quarta-feira, 30 de junho de 2021

PARA QUE A MEMÓRIA NÃO SE PERCA.


 

1978, decorria o mês de Agosto, quando Eugénio de Andrade foi surpreendido ao ler, "na quarta página de um jornal trazido pelo vento", que no dia oito um edema pulmonar lhe levou um amigo, demasiado cedo.

 

À MEMÓRIA DE RUY BELO
 
Provavelmente já te encontrarás à vontade
entre os anjos e, com esse sorriso onde a infância
tomava sempre o comboio para as férias grandes,
já terás feito amigos, sem saudade dos dias
onde passaste quase anónimo e leve
como o vento da praia e a rapariga de Cambridge,
que não deu por ti, ou se deu era de vila do Conde.
A morte como a sede sempre te foi próxima,
sempre a vi a teu lado, em cada encontro nosso
ela lá estava, um pouco distraída, é certo,
mas estava, como estava o mar e a alegria
ou a chuva nos versos da tua juventude.
 
Só não esperava tão cedo vê-la assim, na quarta 
página de um jornal trazido pelo vento,
nesse agosto de Caldelas, no calor do meio-dia,
jornal onde em primeira página também vinha
a promoção de um militar a general,
ou talvez dois, ou três, ou quatro, já não sei:
isto de militares custa a distingui-los,
feitos em forma como os galos de Barcelos,
igualmente bravos, igualmente inúteis,
passeando de cu melancólico pelas ruas
a saudade e a sífilis do império,
e tão inimigos todos daquela festa
que em ti, em mim, e nas dunas principia.

consola-me ao menos a ideia de te haverem
deixado em paz na morte; ninguém na assembleia
da república fingiu que te lera os versos,
ninguém, cheio de piedade por si próprio,
propôs funerais nacionais ou, a título póstumo,
te quis fazer visconde, cavaleiro, comendador,
qualquer coisa assim para estrumar os campos.
Eles não deram por ti, e a culpa é tua,
foste sempre discreto (até mesmo na morte),
não mandaste à merda o país, nem nenhum ministro,
não chateaste ninguém, nem sequer a tua lavadeira,
e foste a enterrar numa aldeia que não sei
onde fica, mas seja onde for será a tua.

Agrada-me que tudo assim fosse, e agora
que começaste a fazer corpo com a terra
a única evidência é crescer para o sol.

1978

Em: POESIA E PROSA [1940-1986], Eugénio de Andrade, 3.ª edição aumentada, II volume, Círculo de Leitores, Lisboa, 1987, pp. 43 e 44.

 

PODEMOS PARAR O MASSACRE.

COLOQUE SEU NOME


Esse é Paulo Guajajara. Ele se manteve firme enquanto madeireiros destruíam a Amazônia -- e foi brutalmente assassinado. Ele não foi o único: um defensor da Terra é morto a cada 48 horas. Mas nós podemos ajudar. A Avaaz está no centro das discussões que visam garantir a proteção global dos povos indígenas e suas florestas ancestrais, campos e rios que sustentam a vida na Terra. Os líderes indígenas estão pedindo nosso apoio - assine agora, compartilhe e vamos fazer um barulho ensurdecedor no coração das discussões:
COLOQUE SEU NOME
Queridos amigos e amigas,
A cada 48 horas, um defensor da Terra é assassinado enquanto protege a natureza de sua destruição:

Paulo Guajajara, Brasil | Noel Castillo Aguilar México | Aluísio Sampaio dos Santos Brasil | Swami Gyan Swaroop Sanand Índia | Bronsel Impiel Filipinas | Marcial Pattaguan Filipinas | Alejandro Castro Chile | Haroldo Betcel Brasil | Rahmat Hakiminia Irã | Mohammad Pazhouhi Irã | Sharif Bajour Irã | Omid Kohnepoushi Irã | Ramón Rosario Venezuela | Pedro Vielma Venezuela | Reyes Orlando Parra Venezuela | Juvenil Martins Rodrigues Brasil | Eduardo Pereira dos Santos Brasil | Bakary Kujabi Gâmbia | Ismaila Bah Gâmbia | Francisco Munguia Guatemala | Dominador Lucas Filipinas | Suresh Oraon Índia | Lando Perdicos Filipinas | Florencio Pérez Nájera Guatemala | Alejandro Hernández García Guatemala | Katison de Souza Brasil | Ramón Choc Sacrab Guatemala | Adrián Tihuilit México | Beverly Geronimo Filipinas | Shanmugam Índia | Snowlin Índia | Tamilarasan Índia | Kanthiah Índia | Gladston Índia | Maniraj Índia | Antony Selvaraj Índia | Ranjith Kumar Índia | Jayaraman Índia | Karthick Índia | Jancy Rani Índia | Selvasekar Índia | Mateo Chaman Paau Guatemala | José Can Xol Guatemala | Luís Arturo Marroquín Guatemala | S Jegadish Dura Índia | Mark Ventura Filipinas | Nazildo dos Santos Brito Brasil | Carlos Hernández Honduras | Barthelemie Kakule Mulewa República Democrática do Congo | Théodore Kasereka Prince República Democrática do Congo | Liévin Mumbere Kasumba República Democrática do Congo | Kananwa Sibomana República Democrática do Congo | Ila Muranda República Democrática do Congo | Moustapha Gueye Senegal | Faustin Biriko Nzabakurikiza República Democrática do Congo | Sandeep Sharma Índia | Agudo Quillio Filipinas | Poipynhun Majaw Índia | Paulo Sérgio Almeida Nascimento Brasil | Ricardo Mayumi Filipinas | Ronald Manlanat Filipinas | Luis Fernando Ayala Honduras | Kavous Seyed Emami Irã | Yolanda Maturana Colômbia | Héctor Manuel Choc Cuz Guatemala | Teurn Soknai Camboja | Sek Wathana Camboja | Thul Khna Camboja | Evaldo Florentino Brasil | Ricky Olado Filipinas | Márcio Matos Brasil | Quintín Salgado Salgado México | Safeer Hussain Paquistão | Robert Kirotich Quénia | Guadalupe Campanur México | Ronal David Barillas Díaz Guatemala | Valdemir Resplandes Brasil | Jomo Nyanguti Quénia

… e a lista ainda segue.

Povos indígenas vêm protegendo florestas ancestrais, rios e pântanos por séculos. Mas há um problema mortal -- governos impiedosos não estão reconhecendo o direito à terra destes povos e, enquanto madeireiros, garimpeiros e caçadores avançam, eles estão sendo massacrados.

terça-feira, 15 de junho de 2021

Relato da Conferência “200 mil Empregos para o Clima”

A tarde deste sábado foi passada no Liceu Camões, onde ocorreu a Conferência: 200 mil Empregos para o Clima. Esta decorreu no contexto do lançamento da terceira edição do relatório da campanha Empregos para o Clima, relatório este que define um plano para Portugal cortar cerca de 85% das emissões de gases com efeito de estufa até 2030, criando ao mesmo tempo mais de 200 mil novos empregos dignos no sector público, em áreas chave da economia.

Com os olhos postos no combate à crise climática e à crise de desemprego e precariedade ao mesmo tempo, partimos para o Plenário Inicial: Empregos e Clima – A mesma luta. Aqui, a equipa editorial do relatório partilhou com as participantes os objetivos e princípios da Campanha Empregos para o Clima, assim como do relatório que adiante apresentariam.

Deixando explícito o contexto de intensificação da crise climática e a necessidade urgente da sua resolução, e apresentando a crise do desemprego e da precariedade como paralela e interligada a esta crise climática, o que ecoou deste primeiro plenário foi a seguinte ideia: É necessário responder simultânea e eficazmente a ambas as crises, e para tal precisamos de uma Transição Justa. Uma mudança profunda de toda a economia para garantir a sobrevivência, que não seja feita à custa do desemprego e precariedade, mas no sentido de criar mais e melhor emprego.

É isto que a nova versão do relatório Empregos para o Clima propõe: Um plano detalhado de como descarbonizar a economia de forma justa socialmente, sendo compatível com as exigências de resposta à crise climática que a ciência dita. Frisando o aspeto da atualização dos dados e do detalhamento de vários aspetos técnicos e políticos, o relatório foi brevemente apresentado. A exposição era por muitas acompanhado recorrendo à versão física deste relatório, que se encontrava disponível na Mesa de Receção e Banca, que estiveram ativas ao longo do dia.

Com o fechar deste primeiro plenário, deram-se duas sessões simultâneas.

Na biblioteca, discutia-se ‘Falsas Soluções versus Empregos para o Clima’. Tendo mais uma vez como contexto a urgência na resposta à crise climática, foram apresentados variados eixos nos quais são propostas falsas soluções a esta resolução. Paulo Pimenta de Castro, no âmbito das energias renováveis, expôs a energia com recurso à Biomassa como processo ineficiente e custoso, assim como comprometedor dos fundos de fertilidade dos solos e da biodiversidade. Dando ênfase às emissões geradas por este processo, considerou-o ainda como um processo de recarbonização.

Vasco Santos explicitou, de seguida, as consequências destrutivas a nível ambiental, laboral e social da mineração de lítio – desde a poluição dos solos, ar e água, ao arrasamento de montanhas, impactos nefastos para as atividades agrícolas locais e para a atratividade das zonas afetadas pela mineração. Neste sentido, afastava como solução a manutenção de um formato de mobilidade baseado no transporte individual, pois mesmo que elétrico, apresentaria uma fatura de custos ambientais e sociais elevadíssima. Assim, apresentou como solução real o transporte coletivo.

Começando por afirmar: “Se querem as soluções verdadeiras, leiam o relatório”, Francisco Furtado explicitou precisamente do ponto anterior: Faz parte da solução para a crise climática uma transição em massa para os Transportes Públicos, apontando a Ferrovia como meio essencial para esta transição, e apoiando a sua articulação com outro tipo de meios de transporte, de acordo com as diferentes necessidades das populações.

Simultaneamente, a sessão ‘Há dinheiro para combater o caos climático?’ decorria no pátio. Neste espaço debateu-se como financiar os 200 mil empregos para o clima indicados pelo relatório. Com intervenções de Eugénia Pires, João Reis e Ricardo Paes Mamede, a discussão rondou diversos pontos chave: Desde impostos, ao investimento público e o seu papel na transição necessária, a questões da ordem da política monetária, de independência dos bancos centrais e também hábitos de consumo. A injusta distribuição da riqueza foi frisada, como aspeto essencial a compreender “antes de pensarmos no financiamento”. Por fim, foi assente a ideia de que a questão a ser colocada não deverá ser se haverá, ou não, dinheiro para a Transição Justa, mas sim como este dinheiro será utilizado.

De seguida, a sessão ‘Valorizar o Trabalho e os Trabalhadores’ estava em aberto.

Começou com uma exposição da precariedade na profissão docente em Portugal, e dos desafios na educação consoante este cenário. Sónia Rocha, do Sindicato de Professores do Norte, que nos dava esta contextualização, apresentou este problema crónico como incompatível com o papel essencial da educação, que colocou como direito fundamental para todas as pessoas.

Posteriormente, Daniel Carapau, representando os Precários Inflexíveis, apresentou a ideia central de que para uma transição justa, tão necessária, é necessário um programa público. Apontou a magnitude da mudança e a coordenação a nível nacional necessária para tal como os aspetos que justificam esta transição como a assumir necessariamente pelo Estado. A redução do horário de trabalho proposta no relatório foi ainda tema abordado, tendo sido apresentadas as suas vantagens, desde a criação de mais emprego, ao grande impacto na qualidade de vida de quem trabalha, à redução de emissões nas deslocações.

Hugo Dionísio, da CGTP, passou a contribuir com uma crítica firme ao sistema socioeconómico vigente e à atuação da União Europeia, tanto a nível laboral como climático. Frisou a justiça como condição necessária para o desenvolvimento, afirmando que esta passa pelo trabalho e rendimentos dignos, organizado numa lógica de liberdade, emancipação e fruição da vida e do planeta. Apresentou ainda o trabalho em coletividade como tão importante para o desenvolvimento sustentável, pondo em causa os processos de individualização nefastos trazidos pelo teletrabalho e pela desregulação laboral trazida pelas plataformas informáticas.

Inês Nobre, da Associação Portuguesa de Guardas e Vigilantes da Natureza, interveio ainda relativamente à desvalorização estatal no que diz respeito a empregos com funções de proteção ambiental. Desde o número insuficiente de efetivos contratados, ao reduzido salário, as condições dos profissionais Vigilantes da Natureza foram expostas, e no final desta sessão a evidência pairava: Somos governados por um poder político que não protege as profissões que por sua vez protegem a natureza.

Ao fim da tarde, no Plenário Final: Como Ganhar?, pudemos escutar membros da Greve Climática Estudantil sobre a sua atividade política nos últimos anos, tanto nas ruas como nos estabelecimentos de ensino. Concluíram por frisar a necessidade da dignidade na transição justa, identificando os Empregos para o Clima como plano de ação concreto para tal.

Por fim, Sinan Eden, do Climáximo, salientou a importância de intervenção do movimento por justiça climática nos movimentos laborais, traçando a interligação de todas as lutas como um ponto importante no que diz respeito à luta por uma transição justa. Afirmou possíveis linhas de ação com as quais o movimento por Justiça Climática deve estar enquadrado, no que diz respeito por exemplo às condições de trabalho dos Vigilantes da Natureza, ou de trabalhadores na área dos transportes públicos, que devem ser vistas como políticas públicas pelo clima, sobre as quais nos podemos e devemos debruçar enquanto movimento climático.

Pelas 19 horas, com um ligeiro atraso, deu-se por fim uma tarde dinâmica em torno da Campanha Empregos para o Clima.

sexta-feira, 11 de junho de 2021


Central do Pego: cortar emissões ou cortar florestas? – João Reis

Mais um projeto de descarbonização, mais um falhanço. Em 2019, o Governo do PS contrariou o seu próprio programa e antecipou, de 2025 para este ano, o fecho da central a carvão do Pego. O encerramento da instalação na zona de Abrantes deverá acontecer até novembro. No entanto, o que é vendido como um passo para a transição energética, afigura-se apenas como uma alteração de como emitir gases com efeito de estufa enquanto se destrói a floresta.

Existem poucas dúvidas sobre a necessidade de abandonar o carvão. Dada a carga poluente, até a União Europeia considera deixar este combustível fóssil para trás. Mas sem reduzir a quantidade de energia consumida, resta saber qual a alternativa de produção, e em casos como o da central do Pego, a operação reduz-se à estética.

O truque passa pela substituição da combustão do carvão por outra forma poluente de produzir energia. No caso da central do Pego, é anunciado pela TrustEnergy – acionista maioritário da infraestrutura – que o carvão deixará de ser utilizado, transitando para a “produção de Energia Verde nas suas várias formas”. Quais são as formas? Para a “solução a curto prazo (…)” aponta-se para “resíduos florestais locais”, ou seja, o recurso à biomassa.

O termo biomassa soa sofisticado, no entanto não vai além de queimar árvores. Depois das florestas serem devastadas, a madeira é transformada em pellets, que depois são queimados para produzir energia elétrica. Apesar dos pellets serem publicitados como provenientes dos resíduos do abatimento de árvores, estes acabam por consistir nas próprias árvores.

É este o modo de produção que é englobado, pela União Europeia, nas energias renováveis neutras em carbono. Para ser compatível com a estabilidade do clima, vários pressupostos teriam de ser cumpridos, como a absorção de carbono por parte das árvores e o destino da madeira, se não transformada em pellets.

Os pressupostos não são cumpridos e a conclusão de quem estuda a utilização de biomassa em grande escala é que a neutralidade carbónica necessitaria de pelo menos 44 anos para ser real, permanecendo o carbono na atmosfera durante esse período. No imediato, há quem aponte o uso da biomassa como pior do que o do carvão em emissões. A isto acresce a destruição da floresta e a capacidade de absorver gases com efeito de estufa.

Ao custo ambiental da biomassa somam-se os altos custos de produção de energia. Sem subsídios dos estados, o preço da biomassa  é mais alto do que o de fontes como a eólica e solar. No caso concreto da central do Pego, até o acionista minoritário está contra o recurso à biomassa dado o elevado custo de produção. Tendo em conta que as fontes renováveis têm potencial de redução de custos, e considerando que a queima de árvores é um processo sem potencial de amadurecimento, o absurdo acumula-se.

O estatuto de “energia renovável” confere à biomassa subsídios públicos, e é com dinheiros estatais que a TrustEnergy conta para avançar quando menciona o desejo de “implementar com apoios do Fundo para uma Transição Justa (FJJ) e do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR)”. Ou seja, o plano de recuperação para a crise económica espoletada pela pandemia poderá acabar a financiar projetos privados que contribuem para o caos climático e para a destruição florestal.

A incógnita reside na origem da madeira a ser queimada em Portugal. Se importada de países como os Estados Unidos, Rússia e Brasil ou se cortada em território nacional. No segundo caso, o setor energético passa a estar ao lado da indústria do papel na destruição da floresta portuguesa, já de si raquítica.

A biomassa em grande escala é só mais um projeto num vasto leque de falsas soluções. Neste inclui-se o gás, que é um combustível fóssil como os outros; o hidrogénio “verde”, que não vai além de um subterfúgio para continuar a queima de combustíveis fósseis; a plantação de árvores para abate rápido, absorvendo carbono em quantidades fictícias, e a captura e armazenamento de carbono por métodos industriais, que permanece no campo da ficção científica.

Falsas soluções como a biomassa são desejadas pelas empresas que agora ganham dinheiro com combustíveis fósseis e que pretendem continuar a ganhá-lo de outras formas. A destruição de um planeta digno e a absorção de dinheiros públicos há muito que fazem parte da alma do negócio. Esta é a transição compatível com o capitalismo: canalizar dinheiro para privados e não cortar emissões.

É necessária uma transição energética que corte as emissões, não as florestas. Para já, o Governo português e Bruxelas congratulam-se com um novo golpe de marketing político, e os acionistas da central discutem qual a melhor forma de fazer dinheiro.

Artigo originalmente publicado no Jornal Económico a dia 08 de Junho de 2021.

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Actualissimo: Discurso de Jorge de Sena no 10 de junho de 1977





Discurso proferido na cidade da Guarda, durante as comemorações do “Dia de Camões e das Comunidades Portuguesas”, no dia 10 de junho de 1977.

 É para mim uma honra insigne o ter sido oficialmente convidado pela comissão organizadora das comemorações de Camões em 1975, e do dedicar-se do Dia de Camões à recordação das comunidades portuguesas ou de origem portuguesa dispersas pelo mundo, para aqui falar na minha dupla qualidade de estudioso de Camões, e de residente no estrangeiro, que eu sou. Com efeito, em 1978, cumprem-se trinta anos sobre a primeira vez que, de público me ocupei de Camões, iniciando o que, sem vaidade me permito dizê-lo, tem sido uma contínua campanha para dar a Portugal um Camões autêntico e inteiramente diferente do que tinham feito dele: um Camões profundo, um Camões dramático e dividido, um Camões subversivo e revolucionário, em tudo um homem do nosso tempo, que poderia juntar-se ao espírito da Revolução de Abril de 1974, e ao mesmo tempo sofrer em si mesmo as angústias e as dúvidas do homem moderno que não obedece a nada nem a ninguém senão à sua própria consciência.
Esse meu Camões foi longamente o riso dos eruditos e dos doutos, de qualquer cor ou feitio; foi a indignação do nacionalismo fascista, dentro e fora das universidades, dentro e fora de Portugal; foi a aflição inquieta do catolicismo estreito e tradicional, dentro e fora de Portugal; e foi a desconfiança suspeitosa de muita gente de esquerda, a quem eu oferecia um Camões que deveria ser o deles, quando eles preferiam atacar ou desculpar o Camões dos outros. Foi e ainda é, e será. 
 Porque, sendo Camões o maior escritor da nossa língua que é uma das seis grandes línguas do mundo e um dos maiores poetas que esse mundo alguma vez produziu (ainda que esse mundo, na sua maioria, mesmo no Ocidente, o não saiba), ele é uma pedra de toque para portugueses, e porque tentar vê-lo como ele foi e não como as pessoas quiserem ou querem que ele seja, é um escândalo. São essa pedra de toque e esse escândalo o que, neste momento solene, a três anos de distância do 4o. centenário da morte do maior português de todos os tempos, vos trago aqui, certo e seguro de que ele mesmo assim o desejaria. E, antes de mais, peço que, nas minhas palavras anteriores ou nas minhas palavras seguintes, ninguém veja ataques ou referências pessoais que não há; tenhamos todos, tenham todos a humildade de reconhecer que, quando se fala de Camões e de Portugal, não podemos pensar em mais ninguém.
 Quanto a ser um residente no estrangeiro, vai para dezoito anos que o sou, o que, curiosamente, é mais ou menos o tempo que o próprio Camões viveu fora de Portugal, desde que dele partiu para as Índias [em 1553, até que regressou,] em 1570, tão pobre como partira, mas com Os Lusíadas no bolso ou na bagagem, para publicá-los. Eu nem estou a regressar, nem tenho Lusíadas nenhuns. Mas não sou exactamente um emigrante no estrangeiro, ainda que neste viva, e com os emigrantes me possa identificar – aqueles emigrantes que vi e tenho visto de perto, primeiro no Brasil e depois nos Estados Unidos, e também pelo mais largo mundo que tenho percorrido, e que, com a sua laboriosidade, a sua dignidade, a sua humanidade convivente, são em toda a parte, míseros e mesquinhos, ou ascendidos e triunfantes, muitas vezes, os embaixadores que Portugal não envia, ou os representantes da cultura que Portugal não exporta.
          Por dezassete anos, recordemos, Camões foi apenas um deles, quando ninguém sabia ou podia ainda saber o génio que ele era. Reatando: eu não sou exactamente um emigrante no estrangeiro, porque, quando saí de Portugal, tinha vinte anos de escritor publicado, e desde então a maior parte da minha obra, ou grande parte dela, foi escrita para Portugal ou em Portugal publicada. Seja o que seja, continuo a ser o que era, quando me exilei muito a tempo naqueles idos negros e tristes de 1959: um escritor português que vive no estrangeiro e que mantém um permanente contacto com Portugal, até por obrigação profissional: catedrático de Literatura Portuguesa, que é um dos meus títulos e deveres, não tenho outro remédio senão estar a par do que se publica. Por outro lado, a minha fidelidade a Portugal – e fidelidade é uma das palavras-chave da minha pessoa e da minha obra, como liberdade é outra – nunca me permitiu livrar-me de partilhar (acrescentadas da dor da distância) as dores e as alegrias, os desalentos e as esperanças de Portugal. 
Permitam-me ainda um esclarecimento. Na melhor das intenções, vária imprensa anunciou ou referiu que eu falaria aqui como representante dos luso-americanos. Se alguém pensou que eu tal faria, mais que num plano meramente simbólico de partilhar com eles o viver nos Estados Unidos, enganou-se redondamente. Primeiro que tudo, eu não sou um luso-americano: esta palavra significa não o português que vive na América, mas ou o que adquiriu a cidadania americana, ou o que descende de portugueses e já nasceu americano: luso-americanas são duas filhas minhas, por naturalização, e um neto meu que o é nato, como brasileiro por naturalização eu sou, e dois filhos meus o são natos, enquanto minha mulher e outros cinco filhos mantiveram a nacionalidade portuguesa. E, em segundo lugar, que é o primeiro de todos, eu não recebi dos luso-americanos nenhum mandato eleitoral para falar em nome deles, embora esteja certo de que mo teriam dado, se a eles o tivesse pedido, por saberem que os respeito e estimo, sem distinção de credo ou cor (porque há luso-americanos de cor, idos de Cabo Verde para lá, por exemplo). Democrata como sou, eu não falo em nome de ninguém, sem ter recebido um expresso mandato para tal. Eu fui convidado por Lisboa e de Lisboa, o que é uma honra, mas Lisboa não tem o direito de nomear representantes de nada ou de ninguém. 
 Esse vício centralista da nossa tradição administrativa – um dos vícios que Camões denunciou e castigou nos seus Lusíadas – deve ser eliminado e banido dos costumes portugueses, sem perda da autoridade central que deve manter unido um dos povos mais anárquicos do mundo e menos realistas quando de política se trata. Porque os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta com a máscara da paixão cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista, quando se vêem confrontados, como é o caso desde Abril de 1974, com a experiência da liberdade. Isto não sucedeu só agora, e não é senão repetição de outros momentos da nossa história sempre repartida entre o anseio de uma liberdade que ultrapassa os limites da liberdade possível (ou sejam as liberdades dos outros, tão respeitáveis como a de cada um) e o desejo de ter-se um pai transcendente que nos livre de tomar decisões ou de assumir responsabilidades, seja ele um homem, um partido, ou D. Sebastião. 
 Também dos limites da ordem social e dos deveres do homem para consigo mesmo e a sociedade de que faz parte foi Camões um mestre. Assim, aqui, no âmbito de celebrações que são camoneanas e do Portugal disperso pelo mundo desde que o país existe e desde que, no estrangeiro, comunidades portuguesas ou de lusa origem se formaram ou mantiveram, eu não represento luso-americanos, e não falo em nome deles ou de ninguém no largo mundo. Aceito falar, como eu mesmo, da importância e do significado de Camões hoje, e da necessidade de ter presente ao espírito esta ideia tão simples: um país não é só a terra com que se identifica e a gente que vive nela e nasce nela, porque um país é isso mais a irradiação secular da humanidade que exportou. E poucos países do mundo, ao longo dos tempos, terão exportado, proporcionalmente, tanta gente como este. 
 Sejamos francos e brutais. Há neste momento, milhões de portugueses dispersos pelo mundo em mais de um continente, e não só na Europa de que são mão-de-obra. O país pensa neles, e deseja recordar-se deles. Mas o país, pura e simplesmente, na situação económica que herdou e em que se encontra e toda a gente sabe desastrosa, não pode prescindir do dinheiro deles, ou do dinheiro que eles costumam enviar para a santa terrinha, ao contrário do que faziam e fazem portugueses do território nacional, que mandavam o seu dinheiro para o anonimato dos bancos da Suíça. 
 Deste modo, celebrar as Comunidades Portuguesas no dia do santo nacional que celebrou a expansão imperial do país é, ao mesmo tempo, um belo ideal e um cálculo muito prático. Há quem diga e quem pense que celebrações como esta – de Camões ou das comunidades – são uma compensação para a perda ou derrocada do Império oferecida ao sentimento popular, e que isso das comunidades é mesmo ainda pior: uma ideia do fascismo. Antes de mais, neste país há que pôr um basta não só ao fascismo ele mesmo, mas à mania de atribuir tudo ao fascismo, até as ideias. Porque, por esse caminho, ficamos todos sem ideias de que precisamos muito, e os fascistas ou os saudosistas deles acabam convencidos de que tinham ideias, quando ter ideias e ser fascista é uma absoluta impossibilidade intelectual e moral. 
 O celebrar-se no presente e no passado em sua gente, o homenagear essa gente e recordá-la aonde quer que viva ou tenha vivido é um imperativo imarcescível da dignidade humana, num dos aspectos que a representa: o pertencer-se directa ou indirectamente a um povo, uma história, uma cultura, que como no caso de Portugal, foi, é e será capaz de diversificar-se em outras. Nenhum internacionalismo que se preze de ter os pés na realidade e na matéria de que somos feitos, pode negar ou ignorar essas realidades tremendas que são uma língua ou muitas, uma raça ou várias, uma cultura por mais adaptável ou capaz de absorção que ela seja, que se identificam com um nome secular – Portugal no nosso caso, aqui e agora.
 Pensarão alguns, acreditando no que se fez do pobre Camões durante séculos, que celebrá-lo, ou meditá-lo e lê-lo, é prestar homenagem a um reaccionário horrível, um cantor de imperialismos nefandos, a um espírito preso à estreiteza mais tradicionalista da religião católica. Camões não tem culpa de ter vivido quando a Inquisição e a censura se instituíam todas poderosas: se o condenamos por isso, condenamo-nos nós todos a que, escrevendo ou não-escrevendo, e ainda vivos ou já mortos, resistimos durante décadas a uma censura opressiva, e a uma repressão implacável e insidiosa, escrevendo nas entrelinhas como ele escreveu. 
 Isto é, condenamos a vera ideia de “Resistência” que, modernamente, fomos dos primeiros povos da Europa a tristemente conhecer e corajosamente praticar. E sejam quais forem as nossas ideias e as nossas situações políticas, nenhum de vós que me escutais ou não, pode viver sem uma ideia que, genericamente, é inerente à própria condição humana: o resistir a tudo o que pretende diminuir-nos ou confinar-nos. Camões não tem também culpa de ter sido transformado em símbolo dos orgulhos nacionais, em diversos momentos da nossa história em que esse orgulho se viu deprimido e abatido. Claro que esse aproveitamento não teria sido possível se ele não tivesse escrito Os Lusíadas. Mas o restituir a quem o podia ler e o podia sentir mais fundamente um pouco de confiança em horas difíceis, é um acto de caridade, essa virtude que não é só cristã porque é, desde antes do cristianismo, a própria essência da civilização: a solidariedade humana quando a dor nos fere. E o ter sido usado, manipulado e treslido como Camões o foi, ou denegrido como também foi desde a publicação do seu poema, é um dos preços que a grandeza paga neste mundo. 
 Camões e a sua obra têm pago esse preço como todos os outros. Deixem-me todavia recordar-vos que o grande aproveitacionismo de Camões para oportunismos de politicagem moderna não foi iniciado pela reacção. Esta, na verdade, e desde sempre, mesmo quando brandindo Camões, sentia que as mãos lhe ardiam. Aqueles oportunismos foram iniciados com o liberalismo romântico e com o positivismo republicano. E se o Estado Novo tentou apoderar-se de Camões, devemos reconhecer que ele era o herdeiro do nacionalismo político e burguês, inventado e desenvolvido por aquele liberalismo e aquele positivismo naquelas confusões ideológicas que os caracterizavam e de que Camões não tem culpa: tê-la-iam por exemplo dois homens que merecem o nosso respeito: Almeida Garrett e Teófilo Braga. E quanto à reacção mais recente em face de Camões, eu lembro apenas dois pequenos exemplos em que a censura o proibiu, se não estou em erro: o caso do jornal de Vila do Conde, em que um tio de José Régio usava publicar os clássicos, citando-os convenientemente, e o da revista Vértice, de Coimbra, que fazia o mesmo.
 E isto para não falarmos de crimes literários e socio-morais de mais largo alcance, de que Camões era vítima nas escolas, parecendo até que nós éramos as vítimas dele. Porque, para além de encher-se a boca com a Fé e o Império, que nem uma nem outro eram para Camões o que eram para o Dr. Salazar, o poeta não servia para mais nada senão para exercícios de gramática estúpida: o que, tudo junto, chega para gerações lhe terem ganho alguma raiva e perdido o gosto de o ler. E há mais e pior: quando, no liceu, líamos Os Lusíadas, éramos proibidos de ler (e não estudávamos) as passagens consideradas mais chocantes pela pudicícia hipócrita desta nossa sociedade de sujeitos felizmente desavergonhados que fingem lamentavelmente possuir a virtude que não têm, e vivem a perseguir ou reprimir os pecados alheios. 
 Claro que nós todos íamos logo ler as passagens “proibidas” e lendo-as assim, com olhos libidinosos, perdíamos a grandeza delas: a majestade do sexo e do amor, a magnitude da liberdade e da tolerância, a inocência magnífica do prazer físico e da paixão erótica, que, acima de tudo, Camões cantava e celebrava nessas passagens com uma abertura de espírito e uma audácia espantosas. Será possível que os frades o tenham feito alterar algumas coisas antes de publicar Os Lusíadas. Mas, em face de algumas daquelas que lá ficaram, temos de reconhecer que, mais do que aquilo, só um poema francamente pornográfico, incompatível com a dignidade e o decoro da grande epopeia que Camões desejou escrever e escreveu.
  Tem-se dito que o grande protagonista da epopeia é o povo português, e na verdade o povo aparece, segundo as tradições clássicas, representado apenas pelos seus heróis, aqueles que Camões seleccionou para o efeito, à excepção dos marinheiros anónimos que acompanhavam Vasco da Gama ou os seus guerreiros anónimos sem os quais não haveria a magnificente descrição da batalha de Aljubarrota ou análogos momentos. Aqueles marinheiros, como o próprio Vasco, são deificados, ou transfigurados epicamente na Ilha dos Amores, em condições sem dúvida moralmente impróprias de quem deixara família em Portugal, mas altamente consentâneas, se me permitem a rudeza, com a promiscuidade sexual notória do povo português, ao mesmo tempo que de acordo com as convenções épicas e mitológicas pelas quais os heróis se dignificavam no conhecimento (que aqui uso no sentido intelectualmente neo-platónico e no sentido obscenamente público) das entidades divinas. Já se disse que as personagens mais vivas e activas de Os Lusíadas são os deuses pagãos, e não as criaturas históricas, mais pálidas e incaracterísticas do que elas.
 Até certo ponto, isto é verdade. E é-o por algumas razões camonianamente importantes. Antes de mais, na filosofia que Camões assume e torna extremamente pessoal, os deuses pagãos possuem, como atributos do Deus supremo, invisível e silencioso, e como seus intermediários agentes, uma realidade autêntica que a criação artística faria necessariamente mais palpável e concreta. E é assim que nós vemos tão nitidamente Vénus, a Afrodite originária e primeva, um dos deuses anteriores a tudo, e também a deusa do amor que este sim, é todo poderoso – como a não veríamos? Ela é a amante, a esposa, a mãe, tudo o que o princípio feminino significa dentro e fora da nossa humanidade, naquelas complexidades psico-sexuais a que Camões se compraz em aludir, servindo-se de alusões mitológicas que parecem meros ornamentos ao longo da epopeia inteira. E como não veríamos Baco ou Diónisos, receoso de ser castrado da sua lendária glória de conquistador da Índia? Se, como descendentes de Luso, descendemos dele, e ele é o nosso pai receoso do triunfo e da liberdade dos filhos? Como não veríamos Júpiter, se ele é de certa maneira a providência divina, sempre disposta a sucumbir, mesmo incestuosamente, às atracções do amor? Estes deuses, na dialéctica camoniana, sem a qual Camões se não entende, são ao mesmo tempo as emanações do princípio divino que desce à terra, e são a nossa humanidade ascendida e divinizada. 
E é neste mesmo sentido que as referências a Cristo devem ser entendidas nos contextos camoneanos: ele é, supremamente, para Camões, o princípio divino que, como um fogo de vida, desce a encarnar-se humanamente, mas é também o homem, o herói humano que, pelo seu sacrifício, ascende ou regressa ao divino. E é este heroísmo do apostolado e do sacrifício o que, em toda a sua epopeia, Camões propõe continuamente pela referência ou pela narrativa. Até Inês de Castro, a grande matriarca do poema, ascende à glória épica pelo seu sacrifício de amor. Porque para o amor, para todas as formas de amor, Camões arranja sempre uma desculpa, um louvor, ou a suprema divindade, porque esse amor é, para ele, a todos os níveis, a realidade última, e a realidade sempre presente. Sem amor, não há heróis, nem há homens dignos desse nome. E amor, mesmo numa epopeia que transborda de feitos bélicos e de acções guerreiras, não existe sem uma infinita e total tolerância, um respeito pelos outros povos, as outras raças, as outras culturas, as outras religiões, ao ponto de, como já tenho chamado a atenção, o conceito de santidade ou a palavra santo se aplicar a todos, sem distinção alguma, cristãos, muçulmanos, brâmanes, etc., e até – não o esqueçamos – a uma ninfa que se deixa possuir, por bem requestada, na Ilha dos Amores.
 Este Camões de amor e tolerância permeia Os Lusíadas. Mas já se disse que, além e acima de tudo e todos, a principal personagem da epopeia é Camões ele-mesmo, não só como o autor, não só como o narrador, não só como o crítico severo e implacável de toda a corrupção e de toda a maldade, como o denunciador angustiado de uma decadência moral e cívica que ele via e sentia à sua volta, e o qual constantemente interrompe a narrativa para invectivar com o maior desassombro (lembremo-nos de que as ordens daquele D. Sebastião a quem o poema é dedicado, dirigidas aos seus imperiais governadores, chamando-os à virtude e à dignidade, não tinham de tom diverso senão a diferença que vai de uma carta oficial a uma poesia de génio). E há nisso de Camões ser central uma enorme e profunda verdade que é o Camões-homem e o Camões-poeta. Não só ele se colocou, nos seus cálculos arquitectónicos do poema, nessa posição, e assim se colocando, se apresenta como a culminação da aventura portuguesa que ele conta, como o herói que o é por ser quem transforma Portugal numa obra de arte, acima das contingências históricas e da mesquinhês humanas. 
 O Camões que na epopeia espreita ou se mostra a cada momento, roubando mesmo alguma realidade estética a tudo e todos, nós conhecêmo-lo e entendêmo-lo de outro volante do políptico que é a sua obra: o grande poeta lírico que é também um grande pensador, e que, na obra lírica como na épica, se apresenta como resumo e epítome da humanidade mesma, e não só do povo português. Ele é o homem em si, aquele ser que se busca continuamente e ao amor que o projecta para dentro e para fora de si mesmo, e é, como Luís de Camões, o predestinado para ser, ao mesmo tempo, o poeta-herói supremo que realiza, isto é, torna real para a eternidade da poesia, a história de Portugal, e a embarca nos navios de Vasco da Gama para unir o Ocidente ao Oriente. Ao mesmo tempo, este poeta-herói-épico, e o poeta-homem, exemplo de ser-se português, em exílios e trabalhos, em sofrer incompreensões e injustiças , e – ao contrário do que sucede ou sucedeu a alguns – regressar com as mãos vazias, apenas rico de desilusões, de amarguras e do génio que havia posto numa das mais prodigiosas construções jamais criadas, desde que o mundo é mundo. E essa construção ele trazia, reunindo o Portugal disperso, para o que ele deixara a vida, como disse, pelo mundo em pedaços repartida.
 Ninguém como Camões nos representa a todos, repito, e em particular os emigrantes, um dos quais ele foi por muitos anos, ou os exilados, outro dos quais ele foi a vida inteira, mesmo na própria pátria, sonhando sempre com um mundo melhor, menos para si mesmo que para todos os outros. Ele, o homem universal por excelência, o português estrangeirado e esquecido na distância, o emigrante e o exilado, é em Os Lusíadas e na sua obra inteira, tão imensa e tão grande, a medida do mais universal dos portugueses e do mais português dos homens do universo. Ninguém, como ele desejou representar em si mesmo a humanidade, representar tão exactamente o próprio Portugal, no que Portugal possui de mais fulgurante, de mais nobre, de mais humano, de mais de tudo e todos, em todos os tempos e lugares. Ele é, como ninguém, o homem que viajou, viu e aprendeu. O homem que se sente moralmente no direito de verberar com tremenda intensidade, as desgraças de viver-se e os erros ou vícios da sociedade portuguesa. É o exilado físico de muitos anos mas é, como todos nós, e nisso tanto ou mais o somos que outros povos, o exilado moral, clamando por justiça, por tolerância, por dedicação à pátria, por espírito de sacrifício, por unidade nacional e universal, lá onde via que o homem é, como ele disse mais que uma vez, o “bicho da terra tão pequeno” contra o qual se encarniçam os poderes do mal.
 Haverá ainda quem diga que esse homem cantou a expansão imperial, apesar de tudo, as conquistas imperiais do Oriente, e está portanto fora do nosso tempo e do nosso espaço históricos, e a sua epopeia ofende a consciência das Ásias e das Áfricas. Mas ele cantou a expansão portuguesa, na medida em que considerava que esta expansão era ou deveria ser a civilização ocidental levada a toda a parte, no que tinha de moralmente digno e de socialmente responsável. Ao escolher para assunto central da sua epopeia a viagem de Vasco da Gama, ele sabia perfeitamente que escolhia um momento decisivo da história universal; o encontro, para todo o sempre, para bem e para mal, da Europa com a Ásia, passando-se pela África.
Momento decisivo dessa história do mundo, como eminentes historiadores insuspeitos de simpatias portuguesas ou imperialistas o têm proclamado e reconhecido. E, na verdade, esse encontro (e esse Império que, no tempo de Camões, com todos os erros e crimes, não era os impérios coloniais inventados pela Europa do século XIX, nem socio-moralmente inferior à desordem política existente então, como hoje, em toda a parte) simboliza aquilo mesmo que, mais tarde, nos nossos dias, veio a verificar-se. Porque as ideias de independência política e de justiça social pelas quais lutaram e ainda lutam os povos da Ásia e da África, e às quais se renderam os povos das Américas ao separar-se da velha Europa, não são as tradições tribais originárias por respeitáveis que sejam: são aquelas mesmas ideias que, geradas na Europa, da Europa se difundiram, tal como as naus do Gama partiram de Lisboa para uma das mais gloriosas viagens de todos os tempos. Isso Camões cantou: e vendo-o no seu tempo, e na visão do mundo que ele teve, sabemos que devemos relê-lo atentamente para saber, que ele, tão orgulhosamente português, entenderia todas as independências, se fosse em vida nosso contemporâneo como ele o é na obra que nos legou, para glória máxima de uma língua falada e escrita ou recordada em todos os continentes.
 O orgulho de ser-se alguma coisa, o inabalável sentimento de independência e de liberdade, disso ele falou, e sentiu como ninguém. É disso um mestre. Tudo existe na sua obra: o orgulho e a indignação, a tristeza e a alegria prodigiosa, a amargura e o gosto de brincar, e desejo de ser-se um puro espírito de tudo isento e a sensualidade mais desbragada, uma fé inteiramente pessoal, pensada e meditada como ele a queria e não como uma instituição, e a dúvida do predestinado que se sente todavia só e abandonado a si mesmo. 
 Leiam-no e amem-no: na sua epopeia, nas suas líricas, no seu teatro tão importante, nas suas cartas tão descaradamente divertidas. E lendo-o e amando-o (poucos homens neste mundo tanto reclamaram amor em todos os níveis, e compreensão em todas as profundidades) – todos vós aprendereis a conhecer quem sois aqui e no largo mundo, agora e sempre, e com os olhos postos na claridade deslumbrante da liberdade e da justiça. Ignorar ou renegar Camões não é só renegar o Portugal a que pertencemos, tal como ele foi, gostemos ou não da história dele. É renegarmos a nossa mesma humanidade na mais alta e pura expressão que ela alguma vez assumiu. E esquecermos que Portugal como Camões, é a vida pelo mundo em pedaços repartida.

Jorge de Sena, Paris, 3 de Junho de 1977

segunda-feira, 7 de junho de 2021

BIODIVERSIDADE E CLIMA - Ana Silva


Ecologista/Ativista, porta-voz do proTejo - Movimento pelo TEJO

 

PORQUE É QUE CONTINUAMOS A BRINCAR ÀS CASINHAS MESMO

 QUANDO A NOSSA CASA ESTÁ A ARDER?

Porque é tão importante salvaguardar a Biodiversidade?

Porque é que tão difícil apreender a relação entre degradação e destruição da Biodiversidade e as alterações climáticas?

Porque não sabemos todos ainda, que a Ecologia é uma ciência e não uma ideologia?

Porque é que dizemos que queremos salvar o Planeta em vez de dizer que queremos salvar a nossa própria pele?

Porque decidimos imaginar que não somos Natureza?

Porque é que insistimos em ser o nosso pior inimigo?

E se descessemos à Terra? E se passássemos do egocentrismo ao ecocentrismo?


Ciclos de VIDA/MORTE , CICLOS CLIMÁTICOS e ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS

A sobrevivência da espécie humana depende do funcionamento adequado de todos os ciclos ecológicos: em particular da continuidade da união favorável entre os ciclos cósmicos, os ciclos climáticos e os ciclos vitais, da água, do oxigénio, e dos nutrientes.

Estes últimos, iniciaram-se e consolidaram-se com a emergência da Vida no Planeta e evoluíram juntos, estabelecendo interdependências que ao longo de milhares de milhões de anos foram firmando a vitalidade dos ciclos da água, do carbono, do azoto e do oxigénio. Vitalidade que resulta a cada momento, da qualidade da relação intima de dependência entre os ciclos de Vida/Morte e os ciclos climáticos.

A evolução do Clima depende em grande medida, da evolução dos ciclos vitais assegurados pelo funcionamento da Biodiversidade e a evolução dos destinos de todos os seres vivos, depende incontornavelmente, da evolução que o Clima dita ao funcionamento da Biodiversidade.

Em poucas palavras. A evolução do Clima, favorável à continuidade da espécie humana, depende da salvaguarda do bom funcionamentode todo o conjunto da Biodiversidade – diversidade de ecossistemas e diversidade de espécies, aos níveis da diversidade funcional, genética e filogenética.

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Apreender e interiorizar o significado e a abrangência de tudo isto, é um passo primordial para se enfrentar os desafios que se colocam em relação ao Presente e ao Futuro próximo da Humanidade. Nós pertencemos ao conjunto da Biodiversidade e somos biliões e por isso é urgente avaliar de forma consciente e responsável os impactos que as actividades da nossa espécie impõe ao funcionamento dos ciclos vitais. Apurar todos os cambiantes do pensamento que poderão ditar uma Nova Visão do Mundo, um Novo Sonho e uma Nova Paixão, que assistirão à transformação urgente da acção humana, quer colectiva, quer individualmente. Visão que deverá ser permanentemente ajustada à luz do conhecimento da Ecologia do Planeta e que fará a diferença entre uma evolução da Vida, em todo o seu conjunto biodiverso, para melhor ou para pior.

Importa dizer ainda antes de continuar, que é de Ecologia que estamos a falar.

Que a Ecologia não é uma ideologia mas uma ciência com mais de 100 anos. Uma ciência que estuda o modo como funcionam e evoluem em conjunto, a Vida e a casa que a abriga – o planeta Terra. Estuda a forma como o Todo se relaciona com a Vida e como a Vida se relaciona com o Todo, com o objectivo de conhecer os processos e os ciclos ecológicos que determinam o seu funcionamento.

Uma ciência que tem sido considerada politicamente inconveniente e forçada a esconder-se atrás da palavra Ambiente. Ambientes há muitos. Marte também tem Ambiente mas, só terá uma Ecologia se tiver Vida. O que é essencial para a sobrevivência das espécies não é o ambiente, é a Ecologia desse ambiente.

A Ecologia do Planeta evoluiu e continua a evoluir com a evolução da sua Biodiversidade. E por isso falar de Ecologia é falar de Geologia, Biologia, Genética, Química, Física, Climatologia, Astronomia, …Sociologia, Economia, Filosofia, Psicologia, …. E até de Tecnologia, pois ecossistemas artificializados onde a Vida aconteça também são objecto de estudo da Ecologia e importa realçar que a escolha das tecnologias é um ponto chave no que diz respeito à evolução da ecologia do Planeta e logo do futuro da humanidade.

A Ecologia é, ainda hoje, olhada com desconfiança, e não raras vezes, remetida para o caixote do lixo do conhecimento. Vulgarmente, é apenas manca e timidamente aflorada, para melhor poder ser esquecida. Claro que nada disto é inocente mas tem servido de argumento para “descontraidamente continuarmos a brincar às casinhas mesmo quando a nossa casa está a arder”.

É tempo de ousar sair dos limbos da preguiça mental. Recuperar o tempo perdido e escolher apreender a realidade. Não podemos continuar sendo optimistas sem antes ser realistas. Sabemos todos que o incêndio está a ficar cada vez mais incontrolável, os reacendimentos sucedem-se ao sabor do crescendo de destruição e loucura com que o alimentamos. A sua propagação deixa rastos tóxicos visíveis e invisíveis que envenenam o Ar, a Água e os Solos que são as bases que mantêm globalmente ligados, os elos da cadeia da Vida. Cadeia à qual pertencemos e da qual imaginamos poder esquecer que dependemos.

É tempo de reconhecer que evolução é apenas sinónimo de transformação, não obrigatoriamente para melhor. Que a evolução é um processo universal que a cada momento e em cada lugar, resulta do cuzamento do conjunto de todas as dinâmicas em curso e que nunca se repetem exactamente da mesma maneira.

A evolução da Vida no planeta Terra não foge à regra e como foi dito atrás, ela depende da evolução de todos os ciclos ecológicos comandados pelas dinâmicas do infinitamente grande e do infinitamente pequeno: a nossa posição no Universo, na Via Láctea e neste sistema solar são determinantes para a sustentabilidade da Vida no Planeta. Mas, sabemos também o quanto a própria Vida moldou e continua a moldar os seus ambientes e as suas dinâmicas. E sabemos o peso que tem nesta equação o conjunto das nossas pequenas vidas que soma já mais de 7,5 biliões de criaturas cada vez mais, furiosamente determinados a ocupar a posição mais vantajosa possível na corrida ao prestígio. Cada vez mais sem regras, sem limites e com um máximo de urgência.

Sabemos que continuar a ignorar que a “nossa casa está a arder” é a única maneira de autojustificarmos a passividade, a opção por “sabendo, não querer saber”, o egocentrismo exacerbado e a dedicação exclusiva a um “imaginário pessoal pré-fabricado” que nos atrofia a mente e o gesto. Estamos dispostos a sofrer tudo por ele, enquanto cansados e em vão, tentamos abafar a sabedoria da nossa consciência que nos grita que aquilo em que nos estamos a transformar não faz sentido e que, a sobrevivência da nossa espécie depende da acção urgente de todos e cada um de nós. Temos que provar a nós próprios a coragem de mergulhar bem fundo no breu da nossa consciência, reconhecermo-nos no nosso pior e trazer à superfície o nosso melhor. Deitando para o lixo o Egocentrismo e experimentando novos caminhos rumo ao Ecocentrismo.

Começando por separar e tratar informada e conscientemente, o “Lixo Mental” que nos polui por dentro. Se fizermos um tratamento selectivo e critico dos Absurdos que o alimentam, encontraremos neles tesouros escondidos que bem trabalhados nos poderão indicar os caminhos para uma Nova Visão do Mundo e talvez derradeira oportunidade de reprogramar a nossa mente e a nossa acção em prol de um Futuro que faça sentido.

As alterações climáticas são em grande medida, o produto final deste desacerto de escolha entre o nosso pior e o nosso melhor. E podem significar o fim certo de um Sonho Impossível ou o início de um Novo Sonho conduzido por uma Nova Paixão - a Ecologia do Planeta . A escolha não é múltipla, nem depende de um CLIC e exige a saída rápida do impasse e, se milagre houver, terá que ser alimentado por uma ideia apaixonante a Paixão pela Grande Magia que é o bom funcionamento dos ciclos naturais que sustentam a Vida na Terra.

Sabemos o quanto a ganância continua a proliferar, destruindo e ocupando impune e desordenadamente cada vez mais territórios. O quanto o aumento explosivo da população humana e das suas actividades tem introduzido nos ecossistemas, moléculas e processos e estruturas artificiais, exercendo pressões negativas crescentes sobre o funcionamento global de todo o conjunto da Biodiversidade: arrastando a degradação global dos ecossistemas, a degradação e destruição de habitats, a redução da variedade e do número de espécies.

Se queremos que a transição ecológica ocorra a tempo de evitar o pior temos que decidir todos participar nela e para isso é preciso “Renaturalizar o ser humano”.

Não no sentido de recuar ao tempo do caçador-recolector, até porque isso seria impossível por falta de espaço, mas no sentido de reprogramar o seu espírito. Recentrar o seu imaginário sobre a sua essência: não somos entidades artificiais, somos seres naturais, pertencemos ao conjunto da Biodiversidade, e por isso somos Natureza.

Mas então porque insistimos em imaginar, poder separarmo-nos dela?

Deveríamos já todos saber que isso é impossível e que tentar dominá-la, travando um combate contra ela é travar um combate contra nós próprios, do qual nunca sairemos vencedores. O Planeta e a Natureza não precisa de amiguinhos que os salvem, precisam integrar criaturas funcionais alinhadas com o Bem Comum, que mantenham os ciclos dos seus motores em bom estado de funcionamento.

Sabemos já todos, que o nosso futuro pessoal depende do nosso Futuro Comum. Mas depende a montante, da força motriz de cada Vontade Individual, genuinamente comprometida em reavaliar a sua Visão do Mundo. Rumo às possibilidades de um Novo Sonho que faça sentido. Individual e colectivamente alinhado com o Bem Comum.

É urgente acordar esta vontade individual procurando e partilhando informação, conhecimento e soluções, que permitam reunir as ferramentas adequadas para moldar as bases de uma Nova Visão do Mundo partilhada e claramente compreendida. Conscientes de que, só uma Visão partilhada e claramente compreendida e reivindicada por todos, pode conduzir à responsabilidade individual e colectiva de assumir, voluntária e pacificamente, uma Nova Ética conducente a novas condutas e novas estratégias, permanentemente ajustadas com vista a uma evolução para melhor. Quanto mais cedo agarrarmos o desafio, maiores serão as possibilidades de se assistir a uma transição pacificadora, justa e durável, ao contrário do que acontecerá a uma transição imposta por decreto.

Pois esta transformação só será pacífica se for voluntária e suficientemente contagiante para se tornar mobilizadora. Só assim as estruturas de poder se sentirão obrigadas e poderão ser forçadas a acelerar a implementação de uma nova Visão estratégica, também ela, exclusivamente alinhada com a Ecologia do Planeta e com o Bem Comum.

É urgente avaliar as possibilidades de cada escolha, de cada tecnologia, gerindo conscientemente e a cada momento, cada emoção, cada pensamento e cada acção à luz do conhecimento actualizado da evolução da Ecologia do Planeta, da informação mais premente e, das soluções que local e globalmente se revelem ecologicamente mais adequadas, mais justas e mais sustentáveis. Pois as alterações climáticas são muito mais uma consequência dos nossos problemas do que uma causa.

E se descesse-mos à terra?

E se escolhessemos dar outro sentido à forma como pensamos, educamos, produzimos e consumimos?

E se escolhessemos passar do egocentrismo ao ecocentrismo?