segunda-feira, 15 de março de 2021

 

Tirar o pulso ao capitalismo fóssil para travar o colapso – João Camargo

As organizações portuguesas do Acordo de Glasgow construíram um quadro que nos permite ver como a crise climática é gerada no nosso próprio país. A partir do inventário desagregado de emissões de gases com efeito estufa em Portugal, que pode ser consultado aqui, é possível começar um processo mais amplo de discussão sobre a crise climática e a sua solução. Hoje temos uma visão mais clara de como a economia é viciada em combustíveis fósseis, quais as principais infraestruturas emissoras, os responsáveis e as loucuras futuras que é necessário travar.

Compilando dados de fontes oficiais, Greve Climática Estudantil e Climáximo criaram o inventário que explicita com elevado nível de detalhe a maneira como se distribuem as emissões em Portugal. Esta é uma ferramenta que está a ser desenvolvida em mais de 40 países que têm representantes no Acordo de Glasgow.

Em termos da informação contida no inventário, é relevante que, com os encerramentos da centrais a carvão do Pego e de Sines e da refinaria de Matosinhos, hoje a principal infraestrutura emissora em Portugal é a refinaria de Sines da Galp (que, com o encerramento de Matosinhos, ainda aumentou mais as suas emissões). O sector dos transportes torna-se o principal sector emissor, com um peso desmesurado da componente rodoviária (carros, camiões, autocarros). As indústrias das celuloses e das cimenteiras ganham muitas posições nos lugares cimeiros, enquanto no sector elétrico hoje são as centrais a gás as principais emissoras. Em termos de empresas, as principais emissoras em Portugal são a hoje The Navigator Company, Galp, EDP, TAP, CIMPOR, Europac, Turbogás, Secil, Repsol e Carnes Landeiro. Mais de 250 infraestruturas estão identificadas no inventário.

O inventário abrange uma área que também fica sempre fora dos inventários oficiais: os projectos futuros que acarretam aumento de emissões de gases com efeito de estufa. Em Portugal, o caso mais clamoroso é a ideia negacionista de construção de um novo aeroporto para Lisboa, mas outros projectos como a construção de um gasoduto, expansões dos portos de Sines, Lisboa, novas ligações rodoviárias e projectos de mineração de grande extensão estão identificados.

A resolução da crise climática não é uma abstração e a sua resolução também não o é. Apesar do crescente engano promovido quer por governos, que por empresas, nomeadamente a inflação dos sumidouros de carbono, a falácia dos offsets de carbono e o grande chapéu da “neutralidade carbónica”, a questão é que a única maneira de resolver a crise climática é cortando emissões. A impotência ou rejeição por parte das instituições, governo e empresas em resolver a crise climática ficou (ainda mais) clara no recente relatório das Nações Unidas: as propostas dos governos deveriam perfazer um corte de emissões globais de 50% até 2030 em relação às emissões de 2010, mas actualmente ficam-se por um corte de 1%. Aceitar isto como uma inevitabilidade não é realpolitik nem é pragmatismo, é pulsão suicida. O colapso climático não é “destruição de valor” ou “perdas económicas”, é a destruição da base material que permite a existência de civilização.

Para resolver a crise climática é importante falar da maneira menos abstracta possível, abandonar balanços relativos e falar das fontes das emissões. Nesse aspecto, este documento tira o pulso ao capitalismo fóssil português, e a todas as grandes fontes de emissões que garantem a persistência e o agravar da crise. Este raio-X do nosso país permite conhecer a realidade sobre a qual é preciso actuar com a máxima urgência, com a urgência de travar, em articulação com outros movimentos por todo o mundo, o colapso. Só desagregando a monstruosidade do capitalismo fóssil nas suas diferentes componentes é que podemos perceber como é que se trava o colapso climático.

Este quadro do capitalismo fóssil em Portugal é o pontapé de partida para um processo mais alargado de construção de um plano social para realizar o necessário corte de ¾ das emissões nacionais nos próximos nove anos, para construir uma agenda pela Justiça Climática. É esse o passo seguinte do Acordo de Glasgow em Portugal, e começa agora.


Artigo originalmente publicado no Expresso a dia 15 de Março de 2021.