quinta-feira, 27 de outubro de 2022

A POESIA COMUNICA, COMUNICA ATÉ INTENSAMENTE... - RUY BELO


 
 
A 27 de Fevereiro de 2023 completava 90 anos de idade  
 
No actual contexto social, económico-financeiro e cultural damos a palavra a Ruy Belo, transcrevendo a nota introdutória do seu livro, País Possível.
 
 
NOTA DO AUTOR
 
 
Este livro, que aparentemente poderia não passar de uma antologia visto que o integram um poema inédito e poemas extraídos dos meus últimos livros publicados, tem realmente uma unidade e é afinal um livro novo. E não o é apenas por eu publicar pela primeira vez na íntegra composições anteriormente truncadas por razões várias ou por eliminar ou emendar versos, por voltar a tentar suprimir o mais possível a pontuação, por resolver de vez «a guerra maiúsculas-minúsculas» a favor do lado mais fraco. 

Este livro é um livro novo porque um livro de poesia é, afinal, um lugar de convívio, um local onde os poemas reagem uns contra os outros, se criticam mutuamente, se transformam uns nos outros. É um livro novo, em suma, porque a ele, como a nenhum outro livro meu, preside indubitavelmente uma unidade temática: a do mal-estar de um homem que, ao longo da vida, tem pagado caro o preço por haver nascido em Portugal; a problemática de uma consciência que sofre as contradições próprias da sociedade em que vive e de um homem que tem atrás de si vários passados e vive várias vidas simultaneamente e que intensamente se autodestrói; que se vai suicidando lentamente porque essa sociedade o destrói e assassina e o censura e a censura se instala na sua própria consciência.
 
Unidade essa devida ao facto de estes poemas serem uma reflexão sobre o próprio poeta e a realidade que o rodeia, de serem uma forma de intervenção, de compromisso, de luta por um mundo melhor (não nos grita Mário Sacramento, no final da sua admirável Carta-Testamento: «Façam o mundo melhor, ouviram?») sem, por outro lado, o poeta pactuar com a demagogia, com o oportunismo que afinal representa não ver primordialmente na arte criação de beleza, construção de objectos tanto quanto possível belos em si mesmos, embora de difícil acesso porque a arte é difícil e precisa que, através da educação, da divulgação, da interpretação, quem a receba possa assim e só assim ter acesso a ela e assim se sentir vivo, vertical e assim actuar, intervir.
 
A poesia não é em si mesma, creio eu, uma forma de comunicação, como tão-pouco o são a pintura, a música, o romance, o verdadeiro e único romance, o romance que consegue que passe por ele a linha evolutiva da literatura. A poesia comunica, comunica até intensamente desde que se faça o leitor chegar até ela, esse leitor saído talvez de um povo que hoje, em Portugal, no estado de alienação ou alheamento em que se encontra, nem sequer se revê nas suas próprias criações, como, por exemplo, os romances do romanceiro tradicional. O povo português nem sequer se reconhece na sua música e prefere muitas vezes, penso eu, uma cançoneta de Tonicha transmitida pela rádio ou pela televisão, verdadeiras «técnicas de aviltamento», a uma composição qualquer das muitas que foram escrupulosamente recolhidas por Lopes Graça e Giacometti.

País Possível, portanto, creio eu. mais do que uma antologia, um livro novo: o livro possível, neste momento, a um homem que sente na poesia a sua mais profunda razão de vida mas se sente, simultaneamente, solidário com os outros homens, que talvez tenham dificuldade em compreendê-lo porque houve quem se empenhasse em que não compreendessem, nem pensassem, porque pensar é realmente um perigo, o maior dos perigos. Pensar, pensar como um homem que nasceu livre e quer morrer livre, leva depois inevitavelmente a actuar, a lutar contra qualquer forma de opressão.

Mas só agora reparo que digo melhor tudo isto nalgum destes poemas. Estou afinal a comentar-me, a plagiar-me a mim próprio e só isso eu não aceito em arte. Por isso ponho ponto final nesta note, onde espero ter sido mais claro do que na minha poesia em geral.

É que não acredito realmente na clareza como um propósito da arte, quanto mais não fosse porque eu, quando construo um poema, não procedo de maneira a obter resultados que seriam decerto mais fáceis de conseguir através de uma carta, de uma conversa telefónica, de um artigo, de um discurso. É evidente que espero, ao fim e ao cabo, vir a ser claro. Mas isso não é, num poema, problema meu. Em contrapartida, espero tê-lo sido nesta nota, redigida um pouco à maneira de quem conversa em família.


Madrid, 1 de Maio de 1973.
 

Em: Ruy Belo, Todos os Poemas, Círculo de Leitores, 2000, pp. 361 e 362.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

IDEÁRIO PARA A CRIAÇÃO - JORGE DE SENA

 


 

 

IDEÁRIO PARA A CRIAÇÃO

 

 

Quando, em ti próprio, ouvires algum combate

do sonho em luta com a sua própria alma

e o mundo te parecer maior que a vida

e a vida te parecer a velha estrada

onde só tu não perseguiste o sonho,

defende, de ambos, o que for vencido.

 

Quando, à tua beira, houver um perseguido

e o escárnio se abater sobre o que ele pensa

e o mundo inteiro o perseguir mentindo

uma mentira maior que a dessa ideia,

defende-a como tua antes que o mundo

esmague em si próprio a chama em que se ateia.

 

Quando, como hoje, os crimes forem tantos

que as prais sequem no desdém das ondas,

e o melhor homem for um criminoso

voltando ansioso ao local do crime,

e o sangue nem lhe suje a ansiedade

porque não há mais sangue que ciências loucas,

grita aos ventos da morte que os traíram -

e na terra se ouça que a verdade é falsa

e só eram verdade os que partiram.


Em: Jorge de Sena, Poemas Escolhidos, Círculo de Leitores, 1988, p. 46

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Anúncio de corte da produção de petróleo pela OPEP monta-se em cima da inflação de 10% que varre a Europa. Depois do fim dos Nordstrems por sabotagem, apenas uma certeza fica: não há energia que chegue para manter a normalidade no centro da Europa. A aposta em gás dos últimos anos enfiou o continente nos bolsos da indústria fóssil e dos países que a albergam, enquanto o clima colapsa frente aos nossos olhos.

A indústria fóssil conseguiu, ao longo das últimas décadas, fazer-se confundir absolutamente com o capitalismo global, através da cooptação tecnológica e de compra da política. Durante os últimos 50 anos, as petrolíferas fizeram em média 2,9 mil milhões de euros por dia. Por dia. Construíram um sistema social e tecnológico e um regime político completamente viciados em petróleo e gás. Cada produto, cada viagem, cada moeda que troca de mão ou transação financeira em bolsa, tudo ligado o máximo possível aos fluxos de petróleo, gás e carvão.

A crise climática produziu este verão situações extremas de seca, incêndios florestais e cheias históricas. Tudo isto continua: a seca que atravessa a China não tem paralelo na História, as inundações no Paquistão ocupam um terço do país e colocaram 33 milhões de pessoas sem teto. Em Portugal, avança a desertificação. Os piores cenários são ultrapassados muito antes do tempo. Mas a máquina do capitalismo fóssil não para. Acelera. Lucra como nunca.

Ainda antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, um petroestado que depende totalmente da manutenção da indústria fóssil para manter a sua elite capitalista, os preços do petróleo e do gás já estavam a subir. Para compensar todos os lucros que tinham escapado durante o Covid, a indústria decidiu que era altura de lucrar à grande, já que os conselhos de administração destas empresas criminosas acham estatutariamente que estes lucros lhes são sempre devidos.

Com a invasão da Ucrânia, o festim tornou-se obsceno. As ameaças de corte de gás por Putin faziam os mercados de futuros salivar e o preço subia, em simultâneo, por todo o lado. E assim, o primeiro semestre de 2022 foi provavelmente o mais rentável de sempre na história da indústria petrolífera. A Saudi Aramco, a maior petrolífera do mundo, fez 287 mil milhões de euros de lucro nos últimos doze meses, próximo do PIB da Finlândia. A Exxon Mobil fez 23,8 mil milhões de euros de lucro no segundo trimestre do ano, mais de 250% de crescimento em relação ao ano anterior. A GALP fez 420 milhões. As petrolíferas triplicaram os seus lucros no primeiro semestre deste ano, mais de 103 mil milhões de euros.

Quer saber de onde vem todo este lucro? Dos preços de tudo. A inflação com que nos bombardeiam todos os dias tem uma fonte inequívoca: a energia fóssil. A decisão livre por parte das petrolíferas acerca daquilo que produzem, e a influência disto nos preços é que provocou o caos em que estamos mergulhados. Como que para ilustrar ainda melhor a situação, perante a sabotagem dos NordStream 1 e 2, que faz aumentar ainda mais os preços do gás, a OPEP, a organização dos países produtores de petróleo e gás, decidiu cortar drasticamente a sua produção para aumentar os preços de novo.

Estas manobras são a origem da crise de preços que vivemos hoje. Na Alemanha e no centro da Europa, várias das principais fábricas da indústria pesada, ainda totalmente dependentes de gás, já estão a fechar ou fecharão em breve, pelo preço da energia e pela escassez da mesma. A inflação na República Checa está quase nos 20%, a energia está mais do dobro do preço de há um ano atrás e o gás custa três vezes mais. Na Holanda, a inflação está quase nos 15%, com energia e gás a custarem quase quatro vezes o que custavam há dois anos atrás.

A inflação ainda não parou de subir. Prognósticos favoráveis são magia contabilística e cenários irrealistas, que rejeitam a realidade. Os produtos vão ficar mais caros e a comida ainda mais, porque a pulsão especulativa também se encavalita na situação. E não vai parar com a austeridade encapotada de subir salários abaixo da inflação, que é a decisão de quase toda a Europa. A Alemanha já anunciou que vai atirar 200 mil milhões de euros à sua economia.

Temos um problema existencial e conjuntural que se chama a indústria fóssil. Em particular na Europa, a vertente mais clara desse crime chama-se gás “natural” e, perante a aberração económica de nos vermos na sua dependência e a aberração suicida que é continuar a mandar milhões de toneladas de metano e dióxido de carbono para a atmosfera pelo seu transporte e queima, a aposta dos governos capitalistas é a sua expansão.

Somos, há muito, liderados por loucos que obedecem a sociopatas.

As indústrias petrolíferas têm de cessar de existir. Poder-se-ia argumentar a favor da sua nacionalização, e em alguns contextos até se poderia justificar, mas apenas para garantir que uma transição para um sistema socialmente justo e compatível com os cortes que a Ciência Climática exigem – cortar 50% das emissões até 2030 – se fizessem de forma planeada e real.

As empresas fósseis são entidades criminosas, não apenas culpadas do crime de privação generalizada da populações para seu benefício, mas de exercerem uma atividade cujo resultado necessário é o colapso das civilizações humanas. É preciso travá-las.


Este artigo foi originalmente publicado em https://expresso.pt/opiniao/2022-10-17-Inflacao-e-crise-climatica-a-industria-fossil-esta-a-engolir-nos-vivos-240ba464 no dia 17 de Outubro de 2022