sexta-feira, 11 de novembro de 2022

DISCURSO TARDIO À MEMÓRIA DE JOSÉ DIAS COELHO - EUGÉNIO DE ANDRADE

José Dias Coelho, pintor, foi assassinado pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), em plena via pública, com vários tiros pelas costas.

Catarina Eufémia, assalariada agrícola, foi assassinada pela GNR (Guarda Nacional Republicana) com um tiro à queima roupa, em plena planície alentejana, com um filho ao colo e outro no ventre.

Esquecer, é ser cúmplice e contribuir activamente para a ascensão das forças reaccionárias, ditatoriais que assolam o nosso futuro.


DISCURSO TARDIO

À MEMÓRIA DE JOSÉ DIAS COELHO


Éramos jovens: falávamos do âmbar

ou dos minúsculos veios de sol espesso

onde começa o verão; e sabíamos

como a música sobe às torres do trigo.


Sem vocação para a morte, víamos passar os barcos,

desatando um a um os nós do silêncio.

Pegavas num fruto: eis o espaço ardente

do ventre, espaço denso, redondo, maduro,

 

dizias: espaço diurno onde o rumor

do sangue é rumor de ave - 

repara como voa, e pousa nos ombros

da Catarina que não param de matar.

 

Sem vocação para a morte, dizíamos. Também

ela, também ela a não tinha. Na planície

branca era uma fonte: em si trazia

um coração inclinado para a semente do fogo.

 

Morre-se de ter uns olhos de cristal,

morre-se de ter um corpo, quando subitamente

uma bala descobre a juventude

da nossa carne acesa até aos lábios.

 

Catarina, ou José - o que é um nome?

Que nome nos impede de morrer,

quando se beija a terra devagar

ou uma criança trazida pela brisa?

1972

 

Em: Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa [1940-1986], 3.ª edição aumentada, II Volume, Círculo de Leitores, 1987, p. 37.