domingo, 25 de dezembro de 2022

NATAL - MIGUEL TORGA

 NATAL

 

De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis por se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. «Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser» - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no Céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.

E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse doutra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera.se.lhe em cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza. Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra dum borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhe a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta, passava das quatro. E, como anoitecia cedo, não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer! Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo.. Areias, queriam dizer. Importava-lhe lá.

E caía, o algodão-em-rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...

Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!

Com patorras de elefante e branco como o moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro de ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.

Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças! 

Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.

Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora O diabo era arranjar lenha.

Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois dum clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos, é que não.

Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.

Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao Céu por aquela ajuda, olhou o altar.

Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe.

- Boas festas! - desejou-lhe então, a sorrir também.

Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.

Daí a pouco, envolvido pala negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de se cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca;; que mais faltava?

Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra, e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.

- É servida?

A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.

E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias-medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.

- Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia dum patriarca. - A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.


Obras Completas de Miguel Torga, Contos, Círculo de Leitores, 2002, p.p. 399 a 402.


terça-feira, 20 de dezembro de 2022

8º Encontro Nacional pela Justiça Climática

10 e 11 de Fevereiro

Departamento de Física da Universidade de Coimbra, Coimbra

Junta-te a centenas de pessoas e dezenas de organizações do movimento pela Justiça climática no 8º Encontro Nacional pela Justiça Climática (ENJC)!

Inscreve-te AQUI!

Tantas crises. E eu sou só uma pessoa.

Aumentam os preços, no fim do mês o dinheiro escasseia. Aumenta a temperatura, há cada vez menos floresta e menos água. Aumentam os lucros dos milionários, torna-se um luxo o acesso a casas, cuidados de saúde, energia e alimentos de qualidade. Estou em pânico com as notícias. Multiplicam-se as secas, as ondas de calor, os incêndios, os furacões, as cheias,… Soam os alertas. Logo normalizados

O que fazer quando um território está a arder? O que fazer quando um terço do Paquistão fica submerso e sabemos que só vai piorar? Dizem-nos que não há outro caminho. Que não temos poder. Dizem-nos que estamos isoladas. Mas nós não estamos sozinhas. Tu não estás sozinha. 

O sistema capitalista e extrativista em que vivemos está a afundar-nos numa crise civilizacional que deriva da sua incapacidade de aceitar limites e suplantar a sua natureza predadora. Nestas condições, a complexidade e gravidade ligada à criação de crises constantes, que agravam as injustiças, as desigualdades e a exploração, são inevitáveis. Perante esta rotina sempre muito justificada, mas pouco justificável, somos empurradas para uma espécie de “normalização de uma realidade adaptada a estas crises”. As lutas começam a parecer cada vez mais particularizadas e afastadas umas das outras. 

Mas porquê, se tudo isto é inerente ao sistema que coloca constantemente o lucro e não as pessoas e a Vida no centro? 

Dias 10 e 11 de fevereiro, junta-te a centenas de pessoas e dezenas de organizações do movimento pela Justiça climática no 8o Encontro Nacional pela Justiça Climática (ENJC). Pela primeira vez, o ENJC sai de Lisboa e vai para o centro de Portugal, de forma a sermos muitas mais, unindo sul e norte do país em Coimbra. Este é um espaço de partilha de conhecimento e experiências, onde tu podes conhecer as lutas que enfrentamos, as pessoas que as travam e as soluções e caminhos por percorrer. Este é o espaço e momento para conheceres e escolheres como te podes envolver nos próximos passos do movimento pela justiça climática em Portugal. 

Se és de Coimbra e queres ajudar a criar este evento incrível é só nos deixares um comentário e entramos em contacto contigo!

Este evento dependerá de muita esforço coletivo e esforço em angariar fundos para que o mesmo tenha uma participação acessível a todas. Para tal, se gostarias de contribuir e ajudar-nos, criámos Esta Página onde podes doar para o nosso evento 🙂

Aqui ficam os links para os encontros anteriores:

7º Encontro Nacional pela Justiça Climática

6º Encontro Nacional pela Justiça Climática


O 8º Encontro Nacional pela Justiça Climática  é co-organizado por:

AmbientalIST, ClimaçãoCentro, Climáximo, EcoMood, Greve Climática Estudantil, Sciaena, Scientist Rebellion, ProTejo, Último Recurso, Um Coletivo, UMAR, Youth Climate Leaders, Zero.

Com o apoio de : Centro de Estudos Sociais, Coopérnico, EcoPsi, IMVF, Já Marchavas, Linha de Fuga, M.A.E., PTRevolution,

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

"Livre não sou,..." - MIGUEL TORGA

Nestes tempos de destruição em massa e repressão sobre as pessoas que resistem e lutam em defesa da vida. Partilhamos dois poemas de Miguel Torga que também foi perseguido e preso, na sequência da publicação de O Quarto Dia da Criação do Mundo, em 1939.

 

Conquista

 

Livre não sou, que nem a própria vida

Mo consente.

Mas a minha aguerrida

Teimosia 

É quebrar dia a dia

Um grilhão da corrente.

 

Livre não sou, mas quero a liberdade.

Trago-a dentro de mim como um destino.

E vão lá desdizer o sonho do menino

Que se afogou e flutua

Entre nenúfares de serenidade

Depois de ter a lua!



S.O.S

 

Vai ao fundo o navio,

Mas eu sou o homem da telegrafia.

O que lança nas asas do vazio

O adeus da agonia...


Sei que ninguém acode à íntima certeza

De que tudo acabou quando naufraga

O veleiro do sonho.

Mas honrado poeta sinaleiro

Do destino de quantos aqui vão,

Ponho

A correr mundo o grito derradeiro

Da nossa desgraçada perdição.

 

Em: Miguel Torga, Antologia Poética, Círculo de Leitores, 2001, pp. 126/7

NÃO ESTÃO SOZINHAS! PORQUE TEMOS QUE NOS LIBERTAR DO SISTEMA ECOCIDA

Francisco Pedro (Kiko) – Jornalista e Activista da ATERRA

Não estão sozinhas porque eu também cá estou.
Não estão sozinhas porque a vossa coragem, sensibilidade e inteligência nos juntaram a todas nós, nesta linda tarde de outono, junto a este horrível tribunal. 

Não estão sozinhas porque somos muitas a dar aquilo que de mais precioso temos – o nosso tempo e os nossos talentos – para travar os projectos ecocidas duma pequena elite ignorante e imatura.

Não estão sozinhas porque somos cada vez mais homens a aprender, com a vossa ajuda, a abrir-nos às nossas emoções, a calar a boca e a escutar.

Não estão sozinhas porque as nossas antepassadas estão connosco. Porque estamos a continuar a dança de todas as que antes de nós ousaram desobedecer, cuidar e amar por entre a ignorância e a injustiça.

Não estão sozinhas porque estão connosco as nossas filhas, todas as crianças que já nasceram e que vão nascer, e é por elas que lutamos e cuidamos nesta nossa fugaz e preciosa passagem.

Não estão sozinhas porque há sempre flores de ervas daninhas a romper o betão e raízes de árvores a levantar calçadas.

Porque há imensa vida para além dos muros das cidades.

Porque todos os outros animais da terra, do ar e das águas, plantas e fungos, bactérias e vírus, estão connosco também, e nós estamos com eles.

Porque por toda a parte a vida quer regenerar-se e prosperar, e temos a curiosidade de redescobrir o nosso papel nesse natural e misterioso re-equilíbrio da mãe Terra.

Não estão sozinhas porque nenhuma de nós o está. Porque juntas superamos as ilusões da separação, da solidão e da depressão. Porque juntas fazemos a nossa história, aquela que vem depois do patriarcado, do capitalismo e do colonialismo, em que nenhum ser vivo ficar para trás.

Não estão sozinhas porque a vida é muito mais divertida, simples e verdadeira quando desobedecemos ao que dizem as elites e obedecemos ao que diz o coração.

Não estão sozinhas.
Não estamos sozinhas.

Mensagem às activistas presas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e, posteriormente, levadas a tribunal. Processo judicial que se arrasta, com nova audiência marcada para dia 16.

 Publicada, entre outras, em: https://naoestaosozinhas.pt

Notas: O Kiko, também já foi preso e levado a tribunal por dizer publicamente umas verdades, na presença do primeiro dos ministros (o que preside ao concelho) e seus correlegionários politico-ideológicos e patrões/empresários/empreendedores/corporativos, cujos interesses o Estado garante e os contribuintes pagam e sofrem as consequências, dos crimes pelos mesmos cometidos. 

Ecocida: que ou o que é agente ou causador de ecocídio.

Ecocídio: destruição intencional de um ecossistema.

Dicionário da Língua Portuguesa - Porto Editora, Lda, 2009


 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

NÃO AO NOVO GASODUTO!


Comunicado | Não ao novo gasoduto!

Campanha Gás é Andar para Trás opõe-se à construção do novo gasoduto entre Portugal e Espanha.

Hoje os governos de Portugal, Espanha e França reúnem para decidir os detalhes de um plano criminoso: a expansão da infraestrutura fóssil em plena crise climática. Trata-se da construção da terceira conexão via gasoduto entre Portugal e Espanha, de Celorico da Beira até Zamora, com seguimento no gasoduto entre Barcelona a Marselha (nova ligação entre Espanha e França).

A Campanha Gás é Andar para Trás opõe-se à construção desta infraestrutura ociosa que nos prende ao vício do gás fóssil e impede reais soluções.

O novo gasoduto não vai transportar energia renovável

A denominação “corredor de energia verde” é mais uma tentativa do governo português de pintar de verde um projeto poluente e criminoso. As energias renováveis – solar, eólica, ondas, etc – não necessitam de um gasoduto.

Segundo o governo, o gasoduto é “verde” porque servirá para transportar hidrógenio, algures no futuro.
Em primeiro lugar, Hidrogénio não é uma energia renovável, precisando de uma fonte de energia para ser produzido. Não há garantia de qual será a energia utilizada para produzir esse hidrógenio, sendo a maioria do hidrógenio atualmente produzido através de combustíveis fósseis.
Em segundo lugar, sabemos que a infraestrutura de gasodutos não tem capacidade técnica para transportar 100% hidrógenio visto ser um gás instável e que cria microfissuras nos gasodutos. Assim, a infraestrutura de gasodutos atual é capaz de transportar no máximo 20% de hidrogénio necessitando de ser misturado com gás fóssil. Assim, mesmo no melhor cenário, será necessário que no mínimo 80% da matéria a ser transportada seja “gás natural”, um combustível fóssil.

Descobre mais sobre hidrogénio AQUI.

O novo gasoduto bloqueia uma transição energética

Este projeto fóssil desvia financiamento público. Tratam-se de milhões de euros de fundos públicos a serem utilizados para uma nova infraestrutura fóssil ao invés de serem utilizados para a construção de infraestruturas de energias renováveis e para garantir uma transição justa para todos os trabalhadores da indústria fóssil. Estes investimentos em gás fóssil não são compatíveis com a trajetória de neutralidade climática da União Europeia e não podem ser considerados investimentos sustentáveis ou com contributo para os objetivos climáticos europeus. Fazê-lo é apenas estender novamente o tapete à promoção de projetos obsoletos e extremamente prejudiciais para a vida de todas as pessoas.

Em plena crise climática, em que enfrentamos cheias e secas extremas, um gasoduto é uma arma de crime contra a vida e uma infraestrutura ociosa que nos prende ao caos climático e impede a real transição.

O novo gasoduto não vai levar a preços de energia e gás mais baratos

A causa principal da inflação atual é gás fóssil, como refere a Agência Internacional de Energia: “Os altos preços da energia estão a causar uma enorme transferência de riqueza dos consumidores para os produtores, para níveis similares aos de 2014 no caso do petróleo, mas totalmente sem precedentes no caso do gás natural. Os preços altos dos combustíveis são responsáveis por 90% do aumento dos custos médios da geração de eletricidade a nível global, com o gás natural à cabeça, sendo responsável por mais de 50% do aumento.”

Ao mesmo tempo que os preços de gás dispararam os lucros das empresas fósseis bateram recordes. O nosso dinheiro está a ir diretamente para os bolsos dos acionistas. A construção de novas infraestruturas de gás fóssil só alimentam este vício e especulação.

Ao mesmo tempo, as energias renováveis como solar e eólica nunca tiveram tão baratas e acessíveis. Aliás, com o mesmo investimento que a Europa tem feito na expansão de gás fóssil – com mais importações e mais infraestruturas – seriamos capazes de produzir mais 10% de energia, se fosse antes utilizado para aumentar de capacidade de energia solar.
O plano para soberania e democracia energética que garante energia acessível a todas é energia pública e 100% renovável.

Hoje voltamos a dizer Não ao Novo Gasoduto!

Não é a primeira vez que o governo português tem este plano criminoso. Em 2018 o movimento pela justiça climática lutou contra este mesmo projecto, que foi cancelado por pretender atravessar património mundial. Hoje o movimento pela justiça climática reitera a sua posição: não deixaremos a construção de mais armas de crime contra a vida de todas as pessoas que têm como único fim o lucro da indústria fóssil.

Via: https://www.climaximo.pt/2022/12/09/comunicado-nao-ao-novo-gasoduto/

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

GÁS NATURAL?

O gás é tão natural como o petróleo, o carvão e as areias betuminosas. Estão todas entre as energias extremistas...

Vejamos como é extraído e as consequências daí resultantes. 

No ano 2000 houve uma expansão exponencial no Estados Unidos da América (do Norte), recorrendo à extracção através da fractura hidráulica (fracking, em inglês). Com este método, para extrair petróleo e gás, fazem-se furos nas rochas do subsolo injectando um fluído a alta pressão. Fluído que tem entre os seus componentes ácidos, biocidas, espumas, gel formaldeído, benzeno, xileno, crómio, antimónio, hidróxido de sódio, tolueno, etanol, naftaleno e areia, entre centenas de outros produtos químicos. 

Após a abertura do furo, as areias mantêm-no aberto para assim o gás e o petróleo poderem sair das jazidas geológicas, usualmente através de condutas. Este fluído contamina solos, subsolos e a escassa água doce e potável subterrânea.

Como o fluído é injectado a alta pressão provoca e aumenta a frequência de tremores de terra. Este processo, como está documentado em, por exemplo, Gasland, destrói e contamina os terrenos, ás águas ficam cheias de metano dissolvido e o ar irrespirável, provocando doenças a pessoas e animais. Em suma: destruição absoluta, matando toda as formas de vida.

Segundo João Camargo, as fugas de gás nos poços de petróleo, de gás e nos solos desestruturados pode atingir, em volume, os 9% do gás extraído. A introdução da extracção do gás por fractura hidráulica (fracking) levou a que os Estados Unidos sejam os maiores produtores de gás do mundo, e as emissões de gás metano, para a atmosfera, no país, aumentaram em 30% desde 2002. O gás metano tem um efeito de estufa muito superior ao do dióxido de carbono (25 a 84 vezes maior, ainda que fique menos tempo na atmosfera). 

Este método de exploração e extracção de gás e de petróleo, para além de destruírem os territórios onde se instalam, tornando-os inabitáveis e matando todo o tipo de vida,  aumentam e aceleram exponencialmente as emissões de gases com efeito de estufa. Os EUA são os maiores produtores de gás por fractura hidráulica, mas também a China, Argélia, África do Sul, Argentina, México, Inglaterra e Canadá o fazem. A Irlanda, Escócia, Bulgária e Alemanha, não utilizam esse processo, e a França, Holanda e Tunísia adoptaram uma moratória contra a sua utilização.

Respigado de: Manual de Combate às Alterações Climáticas, João Camargo, Edições Parsifal, Lda, Lx., 2018, p.p. 189/190.

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

#NãoEstãoSozinhas!

4 ESTUDANTES DO MOVIMENTO “FIM AO FÓSSIL – OCUPA!” VÃO A TRIBUNAL

Sexta-feira (11 de novembro), a polícia de choque entrou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, à moda da ditadura salazarista, e removeu estudantes que protestavam pelo seu futuro.

Dia 29 de novembro, às 14:00, vão ser apresentadas a tribunal.

O julgamento está marcado para dia 29 de Novembro às 14h, no Campus de Justiça (Oriente), edifício F.  Apareçam na manifestação de apoio e chamem amigas, família e colegas & partilhem o cartaz que publicámos nas redes sociais! https://www.instagram.com/p/ClLib4gMKdk/?igshid=YmMyMTA2M2Y=


Esta situação só é possível devido ao retrocesso do movimento popular gerado após o Golpe de Estado, levado a cabo pelo movimento dos capitães, que derrubou o regime fascista/colonialista em 25 de Abril de 1974. Esse retrocesso é consequência do golpe político-militar reaccionário de 25 de Novembro de 1975, que impôs o silêncio opressor do estado de sítio, do recolher obrigatório, que levou; fascistas e demais magnates a rejubilaram, os militares comprometidos com as lutas populares para a prisão e as pessoas, em particular as trabalhadoras, as mais pobres, que tinham lutado organizadas no movimento popular, a entenderem como  findo o seu brevíssimo tempo de liberdade.

25 de Novembro é a única data fundadora do regime actual. Esta é a data que todos anos os actuais detentores do poder celebram a 25 de Abril. 

Porque de Abril resta quase nada. A liberdade não passa de uma ilusão, para a esmagadora maioria das pessoas, enquanto as grandes corporações económico-financeiras possuem toda a liberdade para obterem lucros fabulosos, acumulando riqueza, e os pobres são cada vez mais e mais pobres.

Hoje, as pessoas que lutam, que querem resolver as questões da sua vida colectiva, como o combate necessário e urgente às alterações climáticas, através da exigência do fim dos fósseis e de uma transição energética justa, com a participação das pessoas que trabalham e das comunidades locais, são reprimidas, presas e levadas a julgamento.

A democracia não é o espectáculo das instituições, os rituais formalistas e burocráticos, mas a via para questionarmos a ordem social iníqua, que está a levar a espécie humana para a catástrofe.

terça-feira, 22 de novembro de 2022

HOMENAGENS E OUTROS EPITÁFIOS - EUGÉNIO DE ANDRADE

AO MIGUEL, 

NO SEU 4.º ANIVERSÁRIO, 

E CONTRA O NUCLEAR, NATURALMENTE

Vais crescendo, meu filho, com a difícil

luz do mundo. Não foi um paraíso,

que não é medida humana, o que para ti

sonhei. Só quis que a terra fosse limpa,

nela pudesses respirar desperto

e aprender que todo o homem, todo,

tem direito de sê-lo inteiramente

até ao fim. Terra de sol maduro,

redonda terra de cavalos e maçãs,

terra generosa, agora atormentada

no próprio coração; terra onde teu pai

e tua mãe amaram para que fosses

o pulsar da vida, tornada inferno

vivo onde nos vão encurralando

o medo, a ambição, a estupidez,

se não for demência apenas a razão;

terra inocente, terra atraiçoada,

em que nem sequer é já possível

pousar num rio os olhos de alegria,

e partilhar o pão, ou a palavra;

terra onde o ódio a tanta e tão vil

besta fardada é tudo o que nos resta,

ou aos chacais, que do saber fizeram

comércio tão contrário à natureza

que só crimes e crimes e crimes paria.

Que faremos nós, filho, para que a vida

seja mais que cegueira e cobardia?

11-3-84

Em: Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa [1940-1986], 3.ª edição aumentada, II Volume, Círculo de Leitores, 1987, p. 47/8

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

A CARTA QUE O MINISTRO DA ECONOMIA RECUSOU ASSINAR


Carta de demissão apresentada pelas ativistas

Face aos recentes protestos de milhares de pessoas na última semana, que reivindicam o “fim aos fósseis no governo, a começar pela demissão imediata do ministro da economia e do mar, António Costa Silva”, apresento hoje, dia 15 de Novembro de 2022, a minha demissão das funções de Ministro.

Partilhando as preocupações ambientais destes jovens que exigem também o fim aos combustíveis fósseis até 2030, reconheço que o que defendia como uma “diversificação da companhia [Partex] com a aposta crescente nas energias renováveis (…)”, se trata na realidade de uma aposta na crescente importação de gás natural, um combustível fóssil que, como alertam os ativistas e a comunidade científica, tem de parar de ser utilizado até 2025 em Portugal caso queiramos evitar o colapso civilizacional.

Enquanto Ministro da Economia e do Mar fui incapaz de desempenhar as funções que se pretendem de um governo, principalmente a da salvaguarda da população portuguesa, tendo proferido palavras que não me seriam permitidas pelo artigo 45 da Lei de Bases do Clima, ao dizer que “Se hoje existirem empresas interessadas em investir nessas reservas e se vieram ter comigo, eu não terei reservas. Eu não penso fora da caixa. Eu não tenho qualquer caixa.”

Para além destes factos, embora saiba das preocupações climáticas da população desde 2019, em particular das gerações mais novas, ignorei-as ao não garantir que o Ministério da Economia, que até ao dia de hoje representava, investisse os 6 a 9 mil milhões de euros de fundos públicos em 200 mil Empregos Para o Clima, o único plano existente neste momento compatível com a crise climática. Em vez disso, defendi o lucro das petrolíferas, tendo inclusive expressado relutância em taxar os lucros extraordinários de empresas como a Galp, que no último ano duplicaram os seus lucros, enquanto a crise do custo de vida se instalava no seio das famílias portuguesas.

Pelos motivos supramencionados, apresento hoje a minha demissão das minhas funções de governo, esperando que o resto do governo e os meus sucessores ouçam as palavras dos estudantes que lutam pelo futuro de toda a população, implementando planos ambiciosos para o combate da crise climática, pondo a sobrevivência, e não o lucro, no centro das suas preocupações.

15 de Novembro de 2022,

[Espaço em branco que ministro se recusou a assinar]. 

Alice Gato, Francisca Duarte, Leonor Chicó, Raquel Alcobia e Teresa Núncio.

Publicada originalmente no Expresso online a 17 de Novembro de 2022

DETIDAS DEPOIS DA REUNIÃO COM O MINISTRO DA ECONOMIA


Detidas depois da reunião com o ministro da economia

Porque é que nós fomos detidas?

Artigo original publicado no Expresso online a 17 de Novembro de 2022.

Esta terça feira, nós – 5 ativistas da Greve Climática Estudantil (GCE) entre os 17 e 21 anos – fomos detidas por nos termos colado à porta do ministério da economia depois de reunir com o ministro da Economia e do Mar, exigindo a sua demissão e dizendo que não saíamos até ele sair. Porquê?

António Costa Silva teve tempo para fazer a escolha certa, pois esta não é a primeira vez que é alertado pelo movimento pela justiça climática. Em 2019, os nossos protestos deixaram claro o alerta para a emergência climática, e desde aí a exigência de neutralidade carbónica até 2030 permanece ignorada.

Nessa altura, enquanto CEO da petrolífera Partex, afirmou-se publicamente contra as vitórias de um movimento que cancelou 8 contratos de petróleo offshore da sua empresa (entre outros), prevenindo emissões na ordem das 10 mil toneladas de CO2.

Ainda assim, durante a pandemia, foi quem foi eleito para “reerguer” a economia do país, seguindo o plano de recuperação e resiliência (PRR). Reparámos que, para António Costa Silva, falar de “descarbonização” e “transição”, é recomendar o avanço do aeroporto do Montijo, a mineração do mar dos açores, a construção de um gasoduto a partir de Sines e a expansão dos portos para aumentar a “competitvadade” e importação de gás fóssil.

Já recentemente, e enquanto ministro, pronunciou-se contra a Lei de Bases do Clima, mostrando-se aberto a propostas de empresas para furar o Algarve para obter gás fóssil.

Quando veio a público que as petrolíferas duplicam os seus lucros enquanto uma crise se instala no seio das famílias portuguesas, o ministro colocou-se contra a taxação dos lucros extraordinários das primeiras, alegando que as empresas não estão prontas.

Depois de uma semana de ocupações estudantis, no passado domingo o ministro disse estar disponível para nos ouvir. Propusemos uma palestra sobre crise climática, que recusou, talvez porque não reconhecer a própria ignorância: no PRR, afirma que “(…) é vital reduzir até 2040 o consumo de carvão em 40%, reduzir em 15% o consumo de petróleo e aumentar o consumo de energias renováveis em 40%”. A ciência que lhe queríamos transmitir diz que temos de cortar 75% das emissões até 2030.

Apenas aceitou falar connosco à porta fechada, não compreendendo sequer o porquê: devíamos era falar com o ministro do ambiente, alega. Já que ali estávamos, falou-nos orgulhoso da sua capacidade em reduzir emissões, embora diga que as quer aumentar, pois talvez o Sr. Ministro não saiba, mas o gás fóssil não é renovável, produzindo tantas emissões como o carvão. Portugal não precisa de mais energia nem baterias para alimentar o mercado dos carros elétricos. Não admitimos falsas esperanças e milagres tecnológicos. Precisamos de uma transição energética justa e não de uma expansão energética. De que nos servem as renováveis se não cortarmos emissões?

Por outro lado, quando questionado sobre os vários trabalhadores postos no olho da rua aquando da sua “vitoria” do encerramento de centrais termoeléctricas, recusou-se a comentar. Se para Costa Silva transição é sinónimo de expansão, justiça nem entra no seu vocabulário.

Diz que não demos propostas concretas, mas fizemos acompanhar a exigência da sua demissão com a necessidade de acabar com o gás até 2025, a par de um investimento público de 6 a 9 mil milhões para o único plano de transição compatível com a ciência que existe em Portugal. O ministro admitiu nem conhecer a Campanha Empregos para o Clima que produziu esse plano.

Se António Costa Silva tem a agenda demasiado preenchida para ouvir sobre ciência climática por parte de ativistas, nós temos a agenda demasiado preenchida para negacionismo climático.

Todas as conquistas do movimento supramencionadas foram ganhas por manifestações e desobediência civil, não por negociação, porque não dá para negociar a ciência climática. Precisamos de um corte de emissões, as exigências para a nossa governação são claras e António Costa Silva, defensor do lucro e do petróleo, não tem legitimidade social para as levar a cabo. Não temos escolha face à necessidade de garantir um futuro para todas nós: não arredamos pé (nem mão) até que o fim aos fósseis esteja assegurado.

Quarta-feira fomos presentes a tribunal por termos exigido que se parasse com os crimes que estão a ser cometidos contra a humanidade. Enquanto jovens ativistas são acusadas de desobediência por resistir à ordem de destruir o planeta, punidas com dezenas de horas de serviço comunitário, António Costa Silva e a indústria fóssil permanecem impunes. 

Eles nunca vão parar. Cabe-nos a nós fazê-lo com a nossa força coletiva organizada, que voltará a ser demonstrada pelas ações de desobediência civil a partir de 2023 da campanha Gás É Andar Para Trás, com o objetivo de parar o gás fóssil, e com as próximas ocupações estudantis da primavera da GCE.

Alice Gato, Francisca Duarte, Leonor Chicó, Raquel Alcobia e Teresa Núncio.

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

DISCURSO TARDIO À MEMÓRIA DE JOSÉ DIAS COELHO - EUGÉNIO DE ANDRADE

José Dias Coelho, pintor, foi assassinado pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), em plena via pública, com vários tiros pelas costas.

Catarina Eufémia, assalariada agrícola, foi assassinada pela GNR (Guarda Nacional Republicana) com um tiro à queima roupa, em plena planície alentejana, com um filho ao colo e outro no ventre.

Esquecer, é ser cúmplice e contribuir activamente para a ascensão das forças reaccionárias, ditatoriais que assolam o nosso futuro.


DISCURSO TARDIO

À MEMÓRIA DE JOSÉ DIAS COELHO


Éramos jovens: falávamos do âmbar

ou dos minúsculos veios de sol espesso

onde começa o verão; e sabíamos

como a música sobe às torres do trigo.


Sem vocação para a morte, víamos passar os barcos,

desatando um a um os nós do silêncio.

Pegavas num fruto: eis o espaço ardente

do ventre, espaço denso, redondo, maduro,

 

dizias: espaço diurno onde o rumor

do sangue é rumor de ave - 

repara como voa, e pousa nos ombros

da Catarina que não param de matar.

 

Sem vocação para a morte, dizíamos. Também

ela, também ela a não tinha. Na planície

branca era uma fonte: em si trazia

um coração inclinado para a semente do fogo.

 

Morre-se de ter uns olhos de cristal,

morre-se de ter um corpo, quando subitamente

uma bala descobre a juventude

da nossa carne acesa até aos lábios.

 

Catarina, ou José - o que é um nome?

Que nome nos impede de morrer,

quando se beija a terra devagar

ou uma criança trazida pela brisa?

1972

 

Em: Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa [1940-1986], 3.ª edição aumentada, II Volume, Círculo de Leitores, 1987, p. 37. 


Salvar o Clima

Unir Contra o Fracasso Climático

A indústria fóssil conseguiu viciar, ao longo dos últimos 50 anos, toda a economia global, em petróleo, gás e carvão. Acabámos de sair de um verão catastrófico em termos de clima: a maior seca dos últimos 500 anos na Europa, a seca da China que não tem paralelo na História, as inundações no Paquistão que ainda alagam um terço de um dos maiores países do mundo e incêndios, fogos e furacões, assolando todos os oceanos e florestas do planeta. Mas a máquina não para.

No primeiro semestre deste ano, os fósseis triplicaram os seus lucros. As petrolíferas lucraram como nunca. E os preços de tudo o que nós precisamos aumentaram dramaticamente (não só as coisas supérfluas, mas mesmo as coisas essenciais, como comida ou transportes). Pagamos nestes preços os lucros das petrolíferas. E ainda nem chegámos ao fundo do poço.

A ameaça do colapso climático faz com que a atual crise seja apenas o começo do que há por vir. Enquanto existir uma indústria fóssil que controla tecnologicamente e politicamente as sociedades, que compra com os seus lucros o processo decisório, o fracasso climático, ultrapassarmos os 1.5ºC e os 2ºC, é uma certeza.

Este ano a COP, cimeira do clima, realiza-se numa estância turística de luxo dentro de uma das ditaduras mais sangrentas do mundo, a do General Sisi, no Egito. O já descredibilizado processo institucional das COPs foi-se esconder do mundo num local onde sociedade civil, internacional e principalmente local, não podem entrar. Milhares de presos políticos egípcios não podem ser escondidos pelo greenwashing internacional à COP-27.

É desta maneira que se garante o fracasso climático, o enterro definitivo das metas climáticas de 1.5ºC. As políticas climáticas atuais, com a aposta em mais gás e carvão perante a crise do custo de vida, têm um espelho perfeito aqui.

Não nos resignaremos ao fracasso climático! Convocamos uma Quinzena de Ações que começa no dia 7 de Novembro e uma marcha no dia 12 de Novembro, para exigir políticas climáticas compatíveis com a realidade climática.

Juntas e juntos podemos pressionar por ações para que a mudança aconteça.

salvaroclima.pt 

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

A POESIA COMUNICA, COMUNICA ATÉ INTENSAMENTE... - RUY BELO


 
 
A 27 de Fevereiro de 2023 completava 90 anos de idade  
 
No actual contexto social, económico-financeiro e cultural damos a palavra a Ruy Belo, transcrevendo a nota introdutória do seu livro, País Possível.
 
 
NOTA DO AUTOR
 
 
Este livro, que aparentemente poderia não passar de uma antologia visto que o integram um poema inédito e poemas extraídos dos meus últimos livros publicados, tem realmente uma unidade e é afinal um livro novo. E não o é apenas por eu publicar pela primeira vez na íntegra composições anteriormente truncadas por razões várias ou por eliminar ou emendar versos, por voltar a tentar suprimir o mais possível a pontuação, por resolver de vez «a guerra maiúsculas-minúsculas» a favor do lado mais fraco. 

Este livro é um livro novo porque um livro de poesia é, afinal, um lugar de convívio, um local onde os poemas reagem uns contra os outros, se criticam mutuamente, se transformam uns nos outros. É um livro novo, em suma, porque a ele, como a nenhum outro livro meu, preside indubitavelmente uma unidade temática: a do mal-estar de um homem que, ao longo da vida, tem pagado caro o preço por haver nascido em Portugal; a problemática de uma consciência que sofre as contradições próprias da sociedade em que vive e de um homem que tem atrás de si vários passados e vive várias vidas simultaneamente e que intensamente se autodestrói; que se vai suicidando lentamente porque essa sociedade o destrói e assassina e o censura e a censura se instala na sua própria consciência.
 
Unidade essa devida ao facto de estes poemas serem uma reflexão sobre o próprio poeta e a realidade que o rodeia, de serem uma forma de intervenção, de compromisso, de luta por um mundo melhor (não nos grita Mário Sacramento, no final da sua admirável Carta-Testamento: «Façam o mundo melhor, ouviram?») sem, por outro lado, o poeta pactuar com a demagogia, com o oportunismo que afinal representa não ver primordialmente na arte criação de beleza, construção de objectos tanto quanto possível belos em si mesmos, embora de difícil acesso porque a arte é difícil e precisa que, através da educação, da divulgação, da interpretação, quem a receba possa assim e só assim ter acesso a ela e assim se sentir vivo, vertical e assim actuar, intervir.
 
A poesia não é em si mesma, creio eu, uma forma de comunicação, como tão-pouco o são a pintura, a música, o romance, o verdadeiro e único romance, o romance que consegue que passe por ele a linha evolutiva da literatura. A poesia comunica, comunica até intensamente desde que se faça o leitor chegar até ela, esse leitor saído talvez de um povo que hoje, em Portugal, no estado de alienação ou alheamento em que se encontra, nem sequer se revê nas suas próprias criações, como, por exemplo, os romances do romanceiro tradicional. O povo português nem sequer se reconhece na sua música e prefere muitas vezes, penso eu, uma cançoneta de Tonicha transmitida pela rádio ou pela televisão, verdadeiras «técnicas de aviltamento», a uma composição qualquer das muitas que foram escrupulosamente recolhidas por Lopes Graça e Giacometti.

País Possível, portanto, creio eu. mais do que uma antologia, um livro novo: o livro possível, neste momento, a um homem que sente na poesia a sua mais profunda razão de vida mas se sente, simultaneamente, solidário com os outros homens, que talvez tenham dificuldade em compreendê-lo porque houve quem se empenhasse em que não compreendessem, nem pensassem, porque pensar é realmente um perigo, o maior dos perigos. Pensar, pensar como um homem que nasceu livre e quer morrer livre, leva depois inevitavelmente a actuar, a lutar contra qualquer forma de opressão.

Mas só agora reparo que digo melhor tudo isto nalgum destes poemas. Estou afinal a comentar-me, a plagiar-me a mim próprio e só isso eu não aceito em arte. Por isso ponho ponto final nesta note, onde espero ter sido mais claro do que na minha poesia em geral.

É que não acredito realmente na clareza como um propósito da arte, quanto mais não fosse porque eu, quando construo um poema, não procedo de maneira a obter resultados que seriam decerto mais fáceis de conseguir através de uma carta, de uma conversa telefónica, de um artigo, de um discurso. É evidente que espero, ao fim e ao cabo, vir a ser claro. Mas isso não é, num poema, problema meu. Em contrapartida, espero tê-lo sido nesta nota, redigida um pouco à maneira de quem conversa em família.


Madrid, 1 de Maio de 1973.
 

Em: Ruy Belo, Todos os Poemas, Círculo de Leitores, 2000, pp. 361 e 362.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

IDEÁRIO PARA A CRIAÇÃO - JORGE DE SENA

 


 

 

IDEÁRIO PARA A CRIAÇÃO

 

 

Quando, em ti próprio, ouvires algum combate

do sonho em luta com a sua própria alma

e o mundo te parecer maior que a vida

e a vida te parecer a velha estrada

onde só tu não perseguiste o sonho,

defende, de ambos, o que for vencido.

 

Quando, à tua beira, houver um perseguido

e o escárnio se abater sobre o que ele pensa

e o mundo inteiro o perseguir mentindo

uma mentira maior que a dessa ideia,

defende-a como tua antes que o mundo

esmague em si próprio a chama em que se ateia.

 

Quando, como hoje, os crimes forem tantos

que as prais sequem no desdém das ondas,

e o melhor homem for um criminoso

voltando ansioso ao local do crime,

e o sangue nem lhe suje a ansiedade

porque não há mais sangue que ciências loucas,

grita aos ventos da morte que os traíram -

e na terra se ouça que a verdade é falsa

e só eram verdade os que partiram.


Em: Jorge de Sena, Poemas Escolhidos, Círculo de Leitores, 1988, p. 46

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Anúncio de corte da produção de petróleo pela OPEP monta-se em cima da inflação de 10% que varre a Europa. Depois do fim dos Nordstrems por sabotagem, apenas uma certeza fica: não há energia que chegue para manter a normalidade no centro da Europa. A aposta em gás dos últimos anos enfiou o continente nos bolsos da indústria fóssil e dos países que a albergam, enquanto o clima colapsa frente aos nossos olhos.

A indústria fóssil conseguiu, ao longo das últimas décadas, fazer-se confundir absolutamente com o capitalismo global, através da cooptação tecnológica e de compra da política. Durante os últimos 50 anos, as petrolíferas fizeram em média 2,9 mil milhões de euros por dia. Por dia. Construíram um sistema social e tecnológico e um regime político completamente viciados em petróleo e gás. Cada produto, cada viagem, cada moeda que troca de mão ou transação financeira em bolsa, tudo ligado o máximo possível aos fluxos de petróleo, gás e carvão.

A crise climática produziu este verão situações extremas de seca, incêndios florestais e cheias históricas. Tudo isto continua: a seca que atravessa a China não tem paralelo na História, as inundações no Paquistão ocupam um terço do país e colocaram 33 milhões de pessoas sem teto. Em Portugal, avança a desertificação. Os piores cenários são ultrapassados muito antes do tempo. Mas a máquina do capitalismo fóssil não para. Acelera. Lucra como nunca.

Ainda antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, um petroestado que depende totalmente da manutenção da indústria fóssil para manter a sua elite capitalista, os preços do petróleo e do gás já estavam a subir. Para compensar todos os lucros que tinham escapado durante o Covid, a indústria decidiu que era altura de lucrar à grande, já que os conselhos de administração destas empresas criminosas acham estatutariamente que estes lucros lhes são sempre devidos.

Com a invasão da Ucrânia, o festim tornou-se obsceno. As ameaças de corte de gás por Putin faziam os mercados de futuros salivar e o preço subia, em simultâneo, por todo o lado. E assim, o primeiro semestre de 2022 foi provavelmente o mais rentável de sempre na história da indústria petrolífera. A Saudi Aramco, a maior petrolífera do mundo, fez 287 mil milhões de euros de lucro nos últimos doze meses, próximo do PIB da Finlândia. A Exxon Mobil fez 23,8 mil milhões de euros de lucro no segundo trimestre do ano, mais de 250% de crescimento em relação ao ano anterior. A GALP fez 420 milhões. As petrolíferas triplicaram os seus lucros no primeiro semestre deste ano, mais de 103 mil milhões de euros.

Quer saber de onde vem todo este lucro? Dos preços de tudo. A inflação com que nos bombardeiam todos os dias tem uma fonte inequívoca: a energia fóssil. A decisão livre por parte das petrolíferas acerca daquilo que produzem, e a influência disto nos preços é que provocou o caos em que estamos mergulhados. Como que para ilustrar ainda melhor a situação, perante a sabotagem dos NordStream 1 e 2, que faz aumentar ainda mais os preços do gás, a OPEP, a organização dos países produtores de petróleo e gás, decidiu cortar drasticamente a sua produção para aumentar os preços de novo.

Estas manobras são a origem da crise de preços que vivemos hoje. Na Alemanha e no centro da Europa, várias das principais fábricas da indústria pesada, ainda totalmente dependentes de gás, já estão a fechar ou fecharão em breve, pelo preço da energia e pela escassez da mesma. A inflação na República Checa está quase nos 20%, a energia está mais do dobro do preço de há um ano atrás e o gás custa três vezes mais. Na Holanda, a inflação está quase nos 15%, com energia e gás a custarem quase quatro vezes o que custavam há dois anos atrás.

A inflação ainda não parou de subir. Prognósticos favoráveis são magia contabilística e cenários irrealistas, que rejeitam a realidade. Os produtos vão ficar mais caros e a comida ainda mais, porque a pulsão especulativa também se encavalita na situação. E não vai parar com a austeridade encapotada de subir salários abaixo da inflação, que é a decisão de quase toda a Europa. A Alemanha já anunciou que vai atirar 200 mil milhões de euros à sua economia.

Temos um problema existencial e conjuntural que se chama a indústria fóssil. Em particular na Europa, a vertente mais clara desse crime chama-se gás “natural” e, perante a aberração económica de nos vermos na sua dependência e a aberração suicida que é continuar a mandar milhões de toneladas de metano e dióxido de carbono para a atmosfera pelo seu transporte e queima, a aposta dos governos capitalistas é a sua expansão.

Somos, há muito, liderados por loucos que obedecem a sociopatas.

As indústrias petrolíferas têm de cessar de existir. Poder-se-ia argumentar a favor da sua nacionalização, e em alguns contextos até se poderia justificar, mas apenas para garantir que uma transição para um sistema socialmente justo e compatível com os cortes que a Ciência Climática exigem – cortar 50% das emissões até 2030 – se fizessem de forma planeada e real.

As empresas fósseis são entidades criminosas, não apenas culpadas do crime de privação generalizada da populações para seu benefício, mas de exercerem uma atividade cujo resultado necessário é o colapso das civilizações humanas. É preciso travá-las.


Este artigo foi originalmente publicado em https://expresso.pt/opiniao/2022-10-17-Inflacao-e-crise-climatica-a-industria-fossil-esta-a-engolir-nos-vivos-240ba464 no dia 17 de Outubro de 2022

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

NÃO ÀS MINAS. SIM À VIDA.

 

Estamos solidários com a iniciativa levada a cabo pelos Amigos de la Tierra e Ecologistas en Acción, porque este modelo extrativista está a levar a humanidade para a catástrofe. Por isso, divulgamos, abaixo, o texto que nos foi enviado e o cartaz/programa com o que se vai realizar nos dias 18, 19 e 20, em Sevilha, contra a mineração e apresentação de alternativas e novos modos de nos relacionarmos com o planeta.


«Por ocasião da Exposição Mineira Internacional em Sevilha, que terá lugar nos dias 18, 19 e 20 de outubro, a sociedade civil agendou um Contra-Salão para mostrar a nossa rejeição deste desastroso modelo de extração com graves impactos sociais e ambientais.

Promover novamente a exploração mineira significa apoiar a devastação ecológica, omitir o direito dos povos a decidirem sobre os seus territórios e a manutenção da extração e utilização excessiva dos recursos naturais; um ataque aos ecossistemas e um acelerador da crise climática.

Este evento carece de lógica quando o caminho a seguir a nível global e local é proteger os nossos territórios e a sua população. É essencial repensar o nosso modelo de produção e consumo e avançar para a redução,
reutilização e reciclagem.

Não podemos falar em abrir novas minas enquanto continuamos a apostar num modelo consumista insustentável, e quando ainda não estabelecemos os canais para obter o máximo de potencial dos materiais que já temos. Precisamos de um sistema económico que tribute a vida e o bem comum e limite a produção e o consumo de recursos naturais.

Temos de agir e parar a extração de mineração! Junta-te ao Contra-Salão
mineiro!»

terça-feira, 20 de setembro de 2022

O Testamento de um burro aos seus inimigos

Os «Motes» são cantigas de mal-dizer que, durante séculos, os rapazes faziam às raparigas solteiras na aldeia de Covas de Barroso e, mais tarde, também as raparigas faziam aos rapazes durante o Carnaval. Eram críticas irreverentes e bem-observadas ao comportamento e carácter de uns e outros, com linguagem propositadamente satírica. Estes motes, no entanto, são uma expressão de profunda indignação. Estes são alguns excertos das «talhadas» dadas no enterro do burro, na manifestação contra as minas em Boticas, que encerrou o Acampamento em defesa das Covas do Barroso.

A Savannah é uma peste
que se instalou no Barroso
Ataca tudo o que mexe
desde o mais velho ao
mais novo

É bem pior do que a praga
ou febre que dá e passa
É como o bicho dos pinheiros
ou o míldio da batata

E a quem bater à porta
essa febre ou maldição
é rezar-lhe pela alma
e encomendar-lhe um caixão

Em tudo ela é igual
ou pior que a peste negra
que se pegava pelos ratos
esta pelos ratos da empresa

E desses há-os às dúzias
temo-los na empresa
aos trambolhões
Essa espécie de ratisse
não são ratos são leirões

Se vos atestam o depósito
ou dão jeito ao telhado
isso tem sempre um propósito
é presente envenenado

Há uma segunda intenção
De graça ninguém vos serve
Olhai que quem meren-
das come
sabeis bem, merendas deve

Estes que vós ali vedes [apontam
ao burro]
teso como um carapau
também lhes foi na cantiga
e hoje é o seu funeral

De que morreu não sei
mas tenho a firme certeza
ser obra de bolo-rei
oferecido pela empresa

Outros culpam o padeiro
mas sem provas não se pode
Que se enganou na farinha
E o matou de overdose

Tem sempre desculpa a morte
mas seja lá como for
desta tropa minha gente
quanto mais longe melhor

Quantos de vós acreditam
em histórias da carochinha
Que o futuro do Barroso
é em cada canto uma mina

Têm para vender essa banha
meia dúzia de lambe-cús
espalhados por todo o lado
estão ali dentro alguns [apon-
tam para a sede da Savannah]

E querem fazer passar
por parvos
um povo inteiro
Comprando aquilo que é nosso
Pagando com o nosso dinheiro

E mentem ao afirmar
que foram por nós aceites
como se fosse possível
misturar água e azeite

Prometem mundos e fundos
mas a mim quer-me parecer
que a esmola que mata o pobre
é melhor nunca aparecer

Vamos-lhes dar a talhada
com esta exigência do povo
Ide comer aos quintos
dos infernos
Bem longe do nosso Barroso

(...)

Barroso, diz Galamba
não é bem o que se supunha
a última vez que lá fui
vim de lá com os socos na unha
[expressão que significa fugir]

Para que foste cagar lérias
onde não foste chamado
Quiseste ir buscar lã
vieste de lá tosquiado

Quem quer ir dar eleições
como tu em terra estranha
foge com o rabo entre as pernas
e vem com uma carga de lenha

Mas como recordação
e a intenção é que conta
Levas o piroco do burro
põe-lhe um brinquinho
na ponta

O Costa é quem governa
mas tenho cá na ideia
que ele só faz o que manda
a Comunidade Europeia

Mandar na casa dos outros
isso é que era bonito
Se o Costa baixa as calças
O povo faz-lhe um manguito

Mas é bem mandado o António
que faz tudo sem resmungar
A única pergunta que faz
é onde falta assinar

Levas no olho do cú
Toma lá que te dou eu
agora já podes fazer favores
com aquilo que é teu

O presidente Marcelo
esse nem é boi nem vaca
A tudo ele diz que sim
faça o governo o que faça

É sempre tão falador
com opinião sobre tudo
Quando se fala de minas
não dá pio, fica mudo

Para ter postura diferente
levas a cabeça do burro
Acena-lhe com as orelhas
não digas amém a tudo

No Ministério do Ambiente
a corja anda calada
É de desconfiar minha gente
que vem foda ou canelada

E temos novo ministro
mas cuidado com o artista
Está sempre de pé atrás
o gajo é malabarista
 
Saiu um, entra outro igual
É sempre o mesmo retrato
É tudo a mesma ganga
farinha do mesmo saco
 
Vão levar os intestinos
É o que o Ministério quer
que os deles estão todos rotos
de tanta merda fazer
 
O Plano de resiliência
é uma medida bonita
O rico fica mais rico
e o pobre mais pobre fica
 
É sempre a mesma panelinha
os que mamam o dinheiro
São os que têm bons padrinhos
ou amigos no poleiro
 
Todos de olhos na bazuca
vem aí nota à fartura
parecem os porcos na pia
à espera da lavadura
 
Com apetite tamanho
qualquer coisa os satisfaz
levem os figos que deixou
o burro a cagar para trás
 
Diz-se independente a APA
mas não tem sido capaz
Tudo o que o governo diz
para fazer
a APA faz
 
estudos para inglês ver
o governo manda assinar
Relatórios para ceguinhos
e a APA é só carimbar

Para assinarem de cruz
pode ser que esteja errado
mas que foram fazer à escola
de que valeu terem estudado
 
O tempo que lá passaram
era mais aproveitado
atrás de um rebanho de cabras
tiravam mais resultado
 
Mas se fizéreis vista grossa
e são outros quem decide
a culpa cai sobre vós
deste povo que aqui vive
 
O burro dá-vos as patas
É um favor que vos faz
Dai-lhe um coice no focinho
Fazei-os afastar para trás
 
Os empregos disponíveis
para o povo da região
é trabalho de limpezas
vassoura, balde e esfregão
 
E trazem-nos nas palminhas
Enchem-nos de mordomias
Mas escorraçam-nos como cães
Ao não terem a serventia
 
Levais os olhos do burro
e um conselho vos é dado
Olhai por quem dos teus
se aparta
Pelos estranhos é escornado
 
O presidemte de Montalegre
tem um bigode bonito
tem parecenças com
um vassoiro
Desses de varrer os penicos 

Se for maior o bigode
o Orlando não é capaz
de varrer por mais que queira
a merda toda que faz

De manhã é contra as minhas
À tarde é a favor
E meia palavra basta
para bom entendedor

E diz para trás, diz para a frente
Se é pedra diz que é pau
Orlando muda de lentes
andas a ver muito mal

Levas os miolos do burro
e a ti vem-te a calhar bem
Ficas mais inteligente
e não fazes mal a ninguém
 
Nos jornais e televisões
pintam-nos como uns tolinhos
que vivem atrás dos torgos
somos uns atrasadinhos
 
Mas depois abrem os jornais
A falar de seca extrema
E sem querer dão-nos razão
Nesta luta que travamos
 
Os motes chegaram ao fim
e há uma lição a tirar
Para não acabarmos como
o burro
assim de papo para o ar
 
Antes de lhe dardes entrada
lembrai-vos bem da toupeira
trocou os olhos pelo rabo
e viveu cega a vida inteira

E não os julgueis inocentes
que sabem o que é que fazem
e o mal que iriam causar
caso as minas avançassem

Mas isto não lhes tira o sono
A ganância trá-los cegos
Se não os corrermos daqui
Fazem-nos a vida num inferno

E depois do mal estar feito
não adianta chorar
O burro morto cevada ao
rabo [provérbio]
como é costume falar

Fazendo da minha voz
a voz de todo o Barroso
as minas não passarão
e quem manda é  povo

Transcrito de: MAPA / JORNAL DE INFORMAÇÃO CRÍTICA / SETEMBRO-NOVEMBRO 2022

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Greve Climática 23 de Setembro: Fim ao Fóssil

Encontramo-nos à beira do colapso civilizacional.

Vemos os efeitos devastadores da crise climática diariamente. Os anos que vivemos são determinantes para lutar contra esta crise, ficando abaixo dos 1.5ºC de aquecimento global. O custo da inação é o fim da civilização como a conhecemos hoje e mesmo sabendo isto, o sistema atual leva-nos irresponsavelmente para o colapso, tendo apenas o lucro, e não a vida, como motor das suas decisões.

O pilar deste sistema é a indústria fóssil.

A única forma de impedir o aumento de temperatura e alcançar a neutralidade carbónica até 2030 é acabar com os fósseis. A única forma de salvaguardar o nosso futuro é através de uma transição energética justa urgentemente.

Temos barões do fóssil no governo português.

Nenhuma medida está a ser tomada para cortar emissões. Os governantes que deveriam estar a direcionar esta mudança lucram com a inação e destruição, começando pelo atual ministro da Economia e do Mar e Ex CEO da Partex Oil and Gas: António Costa e Silva, que abertamente incentivou as empresas a apresentarem novos projetos de exploração de gás.

Vamos destruir a economia fóssil e exigir o futuro a que temos direito!

No dia 23 de setembro sairemos às ruas para condenar a inação política e denunciar os projetos suicidas do governo. Não toleraremos novos projetos que aumentem emissões, nem em território nacional, nem em lado nenhum. Exigimos um plano de transição justa que nenhum governo, atual ou vindouro, possa revogar.

Partimos às 11h da Praça José Fontana, em frente ao Liceu Camões, e vamos marchar até ao ministério da economia, onde mostraremos que é possível destruir uma economia baseada nos combustíveis fosseis e construir um futuro livre de exploração.

Não vamos baixar os braços, vamos ocupar.

Desde 2019 que fazemos greves e aprendemos a nossa lição: precisamos de nos manifestar, mas temos de fazer mais do que faltar pontualmente às aulas e marchar. Não há tempo a perder, e com o escalamento visível da crise climática, escalamos também na nossa resposta. A partir de dia 7 de Novembro vamos ocupar as nossas escolas e universidades até que as nossas reivindicações pelo fim aos combustíveis fósseis até 2030 e pelo fim aos fósseis no governo sejam atendidas.

domingo, 11 de setembro de 2022

Portugal em Chamas - Como Resgatar as Florestas, João Camargo e Paulo Pimenta de Castro

Eucaliptos Crise Climática Abandono / Despovoamento FOGO

 

ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS

Portugal está no Mediterrâneo, um hotspot de alterações climáticas, o que significa que a crise climática aqui se manifesta com maior intensidade do que a média global. Um aumento de 1,5oC à escala global significa mais 3oC aqui. Estamos num zona que tenderá a arder ainda mais do que agora. No entanto, Portugal arde mais do que os outros países mediterrânicos. 

Mitos INCENDIÁRIOS 

Portugal está perfeitamente dentro da média dos outros países. Entre 20 e 30% dos incêndios no país são propositadamente iniciados, são fogos postos. Na Grécia os fogos postos estão entre 25 e 29%. Na Catalunha são 25%. Insistir no mito dos incendiários só serve para esconder o único factor que explica o facto de Portugal ser o país que mais arde na Europa e no Mediterrâneo: ter enormes manchas de floresta abandonada e composta principalmente por eucalipto, que se beneficia de incêndios. 

O MODELO DE NEGÓCIO DAS CELULOSES 

Portugal, apesar da sua área pequena, é um abastecedor gigante de papel, em particular para os países europeus. A The Navigator Company é a maior produtora de papel de impressão e de escrita da Europa e a sexta maior produtora do mundo. A Altri também é uma grande produtora. Apesar da sua área pequena, 10% do território nacional está dedicado a esta cultura de exportação, que empobrece solos, esgota águas e favorece incêndios, rumo à desertificação. Para que este modelo de negócio se tornasse rentável, foi necessária uma política pública que degradasse o valor dos terrenos e os tornasse tão pouco rentáveis que parecesse uma boa ideia simplesmente lá plantar eucaliptos (fornecidos pelas celuloses) e nove anos depois as celuloses ou seus empreiteiros simplesmente lá irem buscar as árvores. Os sucessivos governos, em particular a partir de metade dos anos 80 construíram esta legislação, que favoreceu um interior abandonado e perigoso, barato e mesmo à porta do Centro da Europa, poupando em transportes e em investimentos com os solos (as celuloses só possuem 110 mil hectares e arrendam mais 80 mil, mas usam a matéria-prima de uma área até 5 vezes maior do que essa. Portugal é um enorme estaleiro desta indústria e arca com todos os perigos e destruição da mesma. 

O MODELO DE NEGÓCIO DAS CELULOSES 

Entre as figuras políticas mais evidentes na construção deste estado de coisas estão: - Álvaro Barreto (Ministro da Indústria e Energia; Ministro da Agricultura; CEO da Portucel-Soporcel, Administrador da Portucel) - António Nogueira Leite (Diretor da Portucel-Soporcel; Secretário de Estado Finanças) - Daniel Bessa (Ministro da Economia; Administrador da Celbi) - Francisco Pinto Balsemão (Primeiro-Ministro, Administrador da Celbi durante 26 anos) - Joaquim Ferreira do Amaral (Ministro das Obras Pùblicas, do Comércio e Turismo, etc., Administrador da Semapa e Inapa) - Luís Todo-Bom (Secretário de Estado da Indústria e Energia, Administrador Caima, Presidente Conselho Fiscal Portucel-Soporcel). Neste momento, as celuloses estão também a aproveitar todos os fundos disponíveis para o combate às alterações climáticas para queimar madeira como energia "renovável". A Navigator Company produz cerca de 10% de toda a energia "renovável". Isto faz-se provocando desflorestação tanto em Portugal como noutros países, com importação de madeira para queimá-la, o que anularia qualquer ganho em termos de emissões. 

O MODELO DE NEGÓCIO DAS CELULOSES 

Perante uma pressão crescente sobre as celuloses, com os efeitos da crise climática a reduzirem o crescimento dos eucaliptos e com os incêndios por vezes a afectá-las diretamente, elas estão a procurar outros países onde plantar a sua matéria-prima, de forma a continuar o seu modelo de expoliação de solos e comunidades. O principal destino da The Navigator Company foi Moçambique, onde opera sob o nome Portucel Moçambique. Plantaram 350 mil hectares de eucalipto, expulsando comunidades, vedando o acesso a água e a caminhos, em Manica e na Zambézia. Em Portugal, as celuloses são neste momento o sector mais emissores de gases com efeito de estufa, desde o encerramento da central a carvão de Sines da EDP. Os complexos industriais de Setúbal, de Cacia e da Figueira da Foz da Navigator estão todos no TOP10 das estruturas industriais mais emissoras.

ENTÃO, PORQUE FAZEM ELES PROPAGANDA DO EUCALIPTAL COMO COMBATE ÀS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS? 

1) Porque não têm, nem nunca tiveram um pingo de vergonha na cara. 2) Porque muita gente não percebe as contas. Resumindo: as plantações florestais não retêm carbono no médio-prazo, que é o único que nos interessa. A mobilização de solos + máquinas + fertilizantes liberta uma enorme quantidade de carbono para a atmosfera. As plantações são cortadas num período curto e qualquer carbono retido é libertado nas fábricas das celuloses. 

ENTÃO, PORQUE FAZEM ELES PROPAGANDA DO EUCALIPTAL COMO COMBATE ÀS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS? 

Além disto, os ciclos de fogo cada vez mais curtos matam as florestas e bosques autóctones que retinham carbono há décadas ou séculos, libertando-o, expandindo nesse processo o eucaliptal e outras invasoras (háckeas, acácias, entre outras) que também proliferam no fogo e no abandono. 

DESTRUINDO MITOS - "AS PLANTAÇÕES DAS CELULOSES NÃO ARDEM" 

Ardem. Os 200 mil hectares das celuloses ardem frequentemente. No entanto... Eles gerem as suas próprias áreas, limpam-nas, podam árvores, retiram matos. Além disso, têm um corpo privado de bombeiros profissionais, a AFOCELCA, que está sempre a postos para alturas de incêndios. Mesmo na estrutura pública de incêndios, as celuloses têm prioridade na utilização dos meios de combate dos bombeiros, i.e., eles acorrem primeiro às áreas das celuloses e só depois a outras. 

DESTRUINDO MITOS - "AS CELULOSES SÓ USAM MADEIRA CERTIFICADA E DE TERRENOS QUE CUMPREM REGRAS, A CULPA DOS INCÊNDIOS É DOS PROPRIETÁRIOS QUE NÃO LIMPAM" 

O esquema de certificação, FSC (Forest Stewardship Council) é controlado diretamente pelas celuloses. Além disso, além dos eucaliptos dos 200 mil hectares que as celuloses possuem ou arrendam, recebem eucaliptos dos restantes 700 mil hectares, sejam certificados ou não. Os viveiros das celuloses produzem milhões de árvores todos os anos que são oferecidas aos proprietários. O risco dos incêndios foi externalizado para os pequenos proprietários e para a sociedade em geral e materializa-se sempre. 

DESTRUINDO MITOS - "AS FLORESTAS REGENERAM-SE E PODEMOS PLANTAR ENORMES ÁREAS" 

Os incêndios são uma antecâmara da desertificação e do despovoamento. Portugal está cada vez mais mais quente e seco, e o eucaliptal em expansão, em vez de contrariar os efeitos da crise climática, aceleram-nos, favorecendo mais incêndios, mais destruição de solos e menos água. A floresta que precisamos para combater as alterações climáticas tem de ser autóctone, pouco combustível e precisa de gente no território para geri-la e torná-la mais resiliente. As celuloses gastam uma fortuna em publicidade, greenwashing e controlo das áreas de conhecimento relacionadas com natureza e floresta. Estão profundamente enraízadas na academia, em particular no Instituto Superior de Agronomia, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e na Universidade de Aveiro. Têm ainda vários "institutos", centros e iniciativas dissimuladas. Patrocinam inúmeros eventos e vários órgãos de comunicação social - National Geographic, Expresso, etc... Máquinas de engano...

Em: "Portugal em Chamas - Como Resgatar as Florestas", João Camargo e Paulo Pimenta de Castro, Bertrand Editora, 2018. 

Bento de Jesus Caraça, um marxista em Setúbal


Bento de Jesus Caraça é uma das grandes referências intelectuais portuguesas do século XX. Deixou um relevante legado na defesa do conhecimento científico e sua divulgação. Bem como na defesa da paz e da justiça social.

Isto além de ter sido um expoente da resistência antifascista. Duas vezes preso político e proibido de exercer o seu ofício de professor, sob a ditadura de Salazar.

Um dos meios que ele privilegiou para difundir o seu pensamento foi a conferência pública com um cariz didáctico, dirigida sobretudo a audiências populares e operárias.

Era esse o tipo de conferência característico da Universidade Popular Portuguesa, fundada, em 1919, pelo professor António Ferreira de Macedo, com outros notáveis pedagogos portugueses da época como Adolfo Lima e Francisco Reis Santos.

Bento Caraça era muito próximo de Ferreira de Macedo. Ligou-se a este projecto desde o início. E assumiu mais tarde a sua liderança.

Pois uma das suas conferências, porventura mais importantes, foi proferida em Setúbal. Aconteceu no dia 22 de Março de 1931. E O Setubalense esteve lá. No dia seguinte, dava esta notícia:

“Na sede da Sociedade Promotora de Educação Popular, agremiação que à causa da instrução tem prestado relevantes serviços, e perante uma assistência regular, realizou ontem uma interessante conferência subordinada ao tema «As Universidades Populares e a Cultura», o sr. dr. Bento de Jesus Caraça, distinto professor do Instituto Superior de Sciencias Económicas e Financeiras.

O ilustre conferencista dissertou largamente sobre instrução, tendo o seu trabalho sido premiado com uma longa salva de palmas” [O Setubalense, 23/03/1931, p.4].

A nível local, esta conferência representou o relançamento da Universidade Popular em Setúbal, depois de já aqui ter sido criada uma secção local em 1924 (e outra no Barreiro em 1921).

Além disso, nesta conferência Bento Caraça clarifica e defende um modelo de trabalho cultural que viria a ser uma importante faceta da resistência antifascista. Num contexto em que não se podia falar abertamente de política, intelectuais democratas participaram em inúmeras iniciativas culturais em colectividades populares de norte a sul do país, semeando conhecimento e pensamento crítico.

Um terceiro aspecto desta conferência em Setúbal é que nela Bento Caraça assume explicitamente a referência teórica marxista. Fá-lo para expor o conceito de cultura que advoga, o qual “compreende o máximo desenvolvimento das capacidades intelectuais, artísticas e materiais encerradas no homem”.

Daqui aborda a desigualdade e a injustiça de classe social. Condena “a detenção da cultura como monopólio de uma elite” e denuncia que “a cultura tem sido e é o monopólio de um grupo – a classe burguesa – que, por virtude da organização social, torna inacessível a sua aquisição à massa geral da humanidade”.

Perante isto, a tarefa de uma Universidade Popular é contribuir para tornar a cultura acessível à classe trabalhadora.

Numa altura em que os antigos sindicatos livres ainda não tinham sido dissolvidos pela ditadura, Bento Caraça defende que “às organizações sindicais cabe um papel enorme nesse trabalho de libertação, promovendo intensamente a cultura dos seus membros”.

Uma nota final sobre a colectividade em que teve lugar esta conferência: a sociedade Promotora de Educação Popular de Setúbal tinha então 85 crianças, a frequentar as suas aulas diurnas, “funcionando, ainda, aulas nocturnas, para operários” [O Século, 18/01/1931, p.15].

Luís Carvalho - Investigador

Artigo originalmente publicado no O Setubalense a 08 de Setembro de 2022