sexta-feira, 20 de maio de 2022

A LÃ E A NEVE - FERREIRA DE CASTRO

Esta breve transcrição do livro supracitado é de grande actualidade, e relembra-nos que as pessoas que trabalham, produzem e fazem com que tudo isto funcione, também são dignas e capazes de viver com a cabeça levantada, sem terem que engraxar ninguém...   
 
  «...Como Tramagal costumava ir sempre com eles, aquela separação vexava-o cada vez mais. Hesitou em trazer o caso ao julgamento de Marreta, porque só a ideia de falar naquilo o molestava. Mas acabou por decidir-se, na ânsia de dar e encontrar justificação:

- Parece que o Tramagal ficou zangado por eu, esta tarde, me ter afastado para deixar espaço ao patrão. Atirou-me uns olhos e pôs uma cara que até parecia que me queria comer...

Marreta não preencheu logo a pausa que Horácio abrira. Continuou a andar, calado, e, só muitos passos feitos, disse:

- Isso passa-lhe. Ele é assim. Mas não foi por tu te teres afastado. Foi pela maneira como estavas junto do patrão...

- Então, como é que eu estava?

Marreta manteve ainda, por alguns segundos, o seu silêncio. Depois, pôs-se a discorrer, paternalmente:

- Não és filho de operário, nem tens vivido no nosso meio. Aí está! Foi isso que eu pensei quando chegou o patrão e reparei em ti. Se o Tramagal tivesse pensado a mesma coisa, não faria aquela cara...

- Não percebo nada!

Marreta voltou-se para ele:

- Não percebes ou não queres perceber?

- Não percebo, já disse!

Marreta tornou a olhá-lo e, depois, deu à sua voz um tom de paciência:

- Bem... Antigamente, quando o patrão entrava na fábrica, todos se punham como tu te puseste. Os patrões vinham, largavam sentenças, intrometiam-se em tudo. E as descomposturas eram o pão de cada dia. Pela coisa mais insignificante ameaçavam-nos de nos pôr na rua. Eles e até nós próprios pensávamos que tínhamos nascido para trabalhar para eles e que ainda era um grande favor eles darem-nos trabalho. Mas, um dia, nós vimos que também éramos homens e, pouco a pouco, fomos adquirindo a nossa dignidade. Ainda há alguns que andam sempre a lamber-lhes as botas, mas esses são cada vez mais raros. Por isso, hoje em dia os patrões não gostam de entrar nas fábricas. Eles vêem que não são recebidos com humildade, como noutros tempos. Hoje, eles e nós não nos entendemos. E quanto mais consciência formos ganhando, menos nos entenderemos. Nós até poderíamos trabalhar mais e melhor se não fosse a ideia de que estamos a trabalhar para o patrão... Compreendes?

Horácio fez um gesto vago. Parecia-lhe, às vezes, que o Marreta tinha razão. Mas logo quedava ressentido: « O que ele fizera não era suficiente para os outros estarem com aquelas coisas. Também ele gostaria de poder ter sempre a cabeça erguida, de não precisar de engraxar ninguém.»

- Eu não sabia nada disso... - justificou-se, sombriamente.»

quarta-feira, 11 de maio de 2022


Maria O’Neill, uma mulher socialista na 1ª República


“O seu cadáver foi lançado ao mar nas alturas de Pernambuco, com o ritual que é costume empregar-se em casos desta natureza” [contava O Setubalense, 04/04/1932, pág.8].

Assim desapareceram os restos mortais de uma figura ímpar do feminismo português, falecida aos 59 anos de idade, quando viajava de barco do Brasil para Lisboa.

O seu nome era Maria O’Neill.

Salientou-se no «Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas», uma associação feminista fundada em 1914 (que acabaria dissolvida pela ditadura de Salazar).

Fez parte da comissão organizadora do 1º congresso feminista em Portugal (em 1924) e da Liga Abolicionista, uma associação (fundada em 1926) que pugnava pelo fim da prostituição.

Escritora e de família abastada, até correspondia à imagem mais visível do feminismo europeu da época, protagonizado por intelectuais de classe média, particularmente minoritário num país como Portugal – onde cerca de 80% das mulheres eram analfabetas.

Mas a 1ª República recusou o direito de voto às mulheres. E esta desilusão levou Maria O’Neill a seguir um caminho diferente: em 1919 aderiu a um partido operário e marxista – o antigo Partido Socialista Português.

Dizia ela que “A mulher portuguesa trabalhou activamente na implantação da república, esperando que raíasse para ela uma aurora de libertação. Enganou-se e enganaram-na”. Na luta contra a monarquia, “a voz da mulher serviu na propaganda pública, a sua acção fez-se sentir no trabalho clandestino, mas, aproveitada como um instrumento, não lhe reconheceram capacidade para defender os seus direitos” [O Combate, 20/02/1920, p.1].

Perante esta desilusão, Maria O’Neill concluia que “não há nenhum programa de partido político, em Portugal, que reconheça plenamente os seus direitos senão o do partido socialista, e nenhum onde as ideias sejam mais justas, amplas e humanitárias”, o que a leva a afirmar que “o futuro da mulher está, pois, no socialismo” [ibidem, 29.04.1919, p.3].

Além deste âmbito partidário, a ligação de Maria O’Neill ao movimento operário passou por conferências em diversos sindicatos e também em associações como A Voz do Operário – na qual  terá sido, em 1926, a primeira mulher eleita para os corpos sociais, como membro da comissão de instrução, educação e arte.

Assumiu também algumas responsabilidades no âmbito do Ministério do Trabalho. Foi  vogal (e única mulher) de uma comissão de promoção do mutualismo. E foi presidente da «Bolsa de Trabalho Feminino de Lisboa»: uma experiência de centro de emprego especificamente para mulheres.

 

No O Setubalense

Entre 1921 e 1930, além de alguns poemas, O Setubalense publicou um artigo de Maria O’Neill em destaque na primeira página.

Aludia a uma proposta de lei sobre trabalho feminino, apresentada seis meses antes pelo governo. Mostrava-se descrente e desiludida. Alegava que já vários projectos haviam aparecido para ficar na gaveta. E mesmo os que chegavam a ser lei “não passam, a maior parte das vezes, de letra morta” [O Setubalense, 14/06/1921, p.1].

A 1ª República portuguesa não era um caso isolado. A historiadora espanhola Gloria Nielfa assinala o “alto grau de incumprimento que se registou em diferentes países” à época, em matéria de legislação sobre trabalho feminino. “Se nuns casos esse incumprimento se devia ao desejo de burlar a lei por parte dos patrões”, noutras situações a falha estava na “própria desconformidade” de leis em cuja elaboração as mulheres “não tinham tido nenhum tipo de participação e que muitas vezes não respeitavam os seus interesses” [Nielfa (2006), “La regulación del trabajo femenino”, p.346].

Perante esta realidade, o que Maria O’Neill expressou no O Setubalense foi um apelo no sentido das próprias mulheres se associarem e agirem em defesa dos seus direitos.

Luís Carvalho - Investigador.

Artigo originalmente publicado no O Setubalense a 10 de Maio de 2022