quinta-feira, 15 de julho de 2021

EMPREGOS COM DIGNIDADE PARA O CLIMA E A SOCIEDADE

O problema

Nos últimos 200 anos, a humanidade tem queimado mais e mais carvão, petróleo e gás natural, libertando mais e mais dióxido de carbono (CO2) para o ar. Este dióxido de carbono fica na atmosfera durante muitos anos a absorver calor, tornando o planeta mais quente. Sem estes gases com efeito de estufa (GEE), o nosso planeta seria um sítio inóspito para a vida como a conhecemos, em particular para a espécie humana.

Mas o excesso destes gases na atmosfera, causado por atividades humanas, gera o chamado aquecimento global antropogénico que tem grandes impactos nos ecossistemas: ondas de calor, recordes de temperatura, secas cada vez mais graves e frequentes, incêndios descontrolados, cheias e tempestades, acidificação dos oceanos, perda de biodiversidade, escassez de água e comida, falhas de infraestrutura, pessoas refugiadas do clima e conflitos sociais. Estes impactos afetam diretamente o dia-a-dia de muitos milhões de pessoas. E a cada ano que passa, vão-se tornando mais frequentes e violentos, por causa da chamada “realimentação positiva”.

Inerente a qualquer sistema físico da Terra, há mecanismos que aceleram ou desaceleram o curso inicial das coisas. É o que acontece com uma pequena bola de neve a rebolar por uma colina abaixo. Ela começa com uma dada velocidade inicial. A gravidade aumenta essa velocidade e faz mais neve juntar-se, enquanto a fricção com o chão reduz a velocidade e faz alguma neve soltar-se. Se a velocidade inicial for muito pequena, a bola vai acabar por parar. Se for muito grande, o resultado será um “efeito de bola de neve”: a bola vai acelerar, mais neve se vai agregar, aumentando o seu volume, o que fará com que mais neve se junte e assim sucessivamente.

Estes são “mecanismos de realimentação”. É importante notar que é o próprio mecanismo do sistema que se auto-alimenta (não é preciso empurrar a bola, nem tentar pará-la).

Alguns mecanismos de realimentação são “positivos”, se aumentam ou aceleram a situação inicial (como a gravidade no nosso exemplo), e outros são “negativos” (como a fricção).

Nas alterações climáticas, há vários mecanismos de realimentação positiva. Para dar dois exemplos: 1) a Terra aquece, por isso o gelo do Ártico derrete, tornando-se água; a água absorve mais calor do que o gelo (porque o branco reflete os raios do sol) o que faz a Terra aquecer mais. 2) a Terra aquece, por isso os solos congelados na Sibéria derretem; o metano capturado debaixo desses solos liberta-se, gerando mais efeito de estufa, o que por sua vez faz a Terra aquecer ainda mais.

Os cientistas climáticos preveem que um aquecimento de 2°C (face a níveis pré-industriais) fará com que estes mecanismos de realimentação positiva dominem as dinâmicas do clima da Terra, causando mudanças incontroláveis e galopantes. Por isso se fala num “ponto sem retorno”. E por isso é tão urgente combatê-lo.

Segundo a Agência Internacional de Energia, a infraestrutura energética existente no mundo em 2017 é já suficiente para nos encerrar numa via para os 2°C de aquecimento. Não podemos construir quaisquer novas centrais, fábricas ou infraestruturas que não sejam “carbonozero”.

A melhor estimativa da ciência é de que temos entre 10 e 20 anos para mudar o curso da civilização humana e iniciar uma transição energética profunda. De acordo com o Climate Fairshares, em Portugal temos de cortar as emissões de gases com efeito de estufa em 60-70% em 10-15 anos.


O clima está a mudar

A crise climática é talvez o maior desafio da História. O aumento da temperatura média faz escassear a água potável e comida nutritiva, despoleta guerras por recursos, fluxos migratórios massivos, tempestades e incêndios que destroem casas, infraestruturas, costas, florestas e colheitas. Isto acontece não por falta de tecnologia alternativa, mas porque o setor energético tem somas exorbitantes investidas em combustíveis fósseis. Estas somas estão a custar a vida, a saúde, a casa e o futuro a muita gente. A ciência prevê que nos restem 30 anos para descarbonizar por completo a economia e evitar um ponto sem retorno nas alterações ao clima.

Precariedade instalada

Com o fim da crise em Portugal, o emprego aumentou, mas a precariedade ficou. Vínculos precários, falsos recibos verdes, horas extra não pagas, insegurança no emprego afetam mais de 1/5 da  população trabalhadora, e quase 2/3 dos jovens. Isto acontece não por falta de recursos, mas porque as empresas se movem pelo o lucro e não para servir as pessoas ou a sociedade. Este lucro está a custar a dignidade e qualidade de vida a muita gente.

Pobreza energética

Portugal é um dos países da UE onde mais se morre de frio. A dificuldade de manter as casas quentes vem da ineficiência energética e mau isolamento dos edifícios, do custo alto da eletricidade  e falta de acesso a tecnologia adequada (como aquecimento central). Este problema afeta sobretudo idosos, crianças, pessoas com doenças físicas ou mentais. E isto acontece não por incompetência técnica, mas porque os setores energético e da construção são movidos pelo lucro em vez do serviço público. Este lucro está a custar a vida, a saúde e o conforto a muita gente.

Custos da mobilidade

Milhares de mortes prematuras e custos altos para a saúde e economia resultam da concentração alta de poluentes no ar. Este problema está ligado a falhas dos transportes públicos e coletivos (em horários, custos frequência, cobertura, climatização), que levam quem pode a recorrer ao transporte individual. O resultado: problemas respiratórios, ruído excessivo, trânsito e falta de acessos a quem não tem carro. Isto não acontece por falta de tecnologia ou recursos, mas porque as transportadoras operam com base no lucro e não no serviço às pessoas.

E agora?

Os problemas são claros, a solução também. Tal como a educação e a saúde, os setores básicos da energia, transportes e construção têm de servir primeiro as pessoas e a sociedade. Seja em alturas de crise, eleições ou boom económico, certos limites não podem ser cruzados: o clima, a vida, a saúde, a habitação, a dignidade do trabalho, o acesso à mobilidade têm de ser garantias absolutas. É preciso recolocar estes recursos na esfera do serviço público, sob controlo de quem trabalha e vive nas comunidades. É preciso algo como um “Serviço Nacional do Clima” para fazer a transição energética de forma socialmente justa em Portugal.

Em: www.empregos-clima.pt

sexta-feira, 9 de julho de 2021

CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA - JORGE DE SENA

CARTA A MEUS FILHOS 

SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por
                                                                               [vós.
E é possível que não seja isto, nem sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse com a suma piedade e sem efusão
                                                                          [de sangue.
por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os corpos amontoados tão anonimamente quanto
                                                        [haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse
                                                                   [memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham
                                                           [consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que 
outros não amaram porque lho roubaram.
 
 Em: Poemas Escolhidos - Jorge de Sena, Círculo de Leitores, 1989, pp. 106/7/8.