domingo, 6 de outubro de 2024

MUITO LONGA MEMÓRIA PARA O POETA RUY BELO - Fernando Grade

Morreu no passado dia 8 de Junho o poeta Fernando Grade.

Fernando Grade nasceu no Estoril a 1 de Abril de 1943 e morreu no dia 8 de Junho de 2024 (1943-2024).

Teve uma intensa actividade cultural como poeta, pintor, escritor, cronista, ficcionista, jornalista, dinamizador cultural, escultor, letrista, crítico de arte, conferencista e actor de acção, entre muitas outras actividades ligadas às artes, à cultura. 

Esta é a nossa singela homenagem a dois poetas que, não estando entre nós, perduram na obra que nos legaram, enquanto houver quem os leia.

 

MUITO LONGA MEMÓRIA PARA O POETA RUY BELO


                                                       «Nenhum cristão deve ser mercador»

                                                       (S. Jerónimo e Santo Agostinho)

 

P osso estar deitado ao comprido nesta cama

as unhas grossas, enormes, os dedos em concha

apontando os móveis da casa, e ter a janela aberta

de par em par escancarada para o bulício dos carros

para os beijos trocados na rua rente candeeiro

para as mulheres vestidas de preto negríssimo

que passam com carregos à cabeça;

poderei ter as horas todas para pensar, fumá-las, e

saúde muita, o cheiro quase infantil das godécias

os retratos de oblíquas viagens pela praia fora,

mas nenhum silêncio flor ou ave doida fará esquecer a tua morte 

                                                                                            [ longínqua

nos antípodas (não foi em Queluz?),

e regressas assim a estas paredes de musgo bom

donde os teus versos nunca saíram, o riso que

deixavas na água, os teus versos, o alto poema:

gaivota viajada por dentro de casa

e tão dada ao sossego, tão de cereja a boca que soltaste

sobre os rios, o mar saloio. E pó de pedra e ranço

nunca serás.

 

Chegas morto, porém, fuzilado na alma às páginas das gazetas

que pouco sabiam da tua pessoa ou sentiam. Tampouco foste do

                                                                                                 [ negócio

dos vates, brocados, chiadices, morreste quase anónimo

mas defendido é certo pelos quarenta primos que são os poetas

                                                                                                   [ daqui.

 

Quem apenas viveu a tua morte letra impressa

em jornais repletos de políticos e pandeiretas

deve ter encolhido os ombros e pensado

que - se tanto sobre ti diziam hoje - é porque dos mortos ninguém

                                                                                                   [ diz mal

e a morte não passa de mercadoria romântica.

Mas contigo foram outros e floridos os lenços de acenar.

estamos todos mais pobres e

varados por balas de terra nua junto ao coração.

Quem pegará na flauta ao chão descida?, 

quem tocará agora nas margens do grande rio Eufrates?

Como cigarra devastada pelas tranças

estás ainda virado para o pinhal - e cantas.

Quotidiana e de aldeias brancas a morte em que crias

católico assim também eu fora, antes do sonho noutro barco

embarcado, diverso trapézio ecuménico.

Aqui tenho as tuas falas feitas de brisa e al

no meio de outros mortos-vivos como tu

as praias explodem a Oeste.

E de novo regressas aos jornais a barba eternamente por fazer

e o espanto viajará em muitos olhos

por antes disso não te saberem o nome: de corridas a pé ou

a cavalo, bicicletas ou bólides, não te reconhecem o rosto

como trepador de Pirenéus, fadista de beco ou toureiro janota.

E por bastos anos serás sinaleiro da água

da ternura

homem ao centro descendo ao centro da terra

por muitos sítios. Talvez tenhas agora a alma desportiva

que sempre quiseste ter, oh adepto do grande campeão

José Maria Nicolau.

 

Renovados estão os poderes que possuías sobre o fogo

e à sombra da tua memória vão ser encenados outros crimes e

desastres

outras pombas desastradas outros dias de silêncio

mas jamais esqueceremos o vaso de gerânios que deixaste. 

Morreste? Ainda e sempre, hoje, pelo sítio do púbis.

Eternamente estarás quedo e mudo a ver passar o rio

o grande rio Eufrates que corre igualmente à minha porta.

 

E é por isso que a morte não são botas inchadas de sebo

e moscas ruins ou somente fardos de feno.

 

Se o Cesário Verde ainda fosse vivo, isto é

se fosse nosso agora - iria também ao teu enterro.

 

Estoril - 10 de Agosto de 1978