"Entretanto, em todos os sectores do formigueiro citadino, os
homens e as mulheres da idade atómica saltam os muros de cimento e, pelo menos por uns dias ou por umas horas, rompem com o mundo, em perseguição
do verdadeiro objectivo da existência: a felicidade. Ou fogem
bruscamente e para sempre. Procuram uma saída. (...). Como o poeta Luís Moniz Pereira:
Urge encontrar a saída.
Urge encontrar a saída da máquina.
Urge encontrar a saída da máquina do quotidiano.
Pelo menos aos domingos.
Pelo menos quando estou contigo.
E depositar em ti, ou nos domingos,
o excesso de mim que ficou do quotidiano.
Repito: urge encontrar a saída.
Urge encontrar a saída da máquina do quotidiano.
(...)
O Homo sapien foi criado e criou um meio em que a natureza a todo o momento o comprometia. Hoje, é possível ignorar a natureza, desconhecer os céus, dispensar as árvores, é possível viver em climas artificiais, substituir o sol e as ervas e impor ainda à fisiologia que acelere a sua adaptação às ambiências para que não foi preparada. Mas pergunta-se que homem surgirá dessa ruptura com o meio natural: demudado para um viver simultaneamente fácil e crispado, que debilita por tão pouco exigir das capacidades de iniciativa, de resistência e de luta, e que dilapida pelas suas coacções sucessivas, perante as quais cada gesto obedece a uma necessidade dirigida, desviado da simetria entre a acção e a contemplação - o homem continuará a ser o mesmo, com o vigor físico e o dinamismo mental que se foram apurando em múltiplas eras de disputa com a natureza?
Estas dúvidas de muitos poderão vir a ser influenciadas, porém, tanto no sentido de uma rectificação como de um agravamento, pelos feitos da ciência. Que é a Terra, num universo cósmico onde já estamos presentes e onde queremos interferir? E que é um homem perante essa dimensão? Toda a problemática terá de ser profundamente revista.
(...)
- as pessoas irão reagir (...), e ao reagirem exprimem a revolta contra o quotidiano desumanizado, contra o vazio de um mundo superpovoado, contra uma sociedade saturada que quebrou o contacto com a vida e com os homens; irão reagir, irão protestar, porque se sentem em causa: perturbadas e dominadas. Esse protesto é salutar: as pessoas reagem porque ainda não se afundaram totalmente na engrenagem alienante. Ainda esbracejam por uma saída."
Em: Diálogo em Setembro, Fernando Namora, Círculo de Leitores, 1997, pp. 552/3/4/5.