quarta-feira, 30 de junho de 2021

PARA QUE A MEMÓRIA NÃO SE PERCA.


 

1978, decorria o mês de Agosto, quando Eugénio de Andrade foi surpreendido ao ler, "na quarta página de um jornal trazido pelo vento", que no dia oito um edema pulmonar lhe levou um amigo, demasiado cedo.

 

À MEMÓRIA DE RUY BELO
 
Provavelmente já te encontrarás à vontade
entre os anjos e, com esse sorriso onde a infância
tomava sempre o comboio para as férias grandes,
já terás feito amigos, sem saudade dos dias
onde passaste quase anónimo e leve
como o vento da praia e a rapariga de Cambridge,
que não deu por ti, ou se deu era de vila do Conde.
A morte como a sede sempre te foi próxima,
sempre a vi a teu lado, em cada encontro nosso
ela lá estava, um pouco distraída, é certo,
mas estava, como estava o mar e a alegria
ou a chuva nos versos da tua juventude.
 
Só não esperava tão cedo vê-la assim, na quarta 
página de um jornal trazido pelo vento,
nesse agosto de Caldelas, no calor do meio-dia,
jornal onde em primeira página também vinha
a promoção de um militar a general,
ou talvez dois, ou três, ou quatro, já não sei:
isto de militares custa a distingui-los,
feitos em forma como os galos de Barcelos,
igualmente bravos, igualmente inúteis,
passeando de cu melancólico pelas ruas
a saudade e a sífilis do império,
e tão inimigos todos daquela festa
que em ti, em mim, e nas dunas principia.

consola-me ao menos a ideia de te haverem
deixado em paz na morte; ninguém na assembleia
da república fingiu que te lera os versos,
ninguém, cheio de piedade por si próprio,
propôs funerais nacionais ou, a título póstumo,
te quis fazer visconde, cavaleiro, comendador,
qualquer coisa assim para estrumar os campos.
Eles não deram por ti, e a culpa é tua,
foste sempre discreto (até mesmo na morte),
não mandaste à merda o país, nem nenhum ministro,
não chateaste ninguém, nem sequer a tua lavadeira,
e foste a enterrar numa aldeia que não sei
onde fica, mas seja onde for será a tua.

Agrada-me que tudo assim fosse, e agora
que começaste a fazer corpo com a terra
a única evidência é crescer para o sol.

1978

Em: POESIA E PROSA [1940-1986], Eugénio de Andrade, 3.ª edição aumentada, II volume, Círculo de Leitores, Lisboa, 1987, pp. 43 e 44.