

E quando li nas notícias que, Ahmed, o pai da bébé, se encontrava desempregado e em risco de despejo previ logo que este, depois de tantas tragédias sofridas em tão pouco tempo, pudesse correr ainda por cima o risco de não ter nem condições financeiras nem de habitabilidade para conseguir manter a sua filha.

E que a bébé, Nour, depois de tantas tragédias e de ter sido retirada de escombros de bombardeamentos 3 vezes, corria agora o risco de ser separada do seu pai e, depois de tantas tragédias familiares sofridas em tão pouco tempo, corria agora o risco de ir parar a uma instituição onde a probabilidade de vir a ter uma vida muito má, caso isto aconteça, deverá ser muito grande.

Entretanto, tive a ideia de criar uma campanha de crowdfunding em benefício de Ahmed e Nour. Consegui obter o contacto direto de Ahmed através do meu irmão que trabalha para um programa na SIC e que conseguiu o contacto. Depois encontrei-me pessoalmente com o Ahmed e falei-lhe da minha intenção de criar uma campanha de crowdfunding em seu favor.

No entanto, ele disse-me que naquele momento não tinha cartão de identificação (ou possivelmente não me quis passar este dado por estar desconfiado por não me conhecer). Infelizmente, não consegui, por este motivo, criar uma campanha de crowdfunding logo naquela altura. No entanto, contactei-o há pouco tempo, perguntei-lhe como é que estava e ele disse-me que continuava sem dinheiro para pagar a renda e que, a qualquer momento, corria mesmo o risco de ser despejado mas informou-me que já tinha outra vez um cartão de identificação válido e já pude criar esta campanha nesta plataforma.

Tal como eu previ na altura das notícias sobre este caso no final do ano passado, Ahmed recebeu alguma ajuda com eletrodomésticos (a casa antes não tinha frigorífico nem fogão, nem máquina de lavar mas ainda tem uma divisão em risco de ruir com umas vigas finas improvisadas para suster o teto) e equipamentos e géneros/roupas para a bébé, assim como outros apoios. Mas depois das notícias e depois da atenção mediática temporária, continua com problemas financeiros urgentes, continua desempregado e o risco de despejo está cada vez mais próximo de se concretizar e, se isso acontecer, deverá perder a sua filha para uma instituição. 

 
 

Orçamento e Calendarização

A dívida da renda surgiu inicialmente devido ao facto de o senhorio não ter acedido ao pedido de Ahmed e da sua mulher para fazer obras numa divisão da casa cujo teto estava em risco de ruir e onde foram apenas colocadas umas vigas finas improvisadas para o suster (ver foto na secção de fotos da campanha).

Ahmed e a sua mulher na altura não pagaram inicialmente a renda como forma de pressão para o senhorio fazer as obras necessárias. E foi nesta mesma altura que Ahmed e a mulher tiveram que começar a pagar cerca de 1000€ por mês para as terapias para o seu filho que tinha graves problemas de desenvolvimento. Foi este o motivo pelo qual a mulher e os filhos de Ahmed e da sua mulher foram depois para Gaza para tentar outras terapias para o filho que fossem menos incomportáveis financeiramente e para terem um maior apoio familiar.

Entretanto, Ahmed ficou desempregado em Portugal, sem dinheiro para a renda e foi passar alguns meses a Gaza para acompanhar de perto o seu filho. Voltou sozinho para Portugal e pouco tempo depois sofreu em muito pouco tempo as várias mortes dos seus familiares mais próximos e outros que já foram referidas atrás.

O primeiro objetivo da campanha é angariar fundos suficientes para pagar a sua dívida de renda acumulada (10.000€) e travar a ação de despejo que está iminente (tem uma ação de despejo em tribunal que a qualquer altura poderá ser acionada).

O segundo objetivo da campanha - e que corresponde ao restante valor solicitado - é angariar fundos suficientes para Ahmed pagar os primeiros meses de arrendamento de uma nova casa, assim como a respetiva caução e de modo a que este se consiga reorganizar para voltar a trabalhar e para manter o seu novo lar com Nour.

A campanha é válida de 16 de Fevereiro a 16 de Abril de 2024, até às 18.00h
 
https://ppl.pt/causas/bebe-gaza

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

O capitalismo contra o clima

João Camargo (texto e ilustrações), ativista do Climáximo e investigador em alterações climáticas

Tempo aproximado de leitura: 18 minutos

Não é raro falarmos de capitalismo “fóssil”, mas o objetivo desta formulação é apenas tornar clara a origem da crise climática: a queima de combustíveis fósseis. Poderia haver quem argumentasse que, se há um capitalismo fóssil, também haveria “verde”. Essa é, no entanto, uma impossibilidade. O capitalismo não pode não usar combustíveis fósseis. Não significa que não possa também usar outras formas de energia. A ligação entre capitalismo e combustíveis fósseis é absoluta, como é portanto a ligação entre o capitalismo e a crise climática. É preciso ser claro: o capitalismo criou a crise climática. É preciso ser mais claro ainda do que isto: o capitalismo criou e sabia há muito que criou a crise climática. Além disso, é preciso dizer que o capitalismo é e será incapaz de travar a crise climática.

 

Tendemos a assumir que o capitalismo é o estado natural das coisas porque somos permanentemente bombardeados na guerra cultural que fez das nossas cabeças e da nossa imaginação um campo de batalha sobre o que é ou não possível. Desde a cultura dominante no capitalismo às notícias, às redes sociais, tudo nos diz que o mundo é isto e não pode ser isto. No entanto, sabemos que somos uma espécie que tem entre 200 e 300 mil anos de existência. Também sabemos que só nos últimos 12.000 anos surgiram as condições para o aparecimento de agricultura, de grandes aglomerados populacionais e da “civilização” como a conhecemos. Foi o clima do Holoceno que nos permitiu essa evolução. O capitalismo como forma de produção e organização social não tem muito mais de 200 anos, apesar das suas alianças com outras formas antigas de organização repressiva, como o patriarcado e o colonialismo. A lengalenga de que a maneira como alguns grupos se comportam em capitalismo é “natureza humana” não passa disso mesmo – uma lengalenga. Como todas as lengalengas, tem aderentes. O que eles querem conformar é a ideia de que não há alternativa a este sistema, e que portanto devemos simplesmente aceitar que é assim. Apesar de termos vivido enquanto espécie neste planeta durante pelo menos 198.800 anos sem capitalismo, e apesar de termos agricultura, aglomerados populacionais e civilização há pelo menos 11.800 sem capitalismo. Apesar disto, dizem-nos que não há alternativa ao capitalismo. Sim, é ridículo e não passa qualquer crivo histórico ou científico.

 

Em 2006, Sir Nicholas Stern escreveu no seu livro “The Economics of Climate Change”, que as alterações climáticas eram a maior falha de mercado que o mundo já viu. Stern reconhecia que havia um grave problema “o maior que o mundo já viu”, mas chamava-lhe uma “falha”. Não é verdade. O capitalismo necessitou e necessitar ignorar os efeitos das suas atividades para funcionar. Se o capitalismo tivesse de pagar a degradação ambiental que as suas atividades produzem, teria de abdicar dos seus lucros e portanto deixaria de funcionar. O capitalismo tem de desprezar o facto básico de os recursos humanos serem não só escassos como finitos, razão pela qual encoraja permanentemente (e além da cultura, a publicidade tem aqui um papel essencial) produtores e consumidores a gastar os recursos de acordo com o ritmo das “condições de mercado”.  Mercado é uma palavra-chave em capitalismo. De acordo com a Investopedia, um “mercado é um lugar onde as partes se juntam para facilitar a troca de bens e serviços, tendo compradores e vendedores, podendo ser físico ou virtual”. Além disso, algumas características chave do mercado incluem a “disponibilidade de um local, compradores e vendedores e uma mercadoria que possa ser comprada e vendida”. Este mercado, em particular os “mercados internacionais”, não são algo que nós consigamos ver ou participar. Talvez sejam mais simples explicar que mercados são pessoas ricas que decidem o que comprar e vender, porque essa definição descreve a quase totalidade dos mercados nacionais e internacionais. Não é uma entidade abstrata: tem nomes, moradas e interesses representados em bolsa.

 

O capitalismo necessita que tudo seja mercadoria e, portanto, transacionável – recursos, naturais, plantas, animais, o clima, as emissões – mesmo que o seu valor seja incalculável, como a capacidade que as plantas têm para fornecer oxigénio. Algo que não possa ser transacionável entre os ricos (“mercados”) tende a ser ignorado em capitalismo porque não tem valor de troca e, portanto, não poderá render imediatamente a alguém. Isso pode ser algo como a dignidade ou direitos humanos, como pode ser a habitabilidade de um território, o colapso de um ecossistema terrestre ou a vida de uma comunidade. A atribuição de um valor monetário a qualquer um destes é um processo de alienação, até porque um valor monetário, uma “moeda”, seja ela qual for, depende apenas de uma crença e não tem qualquer correspondente material.

 

No livro “Capital Fóssil” de Andreas Malm, ele explica-nos a origem e fusão completa entre o capitalismo e os combustíveis fósseis, partir do início da revolução industrial. O abandono da utilização da água como fonte de energia, trocada pelo carvão e o vapor não foram apenas um “avanço tecnológico”, como tantas vezes nos explicam em livros de história: foram uma maneira de aumentar o controlo sobre a maneira como se produzia e, principalmente, sobre quem produzia. O carvão e, mais tarde, o petróleo e o gás, ganharam sobre a água e o sol como fonte de energia porque permitiram aumentar o controlo dos patrões sobre quem trabalhava, aumentando simultaneamente o poder da burguesia industrial sobre o Estado.

 

Permitiram construir fábricas longe da água e ignorar as horas do dia, colocando quem trabalha – crianças, mulheres, homens, idosos – a trabalhar todas as horas do dia, 14 a 16 horas por dia, seis dias por semana. A concentração da energia também permitiu arruinar pequenos produtores que não tinham capacidade de produzir à mesma velocidade e com a mesma quantidade das fábricas, que se desenvolviam à volta dos motores a carvão. Além disso, o carvão (como o petróleo e o gás) são matérias cuja extração é de muito maior dificuldade, tendendo a criar grandes monopólios. Os combustíveis fósseis fazem parte integral das relações de propriedade burguesas: foi o carvão que criou a grande fábrica e o proletariado industrial. A “transição” para o carvão foi uma decisão deliberada e extremamente útil para consolidar o capitalismo como modo de produção, tal como as inúmeras decisões tecnológicas que sucederam desde o final do séc. XVIII. As decisões tecnológicas foram sempre orientadas por relações de poder e não de racionalidade energética.

 

Além das turbinas a carvão e petróleo, em 1804 foi criada a primeira locomotiva a carvão em Inglaterra. As locomotivas a vapor e a petróleo continuaram a evoluir e a ser adaptadas a vários usos, desde os comboios às fábricas e aos barcos, permitindo a explosão de produção e distribuição de produtos, que levou ao êxodo rural das populações do campo para as cidades e as indústrias, que continuou durante os séculos seguintes. Os caminhos de ferro foram-se expandindo, como o foi também a navegação marítima alimentada agora não apenas a ventos e marés, mas também a carvão e petróleo – isto tornou o mundo mais pequeno, aumentou o comércio, a extração de matérias-primas em todos os continentes e o modelo de desenvolvimento industrial capitalista.

 

 

Os combustíveis fósseis têm outra vantagem sobre as energias eólica, solar e da água – são uma pilha, têm energia solar armazenada, pois são o resultado da degradação de seres vivos há milhões de anos. Como estavam no subsolo, estavam fora do sistema biológica de circulação. Podem ser transportados e armazenados para ser consumidos a qualquer altura. E a sua queima liberta na atmosfera o dióxido de carbono que tinha sido fixado pelos seres vivos enquanto estavam vivos.

 

Em 1864 Nikolaus Otto inventou o motor a 4 tempos, que deu origem aos motores a gasolina e a diesel. Simultaneamente, o motor elétrico também era desenvolvido, mas a sua menor rentabilidade e predisposição a controlo monopolista colocou-o sempre em segundo plano. O primeiro carro a combustíveis fósseis foi inventado no séc. XIX, tal como o primeiro carro elétrico – o segundo praticamente desapareceu durante mais de 100 anos. O Ford-T foi o primeiro automóvel produzido em massa numa fábrica, e o seu objetivo era ser barato e acessível a milhões. Entre 1908 e 1927 for produzidos 15 milhões de Ford-Ts. Desde o início do século passado cerca de 3 mil milhões de carros foram produzidos, tornando-se um dos principais meios de transporte do planeta, e criando inúmeros monopólios simultâneos – da produção dos automóveis, das peças, do combustível, da construção das estradas, etc.. Nos anos 30 do século passado foi inventada a turbina a jato, que lançaria o transporte aéreo, também a combustíveis fósseis, e que se foi desenvolvendo para ocupar o espaço das viagens cada vez mais curtas, substituindo barcos e comboios. A eletrificação das sociedades e economias ocidentais exigiu a criação de grandes centrais elétricas, cujos proprietários tinham forte poder sobre a sociedade (seja pelo preço da energia, seja pela quantidade e regularidade de abastecimento). Eletricidade, fábricas, portos, aeroportos e estradas, todos dependentes de combustíveis fósseis, são expressão mais clara de como o capitalismo é e só pode ser capitalismo fóssil.

 

O capitalismo não pretende produzir bens e serviços, mas sim capital e acumulação. Se para isso tiver de destruir o planeta, fá-lo-á sem problemas, a não ser que seja travado. Mas também é flexível e, por isso, quando os capitalistas deixam de conseguir acumular riqueza a ritmos crescentes, ou quando vêm uma oportunidade, “inovam” e tornam-se “empreendedores”.

 

 

A gigante confusão entre crescimento e desenvolvimento é o terreno fértil em que o capitalismo quer ser eterno. Infelizmente esta confusão domina e é por isso que se alimenta a ideia errada de que, para haver empregos, é preciso destruir o ambiente e o clima. O capitalismo diz-nos que abdicar dos combustíveis fósseis é escolher viver nas cavernas, quando a realidade é que continuar a usar combustíveis fósseis significará, na melhor das hipóteses, viver nas cavernas. O mundo já está fundamentalmente diferente daquele em que o capitalismo se desenvolveu e prosperou. Agora só degradando cada vez mais e muitas vezes de forma irreversível o trabalho, o ambiente e o clima poderá continuar a manter as suas taxas de retorno, os seus lucros, a sua extração de mais-valia.

 

A austeridade é um sintoma disso mesmo, como é a crise do custo de vida, que hoje já tem como fonte direta o preço dos combustíveis fósseis e a crescente escassez material ligada à crise climática. Enquanto houve capitalismo, a crise climática continuará sempre a exprimir-se como uma crise de custo de vida, em que nós pagaremos os prejuízos e os lucros das elites capitalistas, que nunca pararão. O capitalismo considera mesmo que a escassez de estabilidade climática pode ser uma oportunidade de negócio a ser aproveitado por aqueles que possuem capital e tecnologia para aproveitar o momento. Como o capitalismo nunca aceita perder, além das “oportunidades” no combate às alterações climáticas também vê “oportunidades” no caos climático. O frenesim das seguradoras e das resseguradoras é total, e a financeirização uma necessidade. Assim, o capitalismo procura rentabilizar já não só futuros lucros como lucrar com as catástrofes. Nos últimos anos houve uma explosão financeira para transferir riscos climáticos através de derivativos climatéricos e títulos de catástrofe (cat bonds).

 

“Descarbonizar” a economia, por outro lado, é um jogo de palavras proclamado por vários governos e empresas, sempre que não se pára a utilização de combustíveis fósseis, que não se encerram indústrias com elevadas emissões, sempre que não se transformam os transportes e a produção agro-pecuária e florestal. Renováveis não tiram dióxido de carbono da atmosfera e os novos modelos de renováveis estão a mimetizar os monopólios fósseis e são mesmo algumas destas empresas que já dominam o novo sector: com grandes centrais, grandes redes de distribuição e a manutenção do poder nas mãos dos “mercados”.

Em muitos locais do mundo as alternativas já existem e estão a ser praticadas: a permacultura, a democracia energética, a revolução alimentar, o combate às energias fósseis em funcionamento, os transportes alternativos. No entanto, a escala a que estas alternativas estão a ser praticadas é residual e estas são mantidas na marginalidade pelas leis que defendem o status quo, o poder como ele sempre foi e, acima de tudo, a propriedade.

 

O capitalismo não poderá jamais abdicar de lucro, e há mais reservas de petróleo e gás no subsolo do que aquelas que queimámos até hoje – e é por isso que até hoje as emissões nunca pararam de aumentar. Eles não têm alternativa a fazer todo o lucro que possam e por isso têm de ser derrubados para poder continuar a haver Humanidade.

Artigo originalmente publicado em: https://outraseconomias.pt/outrasec/o-capitalismo-contra-o-clima 

A VIDA OU O COLAPSO?

 

Nestas eleições há acordo: avançar para o colapso climático

João Camargo – Investigador em alterações climáticas, membro do Climáximo

Passou tempo suficiente para ser evidente a abordagem partidária geral às eleições deste ano. A análise dos programas confirma o indicado nos debates tiktok a que o país foi exposto. Existe polarização política, mas não sobre tudo. Sobre não travar o colapso climático não há pólos, há um grande acordo. A guerra declarada por governos e empresas à sociedade sob a forma de colapso climático não procura um cessar-fogo no dia 10 de Março, apenas põe à eleição novos generais. É inaceitável

Entre os temas do clima, da energia, dos transportes, da agricultura e florestas há grandes diferenças entre os partidos, mas todos partilham o acordo de acelerar rumo ao colapso: alguns prometem intangivelmente cortar emissões enquanto garantem nas propostas concretas aumentar emissões, outros nem isso. Os casos mais evidentes de convergência são o acordo sobre a construção de um novo aeroporto de Lisboa, mas abundam propostas de construir mais estradas, até novas pontes sobre o rio Tejo. As palavras sobre emergência climática são, quando existem, retóricas. As práticas são claras: não estará na mesa de voto no dia 10 nenhuma proposta real de travar a maior crise da história da humanidade. Poderemos votar em qual o general para seguir a guerra contra a Humanidade: Montenegro e Rocha, Ventura, Santos e Mortágua ou outras combinações.

2023 foi o ano mais quente desde que há registos, pelo menos 1,48ºC acima da era pré-industrial. Os primeiros meses de 2024 escaldam o planeta, dos oceanos aos pólos. Este mês provavelmente terá uma temperatura de 2ºC acima da era pré-industrial. A temperatura do planeta está a entrar em roda livre. Ainda assim, não só os debates políticos não são à volta deste tema como a imprensa acha que podem não ser, promovendo o acordo sobre enfiar a cabeça na areia e estendendo a passadeira à seca permanente, ao colapso de colheitas, à explosão do custo de vida e à catástrofe social que todos os anteriores (e outras consequências da crise climática) garantem.

A polarização política em curso na velha Europa é apenas uma guinada total à direita, com a extrema-direita ditando os programas, o centro-direita apoiando novos fascismos, o centro tornando-se centro direita, a esquerda tornando-se centro. Isto está plasmado nestas eleições. A escolha do capitalismo europeu é a catástrofe e, para garanti-lo, o autoritarismo. O seu controlo sobre a hegemonia da comunicação é do mais forte que vemos há décadas.

A natureza das alterações climáticas é incompatível com a agenda política mediada entre parlamentos e comunicação social. A procura de compromissos ao centro garante a catástrofe porque não existem opções intermediárias entre realizar ou não os cortes necessários para travar o colapso climático. Ou se fazem os cortes ou não se fazem os cortes. E não são uns cortes quaisquer, são precisos e objetivos: 85-90% menos de emissões até 2030. Estão em acordos internacionais que todos assinam e ninguém cumpre. A nível partidário isto repete-se. Nenhum partido propõem fazer os cortes necessários. Nenhum partido. Nenhum. O que põe desconfortavelmente no mesmo plano o Bloco de Esquerda e a Iniciativa Liberal, a CDU e o Chega, o PAN e o PS, a AD e o Livre.

Se estes programas são todos iguais? Não, nem em termos climáticos, muito menos em outros aspectos. Mas nenhum propõe fazer o que é necessário, nem os que prometem que todas as propostas orçamentais tenham avaliação de impacto climático nem os que não falam de alterações climáticas uma só vez.

A meio da campanha a Galp, uma empresa petrolífera e que, consequentemente, é uma organização cujo objetivo em 2024 é o extermínio da Humanidade, anunciou os maiores lucros da sua história e o objetivo de aumentar a produção de petróleo e gás. Qual é a proposta que une todos os partidos neste âmbito? Fechar as centrais a gás? Obrigar a empresa a pagar uma transição energética justa para os seus trabalhadores? Não. É baixar o IVA do gás. Não sendo todos iguais, aqui o Chega apostaria em migrantes escravizados que ainda teriam de sustentar as contas públicas.

A avaliação um a um dos programas eleitorais é esclarecedora. As coisas interessantes não escondem a resignação. Pedir agora compromissos aos partidos que em 2024 acharam que podiam apresentar um programa que não travasse a crise climática e que deixaram nos 500 debates que aconteceram que este assunto não existisse é só cumprir calendário. Destas eleições não sairá a solução para crise climática. Não será tampouco delas que será derrotado ou aclamado o novo fascismo do Chega. O abandono da política revolucionária progressista pelas forças que se institucionalizaram não é irreversível, mas com a virada à direita o seu espaço vital vai mirrando. Ter programas políticos que não respondem de forma corajosa à maior crise da história mas antes se acomodam à hegemonia de extrema-direita faz com que esse espaço se esteja a extinguir. Não é admissível que pessoas adultas e organizações políticas que se propuseram um dia mudar o mundo para melhor se recusem a mudar os seus confortáveis hábitos quando o que está em jogo não são umas eleições ou meia dúzia de empregos, mas o futuro da espécie humana.

Aceitar a ideia de que quaisquer eleições vão resolver a crise climática é juntar-se à fila do matadouro e caminhar placidamente na direção da catástrofe, cantando slogans diferentes, mas recusando abandonar o hábito de seguir o da frente. Aceitar a normalidade de umas eleições que negam a nossa ameaça existencial nem propõe a sua solução é legitimar o caminho para o inaceitável colapso. Não o faremos.

Artigo de opinião no Expresso, 21 de Fevereiro 2024

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

NÃO AOS PRODUTOS QUÍMICOS TÓXICOS QUE NOS MATAM


Como todas as pessoas sabem, à cerca de um século, que estamos todos os dias expostos a produtos químicos tóxicos que causam doenças crónicas e letais, por exemplo: cancro, infertilidade e anomalias congénitas. As grandes corporações internacionais da indústria química, com o apoio da União Europeia e Estados-membros, estão determinadas em agravar a situação com a introdução de mais produtos químicos tóxicos. Está nas nossas mãos, de todas e cada uma das pessoas, travar este caminho que leva a humanidade para a catástrofe.
 
Nada dura para sempre, excepto os produtos químicos tóxicos produzidos e comercializados pelas corporações internacionais da indústria química. Estes produtos químicos são "eternos" e estamos todos os dias em contacto  com eles, porque se encontram, por exemplo, em embalagens de alimentos, frigideiras e capas de chuva [1].

Por isso, não surpreende que as pessoas em toda a Europa tenham níveis elevados, destes produtos químicos tóxicos e perigosos, nos seus organismos que provocam cancro, infertilidade e danos no fígado [2].

Acresce que estas corporações sabem tudo isto, mas é-lhes indiferente, e continuam a produzi-los, a comercializá-los e a mentirem à décadas sobre as consequências, ao contaminar a água, o ar, os solos e os nossos organismos.

Estas corporações esconderam pesquisas sobre a perigosidade destes produtos químicos durante 50 anos, até às pessoas que nelas trabalham e estão directamente sujeitas aos seus perigos [3].

Após um trabalho de pesquisa e investigação levada a cabo por um grupo de jornalistas, a verdade foi tornada pública. Por isso, as corporações da indústria química estão a gastar 20 milhões de euros por ano para pressionar a União Europeia, para continuarem a produzir e comercializar estes produtos químicos tóxicos "sem limites" [4].

Para além disso, estas corporações estão impunes e têm a cobertura legal das instituições da União Europeia e dos Estados-membros. Se não vejamos: o plano que foi aprovado pelas instituições europeias, com vista a acabar com estes produtos químicos na Europa, nunca foi implementado.

Estes produtos químicos estão a ter consequências na nossa vida quotidiana e das nossas crianças. Por exemplo, nos Países Baixos (Holanda) as crianças são, sistematicamente, alertadas para não nadar, banhar-se, no poluído mar holandês, ou, na Bélgica onde as crianças, também são alertadas para evitar brincar no parque em Zwijndrecht [5].
 
O custo dos danos causados por estes "produtos químicos eternos" - como as corporações querem - à nossa saúde, aos ecossistemas, biodiversidade, natureza e Planeta, já são astronómicos, de acordo com o Conselho de Ministros Nórdico. E vai aumentar se a situação persistir.

As corporações da indústria química não querem mudanças, muito pelo contrário, querem continuar a produzir e comercializar estes produtos químicos tóxicos, para continuarem a obter lucros astronómicos.

Cabe-nos organizar, mobilizar e agir em defesa da nossa saúde e das nossas crianças. Exigindo o fim destes produtos químicos tóxicos e perigosos, não permitindo o que estas corporações querem: "torna-los eternos", com a cobertura da União Europeia e Estados-membros.
 
Juntos e organizados podemos vencer e acabar com estes crimes e a destruição das condições que geram, sustentam e suportam a vida, em todas as suas dimensões.
 

Referências:

[1] PFAS, substâncias alquílicas per e polifluoradas, são uma grande família de mais de 

4.700 produtos químicos produzidos pelo homem. 

São utilizados pela sua capacidade de repelir gordura e água, bem como pela sua resistência

 a altas temperaturas.

https://eeb.org/work-areas/industry-health/pfas/

[2] https://eeb.org/european-citizens-alarmingly-high-chemical-exposure/

https://www.lemonde.fr/en/les-decodeurs/article/2023/02/23/revealed-the-massive-contamination-

of-europe-by-pfas-forever-chemicals_6016906_8.html

Jornalistas mapearam hotspots químicos eternos em toda a Europa https://foreverpollution.eu/

[3] https://time.com/6284266/pfas-forever-chemicals-manufacturers-kept-secret/

[4] https://corporateeurope.org/en/2023/07/toxics-industry-fights-back-against-proposed-forever-chemicals-ban

[5] https://www.mammenopfas.org/chi-siamo

[6] https://norden.diva-portal.org/smash/get/diva2:1295959/FULLTEXT01.pdf

[7] https://website.wemove.eu/it/victories/ecocidio-finalmente-reato 

?akid=1935%2E13656%2EPqfUCG