sábado, 20 de maio de 2023

Tejo que levas as águas - Manuel da Fonseca

Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar
 
Lava-a de crimes espantos
De roubos fomes terror
Lava a cidade de quantos
Do ódio fingem amor
 
Lava bancos e empresas
Dos comedores de dinheiro
Que dos salários de tristeza
Arrecadam lucro inteiro
 
Lava palácios vivendas
Casebres bairros de lata
Leva negócios e rendas
Que a uns farta a outros mata
 
Leva nas águas as grades
De aço e silêncio forjadas
Deixa soltar-se a verdade
Das bocas amordaçadas
 
Lava avenidas de vícios
Vielas de amores venais
Lava albergues e hospícios
Cadeias e hospitais
 
Afoga empenhos favores
Vãs glórias ocas palmas
Leva o poder de uns senhores
Que compram corpos e almas

Das camas de amor comprado
Desata abraços de lodo
Rostos corpos destroçados
Lava-os com sal e iodo

Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar.

Manuel da Fonseca, Obra Poética, Círculo de Leitores, 2005, pp. 142/3.