sábado, 29 de abril de 2023

CARTA DE ALFREDO COSPITO

A minha luta contra o 41-bis é uma luta individual de um anarquista, eu não faço nem recebo recados. Simplesmente não posso viver num regime desumano como o 41-bis, onde não posso ler livremente o que quero, livros, jornais, revistas anarquistas, de arte e ciência, bem como de literatura e história. A única hipótese que tenho de sair é renunciar à minha anarquia e vender alguém para que ocupe o meu lugar.

Um regime onde não posso ter nenhum contacto humano, onde nem sequer posso ver ou apanhar uma mão-cheia de erva ou abraçar uma pessoa querida. Um regime onde as fotografias dos teus pais são confiscadas. Enterrado vivo numa sepultura num lugar de morte. Continuarei a minha luta até às últimas consequências, não por uma «missão», mas porque isto não é vida.

Se o objectivo do Estado italiano é fazer-me «dissociar» das acções dos anarquistas de fora, que fiquem a saber que, como bom anarquista, não aceito recados. Acredito que cada qual é responsável pelas suas próprias acções, e como membro da corrente auto-organizada não estou «associado» a ninguém e por isso não me posso «dissociar» de ninguém. A afinidade é outra questão. Um anarquista coerente não se afasta de outros anarquistas por oportunismo ou conveniência.

Sempre reivindiquei com orgulho as minhas acções (inclusivamente em tribunal, é por isso que aqui estou) e nunca critiquei os demais companheiros, muito menos quando existe uma situação como esta onde me encontro. O maior insulto para um anarquista é ser acusado de dar ou receber ordens. Quando estava no regime de Alta Segurança, também tive censura e não enviei nenhum pizzini [pepelinhos através dos quais os chefes mafiosos supostamente passam as suas ordens], mas sim artigos para jornais e revistas anarquistas. E, acima de tudo, podia receber livros e revistas, e escrever livros, ler o que queria, até me era permitido evoluir, viver.

Hoje estou disposto a morrer para fazer o mundo compreender o que é realmente 41-bis; 750 pessoas sofrem-no sem protestar, continuamente transformadas em monstros pelos meios de comunicação social. Agora é a minha vez, vocês transformaram-me num monstro tachando-me de terrorista sanguinário, depois santificaram-me como mártir anarquista que se sacrifica pelos demais, para depois me voltarem a transformar num monstro, num terrível espectro. Quando tudo tiver terminado, serei sem dúvida elevado aos altares do martírio. Não, obrigado, não estou com disposição, não me presto aos vossos jogos políticos sujos.

Na realidade, o verdadeiro problema do Estado italiano é que se cheguem a saber todos os direitos humanos que são violados neste regime 41-bis em nome de uma «segurança»» pela qual tudo é sacrificado. Óptimo! Terão de pensar duas vezes antes de pôr aqui um anarquista. Não sei quais são as verdadeiras motivações e manobras políticas que estão por trás disto. E porque é que alguém me usou como uma «maçã envenenada» neste regime. Era muito difícil não prever quais seriam as minhas reacções a esta «não vida». O Estado, o italiano, é um digno representante da hipocrisia de um Ocidente que dá continuamente lições de «moral» ao resto  do mundo. O 41-bis deu lições que foram bem aprendidas por Estados «democráticos» como o turco (os colegas curdos sabem algo sobre isto) e o polaco.

Estou convencido de que a minha morte será um obstáculo para este regime e que as 750 pessoas que têm sofrido com ele durante décadas poderão viver uma vida que valha a pena, independentemente do tenham feito. Amo a vida, sou um homem feliz, não trocaria a minha vida pela vida de outra pessoa. E é porque a amo que não posso aceitar esta não-vida sem esperança.

obrigado, companheiros, pelo vosso amor.

Sempre pela Anarquia. Nunca curvado.

Alfredo Cospito 

Em: MAPA/JORNAL DE INFORMAÇÃO CRÍTICA/MARÇO-MAIO 2023, pag. 29

quinta-feira, 27 de abril de 2023

“proTEJO discorda da construção da barragem do Alvito e considera lamentável a apresentação para consulta pública

de um powerpoint sem contexto nem devidamente fundamentado”

O proTEJO – Movimento pelo Tejo discorda da construção da barragem do Alvito, inserida num pacote de “Soluções para o reforço da resiliência hídrica do Tejo”. Esta é uma “solução” onerosa e inócua para o reforço da resiliência hídrica, e irá agravar o já precário estado ecológico do rio Tejo, sendo a primeira barragem que irá servir a estratégia do “Projeto Tejo” que prevê a construção de novos açudes e barragens no Tejo.

Considera-se lamentável a ausência de informação devidamente fundamentada e a falta de transparência e profissionalismo com que as ditas “Soluções para o reforço da resiliência hídrica do Tejo” foram apresentadas à consulta pública, que hoje termina, na forma de um pobre powerpoint governativo genérico pouco informativo, sem contextos e propostas claramente fundamentados, impedindo uma análise informada e uma apreciação exaustiva das ditas “Soluções”.

Esta falta de transparência é agravada pelo facto do processo de consulta pública das ditas “Soluções”, há muito tempo preconizadas, ocorrer apenas 3 meses após o término do período de consulta pública da proposta de Plano de Gestão da Região Hidrográfica do Tejo e Oeste - 2022/2027, no dia 30/12/2022, não permitindo i que as ditas "Soluções” fossem consideradas e convenientemente diagnosticadas quanto às graves pressões e impactos no uso da água para finalidades humanas e ecológicas e impedindo que fosse realizada uma consulta pública informada, ampla e participada em sede própria do 3º ciclo de planeamento da gestão da água no qual atempadamente o proTEJO apresentou a sua posição.

Questionamos ainda quanto ao motivo pelo qual a Área Metropolitana de Lisboa foi excluída da apresentação destas “Soluções” sendo certo que o estuário do Tejo irá sofrer os fortes impactos ecológicos deste projeto de novos açudes e barragens no Tejo pela diminuição do caudal de chegada ao estuário e à foz. Também foi excluída a Comunidade Intermunicipal do Alto Alentejo.

Qualquer que seja a decisão tomada importa que seja realizada uma Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) pelo Ministério do Ambiente que integre o desenvolvimento de estudos de projetos alternativos com base nas metas da Estratégia para a Biodiversidade 2030 e das Diretivas Quadro da Água, Aves e Habitats, tendo em conta todos os contextos , ecológicos, financeiros e tecnologicamente mais eficazes, numa lógica de política de recuperação de custos dos serviços da água, de salvaguarda do bom funcionamento dos ecossistemas e de uso adequado do erário público considerando o custo de oportunidade destes projetos.

A “Solução” da barragem do Alvito não tem significância se a compararmos com a distribuição a 100% do caudal anual mínimo já previsto na Convenção de Albufeira com um regime de caudal ecológico regular, contínuo, instantâneo e medido em m3/s, de acordo com a sazonalidade já expressa nos caudais trimestrais da Convenção.

Esta distribuição do caudal anual mínimo da Convenção de Albufeira asseguraria um caudal de 45 m3/s no trimestre de verão, mais do que o dobro do máximo de 20 m3/s da contribuição da barragem do Alvito proposta pelo Ministério do Ambiente, em especial quando este cenário com barragem do Alvito apenas acresce 6 m3/s ao caudal máximo do cenário sem barragem (14 m3/s), evitaria a degradação dos ecossistemas aquáticos que estão na base da sustentação da Vida e o desbarato de 500 M€ do bolso dos contribuintes em obras hidráulicas desnecessárias (360 M€ barragem e 100 M€ do túnel).

A solução mais simples, e que é exequível, é a implementação de caudais ecológicos regulares vindos de Espanha e não inventar justificações para os custos adicionais astronómicos para os contribuintes portugueses - o volume de 2700 hm³ de caudal anual mínimo estabelecido na Convenção de Albufeira é suficiente e tem sido cumprido mesmo em anos de estiagem, faltando apenas exigir que possa fluir para Portugal respeitando um regime de caudais ecológicos como determina a Diretiva Quadro da Água.

O que mudou para se optar pela construção da barragem do Alvito que tinha ficado suspensa para "encontrar soluções de otimização" por não ser considerada rentável pela EDP?

Convém ainda lembrar que a construção da barragem do Alvito irá destruir valores ecológicos ao submergir o ecossistema florestal, bem como agravar as alterações climáticas pelas consequentes emissões de gases com efeitos de estufa associadas ao metano emitido pela degradação da sua matéria orgânica na albufeira.

O movimento proTEJO compromete-se a juntar esforços para impedir que seja dada a última machadada no rio Tejo com a construção dos novos açudes e barragens desejados pelo “Projeto Tejo”, designadamente, a barragem do Alvito, o túnel do Cabril a partir do rio Zêzere na barragem do Cabril para o rio Tejo na barragem de Belver, e os novos 4 açudes e 2 barragens de Abrantes até Lisboa, fragmentando de 20 em 20 km os últimos 127 km de rio livre.

A construção deste conjunto de obras hidráulicas desnecessárias custará aos contribuintes mais de 1/3 da bazuca europeia, mais de 5 mil milhões de euros. 

Esta atitude é um assumir do fracasso de uma boa gestão da água da bacia do Tejo pelos Governos de Portugal e Espanha, bem como de um fracasso da cooperação transfronteiriça da gestão da bacia do Tejo face à incapacidade de suplantar uma Convenção de Albufeira que constitui um prejuízo para o rio Tejo desde a sua assinatura em 1998.

Mais uma vez, o verdadeiro exercício da soberania nacional seria que o Governo de Portugal requeresse ao Governo de Espanha que os 2.700 hm3 de caudal mínimo anual fosse enviado com a regularidade que serve o povo português, pois só assim poderá servir e que fosse revista a aplicação de uma Convenção de Albufeira que já prevê a definição de caudais ecológicos desde a sua assinatura em 1998, mas que há 24 anos mantém em vigor um regime de caudais mínimos que deveria ser transitório.

Este claudicar de responsabilidade apenas acontece para continuar a garantir a gestão flexível da água às empresas hidroelétricas espanholas de modo a que estas maximizem o lucro obtido enquanto causam danos à biodiversidade e prejudicam os usos da água para a agricultura, turismo de natureza, pesca, entre outros, em Portugal.

O ministério do Ambiente e da Ação Climática não pode, por um lado, deitar a toalha ao chão na negociação de caudais ecológicos vindos de Espanha e, por outro lado, optar pela via mais fácil de gastar os dinheiros públicos dos contribuintes sem antes avaliar alternativas que ofereçam resiliência tanto a curto como a longo prazo e que sirvam todos os portugueses tendo em conta a justiça intergeracional.

Em tempo oportuno, o proTEJO apresentou um memorando “Por Um Tejo Livre” aos Ministérios do Ambiente e Ação Climática e da Agricultura onde propõe várias alternativas, de entre as quais:

a)   sejam estabelecidos caudais ecológicos regulares no rio Tejo, contínuos e instantâneos, medidos em metros cúbicos por segundo (m3/s), e respeitando a sazonalidade das estações do ano, ou seja, maiores no inverno e outono e menores no verão e primavera, em cumprimento da Diretiva Quadro da Água, da legislação espanhola e portuguesa, por oposição aos caudais mínimos negociados politicamente e administrativamente há 24 anos na Convenção de Albufeira sem se concretizar o processo de transição para o regime caudais ecológicos que essa mesma Convenção prevê;

b)   seja definida uma estratégia de longo prazo assente na criação e restauração de corredores ecológicos de floresta autóctone, de vegetação ripícola e de biodiversidade ao longo dos rios e ribeiros que permita gerar, regenerar, reter e purificar água com a finalidade de alcançar a sua maior disponibilidade e qualidade, em paralelo com o aumento da capacidade de retenção de carbono que evite a intensificação das alterações climáticas que reduzem a precipitação e acentuam os períodos de seca;

c)   seja realizado um investimento de apenas 10 M€[1] na construção de uma Estação de Captação de Água diretamente do rio Tejo na zona da Lezíria do Tejo para uso agrícola à semelhança da Estação de Captação de Água da EPAL em Valada no Cartaxo que tem em uma capacidade nominal de captação de 240.000 m³/dia destinados ao consumo humano na área metropolitana de Lisboa.

A Estação de Captação de Água da EPAL em Valada capta água por gravidade na maré alta sem custos energéticos e na maré baixa com recurso a equipamentos de sucção (EPAL - Educação Ambiental: visita guiada à Estação de Captação de Água de Valada). Esta alternativa conjugada com a utilização de energias renováveis permitiria a obtenção de economias de escala com a redução dos custos energéticos na obtenção de água para as explorações agrícolas tão desejada pelos agricultores.

d)   seja promovida uma agricultura sustentável que tenha eficiência hídrica e preserve a biodiversidade e a sustentabilidade da Vida com apoios do Estado assentes nos meios financeiros que se pretendem destinar a obras hidráulicas desnecessárias.

Face a este cenário, terão de ser os cidadãos a apresentar uma Queixa à Comissão Europeia contra Portugal e Espanha pelos seguintes motivos:

1   Incumprimento da Diretiva Quadro da Água

A gestão das barragens de produção hidroelétrica com critérios meramente economicistas de maximização do lucro está a causar uma deterioração adicional do estado ecológico das massas de água do rio Tejo que impede que se alcancem os objetivos ambientais do nº 1 do Artigo 4º da DQA visto que não está assegurado um “regime hidrológico consistente com o alcance dos objetivos ambientais da DQA em massas de águas superficiais naturais” como decorre do documento de orientação nº 31 “Caudais ecológicos na implementação da Diretiva Quadro da Água”.

2   Inobservância da Estratégia Europeia para a Biodiversidade 2030

Estas obras hidráulicas na bacia do Tejo são, portanto, a contradição e perversão dos objetivos definidos pela União Europeia, subscritos por Portugal, ao pretender o aumento de barreiras à conectividade do rio Tejo.

A Estratégia Europeia para a Biodiversidade 2030 apresenta metas de restauro ecológico para os ecossistemas, importantes para a biodiversidade e o clima, destacando-se a importância de zonas húmidas, florestas e ecossistemas marinhos, assim como de rios, de forma a aumentar a sua conectividade.

Neste sentido, a Comissão Europeia estabeleceu a restauração de pelo menos 25 000 km de rios através da remoção de barreiras obsoletas e da recuperação de ecossistemas ribeirinhos como meta a alcançar no âmbito da Estratégia Europeia para a Biodiversidade 2030.

3   Incumprimento das Diretivas Aves e Habitats

O “Projeto Tejo” de novos açudes e barragens no Tejo afetará negativamente a proteção e conservação das espécies e habitats que ocorrem na Reserva Natural do Estuário do Tejo e na Reserva Natural do Paul do Boquilobo, Reserva da Biosfera da UNESCO, que são zonas especiais de conservação (ZEC), zonas especiais de proteção (ZEP) das aves, sítios de importância comunitária (SIC) da rede Natura 2000 (rede de áreas protegidas a nível Europeu) e zonas húmidas de importância internacional da Convenção de Ramsar.

O Tejo, a sustentabilidade da Vida e os portugueses merecem mais!

Bacia do Tejo, 24 de abril de 2023

Ana Silva e Paulo Constantino

Os Porta-Vozes do proTEJO

terça-feira, 25 de abril de 2023

25 DE ABRIL: O SANGUE DERRAMADO DAS ÚLTIMAS VÍTIMAS DA DITADURA FASCISTA

Na quinta-feira, dia 25 de Abril de 1974, enquanto o impasse se prolongava no Largo do Carmo, devido ao extremo cuidado, por parte do capitão Salgueiro Maia que comandava as tropas que sitiavam o quartel do Carmo (GNR), que tinha acolhido o presidente do conselho e o ministro dos negócios estrangeiros, para evitar derramamento de sangue ou estragos no património estatal (quartel da GNR), deu-se o cerco espontâneo da sede da PIDE/DGS, pelas pessoas que celebravam o fim da ditadura e apontavam o caminho que, desde logo, era necessário trilhar: extirpar pela raiz o aparelho repressivo do estado.

Perante a ausência de qualquer força militar, do movimento dos capitães, com vista a ocupar as instalações da polícia política assassina da ditadura (PIDE/DGS), as pessoas cercaram o edifício e gritavam: FIM à PIDE; VIVA A LIBERDADE; FASCISMO NUNCA MAIS. A PIDE respondeu, colocando os seus assassinos e trucidantes agentes nas varandas e janelas, varrendo com rajadas de metralhadora, as pessoas que expressavam o seu sentir, ferindo dezenas de pessoas, destas, as que foram aos hospitais para serem tratadas aos ferimentos, foram detida pela Polícia de Segurança Pública (PSP) e entregues à PIDE.

Enquanto tombados no chão, frente à sede da criminosa PIDE/DGS - polícia política da assassina ditadura fascista e colonialista - a esvair-se em sangue estavam quatro jovens corajosos que nos apontavam o caminho a seguir, cujo nome foi apagado da memória e da história, dos acontecimentos factuais do próprio dia 25 de Abril, apagando e branqueando a verdadeira face da ditadura, tal como o têm vindo a fazer desde então, a classe social que se foi instalando, retomando o poder, após um período de completo desnorte e fraqueza política, face ao forte movimento social e popular que espontâneamente se gerou no próprio dia 25 de Abril, com as pessoas na rua, a celebrar com emoção e grande fraternidade e solidariedade entre elas.

Para que conste, e a memória não nos seja roubada, aqui ficam os nomes daqueles que nos apontavam o caminho a seguir e foram assassinados, no dia 25 de Abril de 1974, pela ditadura fascista/colonialista:

José James Barneto, 37 anos; Fernando Luís Barreiros dos Reis, 24 anos; João Guilherme Rego Arruda, 20 anos; Fernando Carvalho Gesteira, 18 anos.

Como fica demonstrado: é falso que a ditadura fascista/colonialista caiu sem derramamento de sangue. 

Sendo verdade que o golpe de estado que derrubou a ditadura fascista/colonialista, levado a cabo pelo movimento dos capitães, não derramou nenhuma gota de sangue, muito pelo contrário, defendeu, protegeu e salvaguardou os seus mais altos criminosos representantes e todos os seus acólitos, inclusive, os que assassinaram, no próprio dia 25 de Abril de 74, os quatros jovens acima relembrados.

 

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Calibã e a Bruxa de Silvia Federici

De onde vêm os mecanismos de controlo do corpo feminino? Onde nasceu a violência sistémica contra a mulher? De que forma é que o advento do capitalismo contribuiu para as sucessivas vagas de violência contra ela? Quem tirou proveito da repressão das mulheres? Em Calibã e a Bruxa, Silvia Federici propõe-se a responder a estas (e outras) questões ao explorar as raízes históricas da opressão contra as mulheres.

Na sua obra, Federici percorre a posição da mulher trabalhadora na transição para o capitalismo, desde as revoltas populares da Alta Idade Média às mudanças introduzidas pela repressão imposta pela igreja católica.

Uma das propostas compreensivas lançadas na obra prende-se com a degradação da figura feminina ao longo do século xiv, abrindo caminho para a acumulação laboral e o estabelecimento de diferenciações de género na distribuição do trabalho na transição para o capitalismo. Este fenómeno abriu também portas, segundo a análise da autora, para um dos processos mais violentos da história, direcionado às mulheres, com consequências ainda hoje inscritas na nossa existência: a caça às bruxas.

Remetendo-nos para as revoltas populares dos séculos xvi e xvii, Federici expõe como qualquer resistência a uma usurpação aos bens comunais, que acompanhou a edificação das formas primordiais do estado capitalista, foi sucessivamente reprimida pela perseguição e desagregação de todas as formas de socialização coletiva: desportos, jogos, danças, festivais e afins. A progressiva descoletivização do trabalho reprodutivo e a imposição de um uso mais «produtivo» dos tempos de lazer, acompanhadas de uma crise populacional causada pela peste negra (que dizimou entre 30 a 50%% da população europeia) e da acumulação de riqueza de um setor da população, vieram introduzir biopolíticas de controlo à natalidade. A necessidade estatal de controlo (aumento) da natalidade, a fim de repor a mão de obra dizimada pela peste negra, vem, de acordo com a autora, inaugurar uma onda de repressão brutal contra as mulheres que detinham formas de controlar a natalidade e conhecimento acerca do processo reprodutivo. A necessidade de mão de obra acarreta a necessidade da sua produção - gestação, alimentação e cuidado da mão de obra só seria possível com o trabalho reprodutivo, progressivamente desvalorizado, atribuído às mulheres. A presente obra torna claro o contexto em que surge a caça às bruxas.

Apontando a lacuna que Michel Foucault deixou no seu trabalho ao excluir a caça às bruxas e a demonização do corpo da sua análise à disciplinarização do corpo, Federici apresenta estes processos como uma parte fundamental da subjugação da mulher na génese do capitalismo. A perseguição, agressão, violação e assassinato de milhares de mulheres durante a caça às bruxas deixa a nu o mecanismo que condenou as mulheres às sombras: «bruxas» eram todas que curavam, que detinham conhecimento, que abortavam, que eram casadas, que sabiam ler e escrever - alvos a eliminar, de forma violenta, para ceifar qualquer intenção de autodeterminação feminina.

A disciplina do corpo feminino, o seu controlo, a imposição do trabalho reprodutivo (e a sucessiva desvalorização deste) à mulher foram condição necessária para definir a classe trabalhadora na sua génese, excluindo inicialmente a figura feminina - ocupada com o trabalho reprodutivo, não remunerado -, e também para a disciplinarização violenta do «Novo Mundo».

Os parceiros de opressão (chamemos-lhe assim) da mulher, na era da caça às bruxas, foram as populações indígenas do chamado «Novo Mundo». Analisando os dispositivos de controlo utilizados para subjugar as populações nativas da América do Sul e África, a autora encontra vários pontos em comum na resistência à disciplinarização (seja ela a da moral cristã, seja a da colonização - ambas servindo a transição para o capitalismo): a remoção forçada de populações da sua terra de origem, o empobrecimento em larga escala e o lançamento de campanhas de «cristianização» para destruir a capacidade de autonomia e relação comunal.

Federici aponta a utilização de meios como a demonização e a desumanização das figuras do «nativo», à semelhança do que aconteceu com a «bruxa» europeia, para justificar a violência brutal com que estas populações foram dizimadas e subjugadas. Explorando vários mitos e a imaginário popular, refere, por exemplo, o mito do canibalismo em África ou em determinadas regiões da América do Sul como forma de desumanização das pessoas escravizadas, sendo este mecanismo de legitimação da exploração de mão de obra escrava. Federici afirma que a bruxa europeia, os nativos da América do Sul e os escravos africanos sofreram um destino comum: providenciar ao capital a mão de obra aparentemente infinita e gratuita necessária para a acumulação de riqueza.

A génese do patriarcado é complexa, e Federici propõe-se a contar a sua história desde o início. Este livro é uma peça incontornável na compreensão da condição feminina, da violência patriarcal e dos mecanismos de controlo do estado capitalista.

TERESA VELASQUEZ 

PELA BIBLIOTECA/LIVRARIA DAS INSURGENTES

LIVRARIADASINSURGENTESLISBOA@

Silvia Federici - Calibã e a Bruxa. As Mulheres, o Corpo e a Acumulação Original

Tradução: Pedro Morais, Edição Portuguesa 1.ª edição, 2020, Orfeu Negro.

Artigo originalmente publicado no MAPA / JORNAL DE INFORMAÇÃO CRÍTICA / MARÇO-MAIO 2023

 

 

quarta-feira, 19 de abril de 2023

CARTA ABERTA AO MINISTRO DO AMBIENTE E ACÇÃO CLIMÁTICA

Senhor Ministro Duarte Cordeiro,

Acaba hoje, dia 19 de Abril, o prazo para nos pronunciarmos sobre as alterações ao projecto de ampliação da Mina do Barroso.

Como somos solidários e apoiamos todas as pessoas e colectivos que discordam deste projecto, e outros semelhantes, decidimos tornar pública a nossa posição.

O Movimento Cívico Ar Puro expressa publicamente a sua discordância em relação ao projecto em questão nos termos que passamos a expor seguidamente.
 
 
O artigo 66 da Constituição da República prevê que “Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.” Este direito é um direito fundamental. O dito artigo enumera uma lista de deveres para garantir tal direito fundamental, indicando que “Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos: a) Prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão; b) Ordenar e promover o ordenamento do território, tendo em vista uma correcta localização das actividades, um equilibrado desenvolvimento sócio-económico e a valorização da paisagem; c) Criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico; d) Promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações; e) Promover, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e da protecção das zonas históricas; f) Promover a integração de objectivos ambientais nas várias políticas de âmbito sectorial; g) Promover a educação ambiental e o respeito pelos valores do ambiente; h) Assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com protecção do ambiente e qualidade de vida”.
 
Ora, este projecto de mina é incompatível com o direito fundamental a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado garantido pela Constituição da República, tendo em conta que resulta inevitavelmente na destruição de ecossistemas, na descaracterização permanente das paisagens e na perda da capacidade produtiva dos terrenos. Numa região agrícola em que a relação com a terra norteia noções de cultura, identidade, valor, sustentabilidade e autonomia, transformar contra a vontade popular o que são paisagens afectivas e campos de memória familiar em desolação é uma violência é um atentado à ideia de que em Portugal a democracia se faz com e para as pessoas. As poeiras, o ruído decorrente dos explosivos, o risco de contaminação e a convivência forçada com um projecto extractivista monumental são incompatíveis com a dignidade inalienável destas populações. Ademais, tendo em consideração a situação de stress hídrico que ameaça Portugal, os altíssimos níveis previstos de gasto de água conformam um cenário inaceitável, que faz adivinhar constantes instabilidades no acesso local a este bem comum. 
 
A zona onde se projecta a mina é reconhecida como Património Agrícola Mundial, uma designação reservada aos principais exemplos mundiais de sistemas liderados por comunidades locais que suportam o património cultural, a biodiversidade agrícola e a resiliência dos ecossistemas. Importa sublinhar que é a única região em Portugal a beneficiar desta designação e uma das únicas sete existentes na Europa. Barroso integra de forma sustentável a agricultura, a criação de gado, a silvicultura e a conservação da natureza. A região é famosa pelas suas raças autóctones de gado bovino, ovino e caprino, tal como pela produção de queijo e mel. Se há um futuro sustentável, ele faz-se apoiando estas comunidades e fazendo delas exemplos. Pelo contrário, este projecto de mineração sacrifica-as para benefício de indústrias e padrões de consumo movidos por lógicas de curto prazo e funciona em última análise como materialização de um sistema extractivista que não pode com sinceridade intelectual ser associado a uma transição energética justa ou sustentável. A electrificação da frota automóvel nos moldes actuais, por exemplo, representa uma total distopia extractivista e contribui para obstruir o facto de que este tipo de consumo individualizado não é compatível com um sistema económico que se possa perpetuar na Terra. 
 
Para concluir, cita-se aqui o que David R. Boyd, relator Especial das Nações Unidas para os direitos humanos e o meio ambiente, escreveu sobre o caso de Covas do Barroso: “as zonas de sacrifício são completamente incompatíveis com o direito humano a um ambiente saudável e ecologicamente equilibrado (artigo 66.º da Constituição Portuguesa) ou a um ambiente limpo, saudável e sustentável (Resolução 76/300 da Assembleia Geral da ONU.

segunda-feira, 10 de abril de 2023

FIM AO GÁS, RUMO À PRIMAVERA - Catarina Viegas

A Primavera começou no dia 21 de Março de 2023, um dia depois de ter saído o último relatório síntese do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC). Este relatório é produzido por um conjunto vasto e representativo de cientistas internacionais e é o resumo das principais conclusões e descobertas relativamente aos anteriores, publicados entre 2018 e 2023. Em palavras simples: sem ação climática decisiva por parte dos governos mundiais até ao final da década encaminhamo-nos para o colapso.

Para limitar o aquecimento da Terra a 1,5ºC, barreira teórica a partir da qual o sistema climático global começa a alimentar o aquecimento por si mesmo, é necessário cessar qualquer novo projeto de exploração de combustíveis fósseis. A Agência Internacional de Energia (AIE) também reitera esta ideia ao afirmar que quaisquer novos desenvolvimentos de petróleo ou gás colocam este limite em causa. Não só necessitamos de travar quaisquer novos projetos, como precisamos mesmo de fechar várias infraestruturas fósseis em funcionamento.

As políticas atuais dirigem-nos para um cenário de 3.2º de aquecimento acima dos valores pré-industriais, quando já sabemos há vários anos que é preciso reduzir 50% de emissões globais até 2030. O IPCC garante que não é uma lacuna tecnológica ou tampouco a falta de conhecimento que está a bloquear a transição. Isto é, por si, um facto simultaneamente frustrante e animador. Se, por um lado, revela como a máquina predadora do capitalismo fóssil é tão capaz de se autodefender, por outro, garante-nos o poder da ambição. Estes objetivos apenas são alcançáveis com uma transformação brutal do sistema económico a nível mundial, a par do justo comprometimento dos que têm responsabilidade histórica perante os danos: a indústria fóssil.

O ano que passou foi o ano de ressurgimento da indústria de gás. Sabendo que o gás é um combustível fóssil, qualquer projeto de expansão de gás é um atentado à nossa sobrevivência. Contudo, a invasão da Ucrânia pela Rússia e o consequente bloqueio parcial da entrada de gás na Europa, também se tornou uma oportunidade para as indústrias fósseis expandirem a sua infraestrutura, com planos de aumentar importações de países como Estados Unidos, Arábia Saudita, Qatar, Emirados Árabes Unidos ou Nigéria.

Projetos catastróficos que estavam parados, como LNG Moçambique e Rovuma LNG, também em Moçambique, foram apoiados financeiramente por bancos a nível internacional ou estão em negociações abertas. Outro projeto, como o gasoduto da África Oriental ( EACOP), continua a ter apoio financeiro para ser construído.

Sabemos também que organismos como a União Internacional do Gás (UIG), que representam o gás fóssil mundialmente, com 150 membros a responderem por 90% do mercado de gás fóssil, têm uma estratégia de comunicação e, portanto, um lobby, assente em puro negacionismo climático. As suas campanhas contra as restrições financeiras à expansão da rede de gás baseiam-se na narrativa (espante-se!) de que o gás é, por um lado, um baixo emissor de carbono e, por outro, um agente da redução da pobreza energética e monetária, servindo e melhorando a vida das pessoas.

Todos os projetos de gás são, além de uma bomba climática, um atentado à vida das comunidades. Milhões de pessoas no continente africano foram e continuam a ser deslocadas devido à construção de mais infraestruturas de gás, ora tornando-se refugiadas internas, ora vivendo em centros de refugiados. Muitas das famílias deslocadas encontram-se sem acesso à pesca ou a terras que eram os seus meios de subsistência, o que é mais um fator de empobrecimento de comunidades já vulneráveis.

Além disso, estas indústrias são a principal causa dos conflitos e violência vividos nos locais de extração, dada a indignação e negligência sentidas pelas comunidades que em nada beneficiam da sua atividade. Esta é a realidade inequívoca em Cabo Delgado, Moçambique, onde os projetos de LNG devastaram a sociedade e onde a própria viabilidade do Estado está em causa. Só os interesses da indústria podem ver no gás uma promessa de prosperidade e desenvolvimento, só a sua máquina comunicacional promete futuro no caos que semeia.

Com o ressurgimento do gás, lucros históricos viram a luz do dia. Enquanto acionistas dos gigantes da Saudi Aramco, ExxonMobil, Shell, Chevron, Total ou BP enchem os bolsos, milhões de pessoas perderam a capacidade de pagar as contas de eletricidade. A AIE declarou explicitamente que o gás sozinho é responsável por mais de 50% do aumento dos custos médios de geração de eletricidade. A crise de custo de vida que todos estamos a sentir não é mais do que um reflexo dos lucros de gás – pagos pelas pessoas de todo o mundo. Portanto, qualquer investimento feito em gás garante, neste momento, uma crise de custo de vida contínua e o caos climático.

Enquanto as empresas de gás lucram com a nossa miséria comum, aconteceu a Conferência Europeia de Gás em Viena, de 26 a 29 de Março, qual cereja no topo do bolo. Empresas de gás, financiadores, lobbyists e políticos encontraram-se para, atrás de portas fechadas, aprovarem novos projetos de gás fóssil que aquecerão os seus bolsos e o planeta. Os governos continuam complacentes com estes planos, o que os torna não menos cúmplices no caminho para o colapso. Ali, centenas de ativistas bloquearam a conferência anunciando que o próximo será o Último Inverno de Gás, o ocaso desta indústria. Enfrentaram forte repressão policial, o que deixou claro que a máquina do capitalismo fóssil continua a defender-se com toda a violência de que dispõe.

A indústria fóssil entende a ação climática ambiciosa como a sua principal ameaça existencial, porque esta se refletirá diretamente na diminuição dos seus lucros. Energia e Habitação são direitos básicos, não um luxo, e por isso é que no dia 1 de Abril também saímos à rua na manifestação pelo direito a uma casa para viver. E, por isso, é que no dia 13 de Maio acontecerá o protesto coletivo mais disruptivo e criativo da história do movimento climático em Portugal, com o bloqueio do Terminal de GNL do Porto de Sines.

São poucos a querer boicotar a Primavera, contra muitos a querer salvá-la. As novidades são antigas: a Primavera está nas nossas mãos – mas só chegará depois de garantirmos que este será, de facto, o último Inverno de gás.


Artigo originalmente publicado no Público a 07 de Abril de 2023.

 

quarta-feira, 5 de abril de 2023

"A Batalha das Mega Piscinas: Quem Quer a Guerra da Água?"



Estas "bacias" pretendem servir sobretudo, para reter água da chuva mas também prevêem o seu reenchimento através da bombagem subterrânea.
 
Este colectivo integra várias organizações ecologistas, sindicais, ... e conta com a adesão de vários agricultores e associações de agricultores.
 
De facto o que se continua a verificar é um abandono da actividade agrícola por parte dos pequenos e médios agricultores ( com centenas de suicídios pelo meio) por não conseguirem, ou não quererem , competir com a lógica e a capacidade produtivistas alcançadas pelos sistema agro-industrial. 
 
Isto tem conduzido ao açambarcamento continuo das terras férteis pelas grandes empresas do agro-negócio. 
Neste caso das "bacias " a bombagem dos lençóis freáticos profundos conduz à mobilização dos pequenos e médios agricultores que temem ver as suas fontes de água esgotadas ou reduzidas.

Os activistas reivindicam a transição agrícola com reavaliação das politicas, das práticas e dos modelos produtivistas. O que passa , entre outros, pelo cultivo de espécies menos exigentes em água, pela redução do recurso a pesticidas e a químicos de síntese .....e pelo reajustamento das políticas agrícolas ao nível dos subsídios e das condições de acesso à água.
 
Para cultivar o quê e e m que área? Para regar quantos hectares e como? Para servir quantos agricultores? Com que compromissos de redução de uso de pesticidas?.....

Ana Silva

terça-feira, 4 de abril de 2023

OH AS CASAS AS CASAS AS CASAS

Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras 
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
respirei - ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas

Em: Ruy Belo - Todos os Poemas, Círculo de Leitores, 2000, pp. 212/3.

segunda-feira, 3 de abril de 2023

DE COMO UM POETA ACHA NÃO SE HAVER DESENCRONTRADO COM A PUBLICAÇÃO DESTE LIVRO - explicação preliminar à sua segunda edição

No balanço que, em finais de 1969, publicou sobre livros de poesia que nesse ano apareceram, um crítico literário que aliás muito prezo disse que, com este Homem de Palavra[s] eu, como poeta, me havia desencontrado. Ora eu creio que isso não aconteceu, embora só agora o diga. O que aconteceu foi que mais uma vez a crítica - quando a havia, porque agora resta o primeiro de todos, João Gaspar Simões, a lutar ingloriamente contra moinhos de vento, lido talvez às escondidas pelos piedosos leitores da página literária do Diário de Notícias das quintas-feiras - se ficou num livro passado de um autor para o voltar contra os seus livros futuros, como se seus não fossem igualmente. Ora pode muito bem acontecer que os meus críticos tenham ficado pela Boca Bilingue e parece que nunca mais tenham lido os livros que posteriormente publiquei ou tenham esquecido os dois que publiquei antes desse.

Eu sei que Homem de Palavra[s] talvez não atinja a exigência de Boca Bilingue, mas mesmo este livro, na realidade, creio que está longe de ser o mais equilibrado dos meus nove, não contando, portanto, com essa plaquette, «Homenagem talvez Viagem», editada por Papeles de son armadans, a conhecida revista dirigida em Palma de Mallorca por Camilo José Cela e essa crítica furibunda à política oficial do tempo, quando o Papa teve a rara coragem de receber os chefes nacionalistas africanos das antigas colónias portuguesas. Este poema permanecerá inédito, porque não tive a valentia de o dar então à estampa com medo não tanto da censura como dos mecanismos da repressão e hoje seria fácil demais dá-lo a conhecer, além de quer uma quer o outro poderem não ter esse tal equilíbrio que sempre exijo dos meus livros. O que procuro evitar a todo o custo é repetir um livro, se possível um simples poema ou processo por mim já levados porventura até à exaustão. Cada livro meu, quer-me a mim parecer, é um livro diferente do anterior. Em Homem de Palavra[s], parece-me ter escrito poemas, introduzido processos, buscado formas que nunca escrevera, introduzira ou buscara até então. A exemplo, «Algumas proposições com crianças» ou «Algumas proposições com pássaros e árvores que o poeta remata com uma referência ao coração» são poemas que ninguém, segundo julgo, nem eu próprio escrevera antes. Isto para dar apenas um exemplo.

Também eu já tive a minha hora de vão catolicismo, poderia dizer eu, a propósito de Homem de Palavra[s], parafraseando Antero. As epígrafes, pedidas a dois apóstolos, não permitem classificar este livro como cristão. Já para a Boca Bilingue eu dispunha de um versículo do livro da Sabedoria que diz: «A sabedoria detesta a boca bilingue». Não o introduzi por eventualmente conferir um sentido unívoco a um segmento de linguagem que eu queria plurivalente e evasivo, configurando o verdadeiro sentido da palavra poética. Se as epígrafes pedidas à Bíblia conferissem o cariz cristão a quem delas se socorre muitos autores teriam de ser considerados cristãos, quando tal ideia nunca lhes teria passado pela cabeça nem pelo coração. Para evitar equívocos, eliminei o verso final de «Corpo de Deus», além de poder afirmar que «O maná do deserto», «Lot fala com o anjo», «Senhor da palavra», «Palavras de Jacob depois do sonho» e evidentemente o soneto «Eu vinha para a vida e dão-me dias» não têm conteúdo cristão. O clima do livro já não é o da fé, aliás perdida, que percorria de lés a lés as páginas de Aquele Grande Rio Eufrates; constituem o resultado de leituras profissionais e obrigatórias de livros sagrados tomados, no entanto, como livros profanos. É o ambiente dos gregos. Eu próprio viria a escrever em «Do sono da desperta Grécia», poema incluído no livro Transporte no Tempo: «Pela primeira vez o homem se interroga / sem livro algum sagrado sob a sua inteligência», «O maná do deserto» não fala aliás fundamentalmente da Bíblia. Se as «codornizes» são as de uma passagem da Bíblia, «os pássaros» são do filme homónimo de Alfred Hitchcock e a referência ao aviário do Freixial é a do aviário dessa povoação, que conheci um dia que ao Freixial me desloquei, para almoçar a convite do Alexandre O´Neill, que lá se isolava quando queria escrever, como aliás o fazia, sei-o hoje, Alves Redol, que lá escreveu, pelo menos, Constantino Guardador de Vacas e de Sonhos, como ele próprio conta na breve introdução a este livro.

Eliminei um único poema: o «Censo populacional do Vietnam» Homem de Palavra[s] não perde com isso em poder de intervenção e o livro, segundo me parece, só ganha em ser aliviado de uma composição frouxa, que não se aguentava uma vez terminada a agressão americana.

Em meu entender, a poesia de intervenção tem de partir de um grande sentido de justiça ou de revolta que o poeta fez seus, como o amor num poema de amor, e tem de ser discreta se não quiser ser demagógica. Era assim quando havia censura (ou o  eufemístico «exame prévio») e é assim hoje, quando toda a arte em princípio é livre. Por isso eu contraponho à palavra «pátria», que reputo arrogante, a evocar bandeiras desfraldadas e desfiles militares, quando em Portugal ainda não havia nada (estou, como é óbvio, a parafrasear um verso meu: «No meu país não acontece nada», do poema «Morte ao meio-dia», incluído em Boca Bilingue) e hoje volta a parecer não acontecer nada, contraponho - dizia eu - à palavra «pátria» a palavra «país», humilde e discreta, como digo designadamente em «Aos homens do cais»: «Portugal não é pátria mas país». No poema de  Transporte no Tempo, intitulado «Peregrino e hóspede sobre a terra», recuso a própria noção de país: «Sou donde estou e só sou português / por ter em portugal olhado a luz pela primeira vez». E em «À memória da Céu», levanto o problema da nacionalidade dos mortos: «Qual é a tua nacionalidade / tu que antes eras portuguesa?» No  entanto, neste livro que eu considero realista, permito-me liberdades como «Os bravos generais», poema sugerido pela queda do alto de um escadote do general Câmara Pina, mas recuso liberdades como a inclusão de um poema escrito sobre a recepção pelo Papa aos chefes dos movimentos de emancipação dos territórios coloniais sujeitos ao jugo militar português.

Alguém me fez um reparo por, no poema da série «Portugal sacro-profano», intitulado «Lugar onde», eu me ter referido aos «dorsos alvos» dos comboios. Mas isso vem da minha experiência suburbana da linha de Sintra, experiência semelhante à dessa pequena obra-prima de Rui Cacho que é o conto «O comboio, Maomé e eu», incluído no livro Funeral sem Banzé, livro esse que, embora datado de 1967, escapou à quase totalidade da crítica literária portuguesa, que efectivamente não merecia semelhante livro, de um escritor novo e quase completamente desconhecido, além disso edição do autor, reflexo de timidez e não de ausência de talento, de muito talento.

Nesse poema «Lugar onde», recorro muito ao labor limae dos clássicos. Em poesias, como se sabe, é muito importante o trabalho de limar, emendar, corrigir, até conquistar a naturalidade, se possível a simplicidade, que são uma conquista e não um dado gratuito dos deuses. Nesse aspecto, sem Sá de Miranda seria impensável Camões. Quanto não terá custado a António Botto, um dos maiores poetas portugueses deste século, essa pequena maravilha que é «À memória de Fernando Pessoa». Voltando ainda a «Lugar onde», eu creio que é um poema de intervenção e o continua a ser agora quando Abril passou e, no entanto, não sabemos ao certo em que mês estamos. Chamar a Portugal «país sem olhos e sem boca» creio que é elucidativo e depois dizer «país palavra translúcida / palavra tensa e densa com certa espessura / (pátria de palavra apenas tem a superfície)». No final do poema, procedo ao apanhado, à recolecção da enumeração dos três temas esparsos afinal ao longo dos versos que acabo de alinhar: país, poema, homem. E talvez sejam esses três grandes temas deste livro.

Já no poema «Vila do Conde», pertencente aliás à mesma série, que já vem de Boca Bilingue e que não sei ainda se terá continuação («Portugal sacro-profano» foi um título que fui buscar a um livro editado em Lisboa na oficina de Miguel Manescal da Costa, impressor do Santo Ofício, no ano de 1767 por Paulo Dias de Niza), no poema «Vila do Conde», dizia eu, o que assegura a progressão do poema é um processo diverso: a repetição do verso «o lugar onde o coração se esconde», que consegue chegar até à última proposição do poema, entre as mais variadas rimas, sem rimar; ao chegar aí, apresenta uma rima completa ou consoante com «Conde» (Vila do Conde, finalmente nomeada, era o nome da terra que desde o princípio se esperava, criando como que um suspense) e uma rima incompleta ou toante com a palavra-rima do verso intermédio: «fronte» A rima final entre dois versos no final de um poema sem rimas até aí devo-o à lição de António Botto.  Apraz-me mencionar esta dívida quando ainda resta um certo prestígio de José Régio. O poeta da pureza do ritmo é verdadeiramente António Botto É uma pena que não haja uma boa edição das suas Canções.

Mas uma rima a que muito recorro é aquela a que alguns autores chamam aliterante: rima parcial em que, a partir da última sílaba tónica, se repetem os sons consonânticos e não os sons vocálicos. Um exemplo dessa rima encontramo-lo, logo neste livro, na composição «Os cemitérios tributários», que começa por se verificar logo no título, com a oposição das vogais tónicas uma à outra, mantendo-se idênticos os restantes sons num e no outro caso a partir da sílaba tónica. Trata-se de um pequeno afloramento de neobarroquismo na poesia moderna, o que não exclui a sua sedução afim pela poesia clássica. De olhos postos no futuro, o poeta moderno escreve com toda a poesia anterior, com toda a poesia e a arte anteriores e contemporâneas por trás. Em «Os Cemitérios tributários», rimam «unha»-«minha», «jaspe»-«chispe», «asse-o»-«ócio», «barco»-«berço», «vento»-«minto», «vício»-«violáceo», «livra»-«palavra», «borco»-«verso», e, além disso, declaro: «Do jogo ninguém me livra». Em «Um dia não muito longe não muito perto», meditada previsão da minha ambicionada morte, edifico o poema sobre as palavras-rima «farto», «perto», «hirto», «absorto», «surto», em que faço suceder as vogais a, e, i, o, u, para depois recoligir as palavras-rima em dois simples versos - «um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto / não muito perto desse tal surto» - e fazer rimar consonanticamente «absorto» com «morto» dentro, creio eu, de um clima de fluidez que não altera o mínimo que seja a naturalidade do que tinha para dizer. Uma noite, na Cooperativa Piedense, onde fui na companhia de Marias Teresa Horta e Armando da Silva Carvalho, pediram-me precisamente que desmontasse este poema. Não o fiz então por falta de vontade. Se quem mo pediu agora eventualmente me ler que me releve a falta. Quem desmontava muito bem os seus poemas em grupo era Vitorino Nemésio. Guardo uma inolvidável recordação de uma sessão dessas. Foi na noite de 19/III/1965 em casa de Luís Forjaz Trigueiros. Conservo, como recordações dessa noite, a primeira edição do Livro de Sonetos que Jorge de Lima trouxe, já completamente elaborado, de uma clínica do Rio de Janeiro onde dera entrada para uma cura de sono, primeira edição com dedicatória autógrafa do vate brasileiro para Forjaz Trigueiros e por este endossada a mim e dentro, num papel solto, autógrafa também, uma «Verborreia poeticástrica» do mestre recentemente desaparecido que começa: «A minha emoção gelada/Foi há muito aproximada..»

A rima deve ser um apoio e não uma cadeia. Também em «Na morte de Nicolau» tenho um, exemplo de rima aliterante, ao fazer rimar «subi-la» com «amarela», num esquema de rima interpolada.

Alguém estranhará, porventura, que eu, num poema como «Sexta-feira sol dourado», imortalizei afinal a figura do ex-almirante Henrique Tenreiro, de tão triste memória  para todos nós. Mas eu nomeio, conforme os casos para exaltar ou para o condenar e, para este último efeito ninguém melhor que o antigo dono dos pescadores e do peixe português. Ainda me lembro do carnaval que ele, juntamente com outras pessoas do antigo regime como o eng.º Daniel Barbosa, organizou à saída da câmara ardente do Eng. Paulo de Barros, irmão do prof. Henrique de Barros mas cunhado de Marcelo Caetano. Nunca vi semelhante falatório, semelhante exuberância de gestos, semelhante hipocrisia a dois passos de um defunto. Eu viria a repetir o meu ataque ao nefando almirante no jornal A Bola, que de um modo geral não ia à censura e onde eu, em princípio, podia ser muito mais livre. Foi a propósito da atribuição, pela Santa Sé, da Ordem do Santo Sepulcro, ao «ilustre homem do mar». Estas atribuições não eram nem são para admirar. Aquando da morte do Cardeal Cerejeira, que infiltrara nas consciências os temores e receios que Salazar instilara exteriormente na ordem - nas ruas, nos fortes, nas próprias casas particulares - também a efeméride foi saudada pelo poder civil como uma perda nacional. Não devemos ter demasiadas ilusões acerca do poder, a não ser que esse assuma o nome de Vasco Gonçalves, que aliás não devia poder por aí além.

Em «O Portugal futuro» já nos surge um país descolonizado - «Poderá ser pequeno como este / ter a oeste o mar e a espanha a leste». José Magalhães Godinho, esse grande português, na carta em que me agradecia o livro, sublinhava como eu estava disposto a renunciar ao passado como condição do futuro: «Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz / mas isso era o passado e podia ser duro / edificar sobre ele o portugal futuro». O peixe da infância é mesmo o sável. Vinha nas cheias do Rio Maior, quando os barcos navegavam entre cepas. Neste poema aparecem as assonâncias tão do meu agrado: «aonde o puro pássaro é possível».

Em «Cinco palavras cinco pedras»», contrapunha «antigamente» a «hoje», «escrevia» a «tenho» e manifestava a minha desistência. Isto, repare-se bem, era em 1969 ou 1968. Depois abundante água correu sob as pontes da minha posição de desistente. Quem então me acusou de desistência não sei se o faria hoje. Além de que era estender o ambiente de um poema, normalmente breve, ao clima de todo um livro. Aliás, como me observou, salvo erro, o meu amigo João Bénard da Costa, «Nós os vencidos do catolicismo» seria o poema de uma geração, onde a frase «meu deus porque me abandonaste» significaria, como em José Régio, um definitivo abandono dos homens por parte de Deus. Cristo na cruz ver-se-ia completa e definitivamente abandonado.

A influência do cinema é notória neste livro, mais que em qualquer outro meu. Mesmo poema realista como «Aos homens do cais» e «Os estivadores» foram escritos sobre diapositivos, com o campo do olhar já claramente delimitado. Mas «Humphrey Bogart» e principalmente «No way out», «Vício de matar» e «Esplendor na relva» são poemas onde o cinema me ensinou a ver. No meu livro Transporte no Tempo ainda aparecerá «Na morte de Marilyn» mas o poema limita-se à tragédia da artista, como protótipo de tragédias semelhantes que mais ou menos de perto acompanhei.

Ninguém, no futuro, nos perdoará não termos sabido ver, esse verbo que tão importante era já para os gregos. É de notar que, em «Esplendor na relva», se recolhe o momento preciso em que Natalie Wood, actriz maravilhosa, que no filme encarna a delicada e fresca figura de Deanie Loomis, muito bem dirigida por Elia Kazan, procura em vão comentar numa aula um excerto de um poema de Wordsworth sobre a fugacidade da vida e a necessidade, como condição de felicidade, de colher a flor no próprio instante em que floresce. Em «No way out», avulta o sentimento da pequenez humana ante os problemas mundiais. O real, o mais real é o homem. Recorro, para isso, à antítese: «a dois passos de mim» - «em beavar canal».

Em «Quadras da alma dorida» utiliza-se a palavra «quadratins», como desvio linguístico da linguagem técnica e consequente forma de procurar provocar o interesse do leitor. Recorre-se também à antítese para, ante a ironia da oposição «divindade» - «bilhete de identidade», dar o humor da condição humana. No «Soneto superdesenvolvido», em que também entra o humor, poema de que aliás não gosto muito, há uma crítica explícita aos «bons sentimentos», que afectam negativamente não só a qualidade da literatura como a qualidade da vida.

Conservo «Necrologia», pequena amostra do insolúvel da morte perante o desconhecimento irremediável e para sempre de um homem que, embora aconteça diariamente, dessa forma me atingiu duma maneira particular, nem eu sei bem porquê. Também, ao contrário do «Censo populacional do Vietnam», sobrevive à morte da primeira edição deste livro, indubitavelmente de menor exigência estilística do que, por exemplo, Boca Bilingue, mas onde, em contrapartida, o soneto, para citar um só caso, atinge 15,5% das composições, um poema como «Um prato de sopa», um poema tão pouco coisa, tão simplificado, tão pouco linguagem inovadora, tão pouco função poética da escrita

Em «Os estivadores», temos a amostra de uma poesia de intervenção: só eles sabem «o preço de estar vivo sobre a terra»; «podem outros roubar-lhes a alegria». Só há lugar, se é que há, para algum humanismo: «eles são a moderna divindade». «A natureza é certo muito pode / mas um homem de pé pode bem mais». Aqui retomo a «Ode do homem de pé»», penúltimo poema de Aquele Grande Rio Eufrates, o meu primeiro livro.

«A minha tarde», como muitos outros poemas meus, é um poema voluntário, sem inspiração nem sequer emoção. Jorge de Sena é mencionado por ter, em Pedra Filosofal, um poema, aliás dedicado à memória de Sá de Miranda, intitulado «... De passarem aves» - que, pelo menos nesse aspecto, me influenciou a mim. «Sou novo» - «Era novo»: «Mudou um simples tempo de verbo e tudo mudou», como digo numa das «Imagens vindas dos dias»» insertas no final deste livro.

Relativamente a «Algumas proposições com crianças» estou plenamente de acordo com ele* quando, em A Poesia Portuguesa Hoje, se refere ao papel da proposição nos meus poemas. Claro que eu conquisto os meus poemas palavra a palavra mas sempre passo pela proposição como unidade aglutinadora. Isso é particularmente visível nalguns poemas deste livro, como, por exemplo, «Senhor da palavra», onde «Senhor» funciona como simples bordão, «Mudando de assunto», «Da poesia que posso», «Corpo de Deus», e naturalmente, «Algumas proposições com pássaros e árvores que o poeta remata com uma referência ao coração». Em «Senhor da palavra», encontramos a rima da palavra final de um verso com o final do hemistíquio seguinte: «pouco» - «louco». Este processo será levado à exaustão designadamente em A Margem da Alegria. Quando, no mesmo poema, falo de prestidigitador do meu prestígio, estou a tirar partido de duas palavras da mesma família. O verso «compro as noites de sono uma por uma» é evidentemente autobiográfico e refere o recurso aos barbitúricos. «Oblívios» é uma palavra decadentista e suponhamos que constitui uma homenagem ao Sérgio, um dos maiores amigos meus, hoje perdido no Brasil. «Lixo» e «caixotes» rimam aliteradamente.

Alguns antologistas de livros escolares têm manifestado preferência pelo poema «Oh as casas as casas as casas», uma curiosa preferência. Mas alguns referem o poema ao livro O Problema da Habitação - Alguns Aspectos, o que significa desconhecer fundamentalmente o clima deste meu livro. Semelhante confusão só se explica em quem se ficou pelo título, voluntariamente prosaico num livro que é substancialmente poético, segundo a lição de T. S. Eliot.

Sobre «A rapariga de Cambridge», houve um jornalista que falou das minhas estadias em Inglaterra e de como, durante uma viagem de comboio, conhecera a inspiradora do poema. Depois de ler isto, disse de mim para comigo: agora já posso falar de mim, já posso ser autobiográfico.

«Vat 69» joga com a ambiguidade entre a conhecida marca de whisk e a implícita crítica à figura do vate, tudo isto escrito em 1969. Trata-se, genericamente, de uma homenagem a Herberto Helder, que acabara de me mandar uma plaquette, editada por Valentim de Carvalho, com um longo poema, que tinha como segundo hemistíquio no segundo verso: «Era depois da morte». Num tempo sentado, o poema de Herberto Helder, trata-se de um jogo, aliás sedutor, da imaginação, ao passo que no meu se trata de uma simples recuperação da infância. Deve ser o poema meu onde mais falo da infâncias, tendo em conta mesmo essa «Fala de um homem afogado ao largo da Senhora da Guia no dia 31 de Agosto de 1971». É curioso que a ideia da morte me aproxime tanto da infância.

Sobre o «In memoriam», poema de que também, como é óbvio, não gosto muito, devo dizer que não conheci pessoalmente Manuel Bandeira nem Cristovam Pavia. O primeiro nunca veio a Portugal e com o segundo devo-me ter cruzado alguma vez, porque tínhamos amigos comuns mas a verdade é que nunca falei com ele. Mas trata-se de uma homenagem à poesia quer de um quer de outro. Sobre Manuel Bandeira tenho aliás dois ensaios, incluídos Na Senda da Poesia.

Em «Esta Rua é alegre» aparece um princípio fundamental da minha estética: «Não costumo por norma dizer o que sinto / mas aproveito o que sinto para dizer qualquer coisa».

O poema «Orla Marítima» saiu primeiro em O Tempo e o Modo. O primeiro verso é: «O tempo das suaves raparigas». O penúltimo verso do soneto n.º 4 do de António Nobre é: «Ó suaves e frescas raparigas». De poeta para poeta, quase cem anos volvidos, houve a supressão de um simples adjectivo.

Ficam nos meus papéis observações acerca de outros poemas. Mas vai longo este prefácio e não convém que o cão volte por demais ao seu próprio vómito, para não terminar sem a alusão bíblica inevitável em quem durante tanto tempo a leu.

Já disse que, relativamente à primeira edição, suprimo o poema «Censo populacional do Vietnam». Cabe-me agora dizer que incluo agora, pela primeira vez, cinco novas «Imagens vindas dos dias» e que atribuo título a todas.

                                                                                                             Monte Abraão, 18 de Abril de 1978.

                                                                                                                                                Ruy Belo       

*Gastão da Cruz (N.E.).

Em: Ruy Belo - Todos os Poemas, edição: Círculo de Leitores, 2000, pp. 183/4/5/6/7/8/9/90.