José Dias Coelho, pintor, foi assassinado pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), em plena via pública, com vários tiros pelas costas.
Catarina Eufémia, assalariada agrícola, foi assassinada pela GNR (Guarda Nacional Republicana) com um tiro à queima roupa, em plena planície alentejana, com um filho ao colo e outro no ventre.
Esquecer, é ser cúmplice e contribuir activamente para a ascensão das forças reaccionárias, ditatoriais que assolam o nosso futuro.
DISCURSO TARDIO
À MEMÓRIA DE JOSÉ DIAS COELHO
Éramos jovens: falávamos do âmbar
ou dos minúsculos veios de sol espesso
onde começa o verão; e sabíamos
como a música sobe às torres do trigo.
Sem vocação para a morte, víamos passar os barcos,
desatando um a um os nós do silêncio.
Pegavas num fruto: eis o espaço ardente
do ventre, espaço denso, redondo, maduro,
dizias: espaço diurno onde o rumor
do sangue é rumor de ave -
repara como voa, e pousa nos ombros
da Catarina que não param de matar.
Sem vocação para a morte, dizíamos. Também
ela, também ela a não tinha. Na planície
branca era uma fonte: em si trazia
um coração inclinado para a semente do fogo.
Morre-se de ter uns olhos de cristal,
morre-se de ter um corpo, quando subitamente
uma bala descobre a juventude
da nossa carne acesa até aos lábios.
Catarina, ou José - o que é um nome?
Que nome nos impede de morrer,
quando se beija a terra devagar
ou uma criança trazida pela brisa?
1972
Em: Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa [1940-1986], 3.ª edição aumentada, II Volume, Círculo de Leitores, 1987, p. 37.