domingo, 22 de agosto de 2021

QUADRAS POPULARES - JOSÉ AFONSO

 

Apesar destas "Quadras Populares" estarem datadas, são testemunhas activas de um tempo da nossa memória colectiva e espelham a realidade actual.

 

Nestas quadras vão noticias
Pr'a quem está mal informado
Dá-me o tom desta cantiga
Quero estar bem preparado
 
Quero estar bem preparado
O Sol e Dó bate fino
Quando o compasso é folgado
Entra melhor no ouvido
 
Os ricos mentem ao povo
Com artes de feiticeiro
Dizem que são pela Pátria
Mas só pensam em dinheiro
 
Hoje os tempos estão mudados
Mal vai para quem trabalha
Sai das tuas tamanquinhas
E luta contra a canalha
 
Sobem as rendas de casa
A habitação é um luxo
Mas há quem tenha palácio
Piscina, parque e repuxo 

Em: Quadras Populares, José Afonso, Ulmeiro, 1983, pp. 7 e 8. 


sexta-feira, 20 de agosto de 2021

O PORTUGAL FUTURO - RUY BELO

 
O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este 
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro
 
Em: Antologia Poética, RUY BELO - Cidadão de longe e de ninguém, Prefácio e selecção de poemas: Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Círculo de Leitores, 1999, p. 69.
 
 

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

A solução

Um Plano Social para uma Transição Energética Justa

Criar serviços públicos e milhares de empregos dignos para travar a crise climática

Faltam poucos anos para evitar um caos climático irreversível. É preciso uma transição justa para uma economia de baixo carbono. Esta transição vai demorar tempo, mas não pode demorar muito tempo: faltam-nos pouco mais de 10 anos para reduzir as emissões globais de gases com efeito de estufa para metade, segundo o relatório do IPCC de Outubro de 2018. A humanidade tem de mudar de caminho urgentemente.

A campanha Empregos para o Clima defende uma transição energética que dê emprego digno e socialmente útil a dezenas de milhares de pessoas. A campanha foi lançada em 2016 e conta com o apoio de várias organizações de sociedade civil, como sindicatos, ONGs e colectivos ambientalistas.

Para reduzir as emissões nacionais de gases com efeito de estufa em 60-70% nos próximos 15 anos, será necessária a criação de 120-160 mil postos de trabalho em vários sectores da economia.

As reivindicações da campanha têm quatro princípios:

  • Criação de novos postos de trabalho;
  • No sector público;
  • Nos sectores-chave que têm impacto directo nas emissões, como energia, transportes, construção, gestão de florestas e agricultura;
  • Com garantia de requalificação profissional e prioridade ao emprego para as trabalhadoras e os trabalhadores dos sectores poluentes.

O relatório “Empregos para o Clima” (2017), produzido por um trabalho colectivo de académicos, sindicalistas e ambientalistas, defende que é possível contribuir para a meta de manter o aquecimento global abaixo de 2ºC em relação a níveis pré-industriais. Para esta transição energética rápida, serão precisos 120-160 mil novos postos de trabalho em sectores-chave da economia, mairoritariamente nas áreas de energias renováveis, transportes, construção, agricultura e floresta.

 

Financiamento

Para garantir os Empregos para o Clima, será necessário dedicar anualmente 1.5% a 2.5% do PIB de 2018 (entre 3 e 5 mil milhões de euros[1]) durante esta transição.

Temos várias propostas sobre como recolher esta verba, penalizando ao mesmo tempo os sectores mais poluentes da economia. Estas propostas incluem a criação de um imposto sobre offshores fiscais e a aplicação de um imposto a cada transacção financeira (já apoiado por vários países da União Europeia). Estas duas medidas, juntamente com o aumento do escalão de IRS para as famílias mais ricas, a subida gradual da taxa liberatória até que esta seja igual à taxa máxima de IRS, a progressiva eliminação de 2.5 mil milhões de euros em benefícios fiscais, nomeadamente aqueles que se dirigem à energia de origem fóssil e aos sectores financeiro e imobiliário, combinadas com o uso eficiente de fundos europeus e internacionais relevantes para o cumprimento dos objectivos propostos e o uso do Fundo Ambiental (que terá que diversificar as suas fontes de financiamento) deverão permitir que os mais de 5.000 milhões de euros hoje obtidos através de impostos especiais sobre o consumo de bens que produzem directa ou indirectamente emissões de gases com efeito de estufa, possam ser dirigidos para o financiamento dos investimentos preconizados neste plano.

Finalmente, há que ter em conta o enorme custo que os efeitos de ultrapassar os 2ºC terão sobre a economia mundial. Neste contexto, Portugal é particularmente vulnerável aos efeitos das alterações climáticas, desde o aumento do número e magnitude de secas esperadas até à perda de território devido à erosão costeira e desertificação de parte do território.

[1]  Considerado cerca de 201 mil milhões de euros, segundo dados do Pordata.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Prof. Ferreira de Macedo, fundador da Universidade Popular Portuguesa

I

No dia 14 de Junho de 1947, um conjunto de 21 professores universitários foram demitidos dos seus postos de trabalho pelo governo de Salazar, acusados de apoiarem a oposição.

Um deles foi António Ferreira de Macedo, professor catedrático no Instituto Superior Técnico de Lisboa.

Filho de um casal de comerciantes da vila de Mesão Frio, em Trás-os-Montes, estava com 60 anos de idade, numa vida dedicada à causa da educação.

II

Começou cedo. Ainda no seu tempo de estudante, o jovem Ferreira de Macedo esteve ligado à Liga de Educação Nacional. Veio depois a ser secretário-geral da Sociedade de Estudos Pedagógicos e presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática. Três diferentes movimentos colectivos com uma preocupação comum: difundir e melhorar o ensino entre a população portuguesa.

Ferreira de Macedo tinha também um percurso mais político. Foi um jovem republicano ainda no tempo da monarquia. Segundo contava, participou na grande greve estudantil de 1907 e na fundação da associação de estudantes da Escola Politécnica (que funcionava onde hoje está instalado o Museu Nacional de História Natural e da Ciência).

Em 1921, Macedo foi um dos fundadores da revista Seara Nova. E, em 1945, participou na fundação do MUD (Movimento de Unidade Democrática), no qual assumiu responsabilidades a nível nacional, como secretário da “junta consultiva”, ao lado de Norton de Matos (presidente), e de António Sérgio (vice-presidente).

III

O contributo mais marcante de Ferreira de Macedo está ligado à história do movimento sindical: a Universidade Popular Portuguesa. 

Foi um projecto de formação cultural especialmente direccionado para a classe operária. Para além de criar uma biblioteca, ao longo de três décadas organizou inúmeras conferências, bem como sessões comentadas de cinema e música. Tudo isto com a participação de muitos dos mais prestigiados intelectuais portugueses da época.

Começou por ser, em 1919, um projecto à escala do bairro de Campo de Ourique, em Lisboa. Foi aí que a Universidade Popular Portuguesa nasceu e teve a sua sede, na Cooperativa A Padaria do Povo. Desenvolveu-se depois para outras zonas da cidade, ao criar secções instaladas nas sedes de diferentes sindicatos: dos caixeiros, dos arsenalistas do exército, dos metalúrgicos e dos operários da construção civil. E chegou a Setúbal, onde funcionou na sede do sindicato dos trabalhadores do mar.

Em 1930, o secretário-geral da Universidade Popular Portuguesa era o anarco-sindicalista José Carlos de Sousa. Ele contou então que esta obra era “devida a um feliz momento de inspiração de um nosso dedicado consócio que, nessa iniciativa se viu acompanhado por muitas pessoas que incondicionalmente lhe prestaram a sua coadjuvação. Esse consócio é o Dr. Ferreira de Macedo, cuja energia e fé nunca é demais encarecer. À sua firmeza e saber se deve a conservação e desenvolvimento do nosso instituto, visto que não se limitou apenas a ter a ideia e a efectivá-la, mas antes a amparou com a sua prodigiosa actividade, através de mil dificuldades em que outros soçobrariam, cheio de confiança no futuro da obra que tanto o empolgava. E, com efeito, a Universidade aí está honrando como sabe e pode o nome do seu fundador” [O Rebate, 08/07/1930, p.2].

Inúmeros documentos e outros testemunhos confirmam este papel de Ferreira de Macedo como principal obreiro da Universidade Popular Portuguesa. Neste ano do centenário da revista Seara Nova, vale a pena ler, por exemplo, o que aí escreveram Alexandre Vieira e Luís Câmara Reis, aquando da morte de Ferreira de Macedo [Seara Nova, Outubro 1959, pp. 316 e 325).

Mas o seu contributo individual concretizou-se e foi potenciado no seio de um trabalho colectivo, em que avultaram também os contributos de José Carlos de Sousa e de Bento Jesus Caraça. E tudo isto assentou na organização da classe trabalhadora: uma cooperativa e pelo menos cinco sindicatos (do antigo movimento sindical livre que foi dissolvido pela ditadura, em 1933).

Assentou… e assenta ainda: esse trabalho colectivo é hoje continuado pela sociedade A Voz do Operário, que herdou e mantém a antiga biblioteca da Universidade Popular Portuguesa.

IV

O professor Ferreira de Macedo era sócio da A Voz do Operário. E teve aqui três intervenções que não devem ser esquecidas.

Em Janeiro de 1934, ele proferiu na A Voz do Operário uma conferência de cariz pedagógico, intitulada “As tarefas actuais de todos os professores-educadores”.

A revolta operária do 18 de Janeiro tinha sido esmagada há poucos dias. E na Alemanha, os nazis já estavam no poder fazia um ano. Ferreira de Macedo apontou então: “atravessamos um dos momentos mais graves, se não o mais grave, da nossa civilização. Estamos nas vésperas duma nova grande guerra entre nações […]; e vivemos ao mesmo tempo uma época de cruéis lutas sociais, dentro de cada nação”. Perante este quadro, afirmou uma mensagem de esperança, com a sua “fé sincera e entusiástica no valor da vida e no poder da educação”. (A Voz do Operário, Junho 1934, p.3]

Já depois da derrota do fascismo na 2ª Guerra Mundial, em Novembro de 1945, Ferreira de Macedo vinha de novo proferir uma conferência na A Voz do Operário, dessa vez sobre “Cultura popular”. Mas já no próprio dia, esta conferência foi proibida. 

Em Janeiro de 1949, Ferreira de Macedo subiu ao palco do salão da A Voz do Operário para dar a cara pela oposição à ditadura: aqui presidiu a um comício da campanha de Norton de Matos.

Luís Carvalho

Investigador

Artigo originalmente publicado no jornal A Voz do Operário a dia 03 de Agosto de 2021 

https://vozoperario.pt/jornal/2...

domingo, 1 de agosto de 2021

Pandemia de desflorestação – João Camargo

A Comissão Europeia reviu a sua directiva de energia renovável, apresentando-se maquilhada de verde enquanto garantia que a queima de árvores e florestas para produzir energia é “sustentável” e, “carbono zero”. Em plena crise climática, as florestas um pouco por todo o mundo ardem, transformando este contrabalanço do aumento de temperatura e do dióxido de carbono num sistema degradado, com a contração das áreas florestais, vítimas em grande medida da cobiça dos países ricos. Simultaneamente, numa espécie de vingança biológica, é no interface da desflorestação que se produzem as pandemias actuais e futuras.

A desflorestação intencional é uma declaração de guerra à vida. As florestas globais estão altamente fragmentadas, vítimas da cobiça capitalista por solos, madeira, animais, propriedade. Segundo o Global Forest Watch, 411 milhões de hectares – uma área maior do que a Índia – de cobertura arbórea foram perdidos entre 2001 e 2020. Em período semelhante, perderam-se 64,7 milhões de hectares de florestas primárias húmidas, o equivalente à área de França. Os diversos ecossistemas florestais forneceram estruturas organizadoras da vida durante centenas de milhões de anos, produzindo e reciclando energia, água, nutrientes e beneficiando a biodiversidade que usou essa abundância e esse excedente. Nós, enquanto espécie, beneficiamos-nos também desses sistemas, e tememo-los também pela sua força, pela sua diversidade, pela sua vastidão. A soberba do capitalismo enquanto visão do mundo levou uma parte da Humanidade a enfrentar esse temor com subjugação, com exploração e com destruição.

Se a principal causa da desflorestação é a cobiça pelos valores naturais que residem nas florestas – árvores, madeira, frutos, resinas, animais, plantas, tantas outros seres e matérias úteis para nós e para a natureza –, o que sobra depois da rapina – solos, alguma fertilidade natural e zonas a lotear – é a devastação absoluta da complexidade e da abundância. A desflorestação produz escassez, debilidade e doença. Literalmente mata-se a galinha dos ovos de ouro.

Que não haja qualquer equívoco: as empresas ditas “florestais” não trabalham em florestas, excepto naquelas que destroem, operam no campo da extração. Monoculturas de plantas de espécies florestais nunca são florestas. Muito mais grave: estas monoculturas são frequentemente introduzidas em zonas de floresta que foram saqueadas, substituindo as florestas que antes aí estavam por uma aberração biológica que só cabe na cabeça de quem acha que a natureza funciona como uma fábrica de salsichas.

A desflorestação, em particular nos países mais pobres, aqueles com processos de industrialização mais tardios, é onde os patogénicos que criarão as pandemias do futuro surgem. Menos biodiversidade significa efectivamente mais riscos de pandemias. Quando há uma abundância de plantas e animais num ecossistema, os vectores de transmissão serão muitas vezes anulados nas centenas ou milhares de espécies em vez de passarem para os animais domésticos ou para humanos.

O local da desflorestação é a zona quente de transmissão das pandemias: o corte das árvores que faz com que animais percam o seu habitat e se desloquem para os interfaces rurais, as espécies voadoras (como os super-dispersores morcegos) e as terrestres também. As estradas que cortam as florestas primárias para poder executar o trabalho de extração dos “recursos” tornam-se estradas de doença, onde as espécies oportunistas como ratos, pulgas ou mosquitos apanharão as boleias para entrar e sair. As florestas fragmentadas, isoladas entre estradas e descampados, onde muitas vezes são introduzidas a agricultura e a pecuária, tornam-se depósitos de doença e onde antes o equilíbrio se mantinha, agora transborda. Os animais selvagens tentam adaptar-se a esta pobre realidade, atravessando os interfaces com gados, agricultura e comunidades humanas, com estados imunológicos necessariamente mais deprimidos, e tornando-se portadores ainda mais susceptíveis de bactérias, vírus e outros agentes de doença.

Embora a Humanidade sempre tenha cortado árvores, a desflorestação como processo industrial surge em particular a partir dos anos 70 do século passado, levada a cabo como resposta à intensificação da globalização capitalista. As florestas são consideradas zonas inúteis que podem ser substituídas por espaços para introdução de “commodities” transacionáveis no mercado global, exigidas pelos programas de austeridade, o “ajustamento estrutural” nos países da América Latina, Sudoeste Asiático e África, imposto pelos braços políticos do capitalismo neoliberal – FMI e Banco Mundial. Nos últimos 40 anos vimos surgir nos interfaces com a floresta várias doenças que, em qualquer outro momento da História em que houvesse menos cuidados de Saúde, poderiam ter dizimado grande parte da população humana: HIV, Gripe Asiática, SARS e MERS, Gripe Suína, Ébola, Zika ou COVID-19.

A directiva de energias renováveis da União Europeia é um agente activo de desflorestação quer na Europa, quer fora dela. Não nos enganemos: o capitalismo não conseguiu até agora resolver a pandemia de Covid-19 por causa do lucro que é exigido pelos donos do capital. O capitalismo não vai resolver a crise climática, recusando-se a fazer os cortes necessários de emissões e aposta todas as suas fichas em soluções falsas para enganar a sociedade. A plantação de árvores por parte de empresas “florestais” uma das mais famosas soluções falsas. É preciso plantar florestas para ficarem nos sítios, para criarem os sistemas organizadores de vida sem os quais nós não podemos sobreviver, e isso não dá lucro. Em capitalismo não há empresas que façam coisas que não dêem lucro, e por isso não vão resolver essa crise. A UE e as outras estruturas do capitalismo global só vão desencadear novas crises e novas pandemias, desflorestando o mundo para fingir que é possível manter os atuais níveis de produção, consumo e energia dos países ricos, e em particular permitir que menos de 0,01% da população possa viver como se fossem deuses, incluindo pequenas excursões turísticas ao espaço em falos gigantes.

Artigo originalmente publicado no Jornal Expresso a dia 30 de Julho de 2021.