quinta-feira, 9 de março de 2023

A eterna questão da habitação

Manuel Raposo — 9 Março 2023

 

 

A boa memória do PREC

Bastou o Governo anunciar umas tímidas propostas de remedeio da desgraçada situação habitacional do país, para que a direita, num reflexo salazarista, viesse acusar António Costa de “comunista” e alcunhar as medidas como um atentado à sacrossanta propriedade privada. Os actores de tal histeria sabem bem que ninguém no governo é “comunista”, nem a propriedade privada está em risco. Tamanho coro de queixas exaltadas serve para gerar confusão e lançar mais uma acha na fogueira da luta partidária. Mas, sobretudo, serve para travar à partida qualquer tentativa de bulir com a liberdade dos proprietários fundiários e dos investidores financeiros de especularem à vontade com o parque habitacional e a construção.

Os maiores arrepios sentidos pelos proprietários prendem-se com a intenção do Governo de forçar o arrendamento das casas comprovadamente vazias e de limitar o negócio do alojamento local. A reacção violenta que se seguiu ao anúncio mostra bem como, ao mínimo confronto entre necessidade social e direito de propriedade, é este último que prevalece — o que, só por si, revela o carácter anti-social da propriedade fundiária e dos interesses financeiros que hoje a sustentam.

O álibi dos pequenos proprietários

Como sempre nestas ocasiões, é em nome do “pequeno proprietário” que as vozes se levantam. Mas quem mais vocifera não são os próprios, são sim os porta-vozes de interesses maiores: grandes proprietários e meios da finança. 

Foi o caso da ex-ministra das Finanças Manuela Ferreira Leite, que declarou as medidas como sendo “A última machadada na propriedade privada”, seguida ipsis verbis pela Associação dos Promotores e Investidores Imobiliários. Foi o caso também do ex-bastonário da Ordem dos Advogados e agora presidente da Associação Lisbonense de Proprietários Menezes Leitão que, diante de “Medidas muito gravosas para os proprietários”, os aconselhou a recorrer em massa para o Tribunal Constitucional.

Os pequenos proprietários são o álibi que surge sempre nestas ocasiões. Supostamente, o Estado rouba-lhes o ganha-pão de cada vez que toma medidas no sentido de responder, mesmo levemente, à crise da habitação. Mas os pequenos proprietários são, em geral, os que mais naturalmente mantêm as casas alugadas, pela razão simples de que precisam das rendas. Não são eles que têm o património e os meios para especular com as casas que possuem.

Uma realidade diferente

Este pretexto, que tem raízes na fábula do “pequeno aforrador” que compra uma casinha “para rendimento”, esconde outra realidade. 

Desde logo, muitas das casas de pequenos proprietários têm sido tomadas de renda por “gestores imobiliários” que as subalugam com grandes ganhos, nomeadamente em regime de alojamento local. Essas propriedades individuais saem assim do domínio pessoal do pequeno proprietário para entrarem na esfera do capital especulativo.

Por outro lado, muitos dos proprietários que dispõem de vasto património fazem uso das casas, não para arrendamento, mas para aluguer de curta duração, muito mais rendoso, seja em regime de alojamento local, seja em períodos do ano de maior procura, aproveitando o turismo interno e externo. 

A somar a isto, os detentores de capital que procuram evitar a desvalorização do dinheiro investem em casas (e na construção em geral), não propriamente para rendimento, mas como activos financeiros com perspectivas de valorização a prazo maior ou menor. E, neste caso, querem manter as casas livres de compromissos para as poderem vender na melhor oportunidade, sem o ónus de um inquilino com contrato.

A construção habitacional é hoje, portanto, em larguíssima medida, um veículo de especulação financeira em que capitais individuais, bancos e empresas de construção civil estão solidariamente empenhados. Não é a preocupação de gerar habitação que os move, mas sim a valorização do capital, investido num ciclo de multiplicação desejavelmente contínuo (urbanização-construção-venda-revenda-etc.) que se move à margem das necessidades sociais de alojamento.

Um velho problema

O clamor político que agora se levanta, e que transforma o assunto em “problema nacional”, resulta do facto de a carência de habitação (pela apregoada “falta” de casas, ou pelos preços exorbitantes) ter atingido nos anos mais recentes camadas sociais que, até há pouco tempo, não tinham esse problema de forma tão aguda. 

Falamos dos estratos médios e baixos da pequena burguesia, que se iam safando com emprego mais ou menos estável, salários ou negócios minimamente rendosos, aluguer ou compra de casa com recurso ao crédito. De modo mais evidente desde a crise de 2008-2009, estas condições favoráveis foram desaparecendo, empurrando parte destas camadas para condições de vida inferiores às que tinham.

O problema da carência de alojamento condigno, porém, é de sempre no que respeita às classes trabalhadoras proletárias. Enquanto foram estas as vítimas praticamente exclusivas, o assunto não teve honras de “problema nacional”. 

Apenas numa ocasião da nossa história recente a questão veio ao de cima, mas por outra via que não a da intervenção dos poderes públicos. Foi quando os despojados de tudo, que viviam em barracas esperando há gerações por casas prometidas e nunca dadas, ou nem sequer prometidas, resolveram, em 1974-75, passar à acção e ocupar as casas vazias que lhes estavam vedadas. Vale a pena, a propósito, fazer uma pequena recordação histórica.

A boa memória do PREC

O fascismo nunca se preocupou com a questão da habitação. Ao longo de décadas, as suas únicas iniciativas foram no sentido de promover, nas grandes cidades, os “bairros sociais”, destinados fundamentalmente a servidores do Estado e sectores equivalentes, a fim de os manter na órbita do regime. No final da década de 1960, com o afluxo de mão-de-obra à periferia das maiores zonas urbanas — e o aumento exponencial dos bairros de barracas — a ditadura promoveu um arremedo de fomento habitacional que só teve verdadeira expansão nos anos seguintes ao 25 de Abril de 74. 

A queda da ditadura abriu as comportas que continham o descontentamento popular, também no domínio da habitação. As ocupações de casas vagas realizadas por comissões de moradores, associações de bairro, activistas diversos mostraram que o Estado não detinha o monopólio da iniciativa para resolver o problema, e que era possível romper a inércia e os bloqueios dos poderes públicos. 

Em grande parte, foi sob o impulso deste “mau exemplo” vindo da base popular que a política habitacional dos primeiros governos democráticos teve de levar a cabo, por exemplo, as operações SAAL, que decorreram com ampla participação dos próprios moradores. E foi também sob o espectro da iniciativa popular — para a qual os direitos de propriedade não tinham primazia sobre a miséria — que a política habitacional daqueles governos deu alguns passos no sentido de uma resposta às necessidades sociais de uma vasta faixa populacional, fundamentalmente trabalhadores.

Foi sol de pouca dura. Em finais dos anos 1980, à sombra protectora do regime novembrista — que se tinha encarregado de pôr na ordem as organizações populares — aquela incipiente política de habitação social foi drasticamente travada, no caso pela mão de um governo PS. Com que propósito? Dar rédea solta às empresas de construção civil, à banca e aos especuladores; multiplicar os intervenientes no negócio, desde a administração central até ao poder autárquico; colocar os serviços do Estado ao dispor dos investidores capitalistas. Em suma: “libertar a iniciativa privada”.

É dessa “liberdade” que vemos hoje os frutos: fortunas fulgurantes feitas na especulação, corrupção em todos os níveis da administração do Estado, milhares de trabalhadores sem casa e sem meios para a reclamar.

Um fracasso anunciado

Há uma lenga-lenga oficial que tenta “explicar” a situação de hoje: falta de oferta de casas em relação à procura; se houvesse mais casas no mercado os alugueres baixavam, etc. Esta versão do assunto interessa em primeira mão ao negócio especulativo que está montado, porque sugere que a construção desenfreada deve prosseguir e até ser aumentada. 

Os factos, porém, desmentem esta argumentação. Ficam por explicar as 700 mil casas vagas, sem contar casas de férias e segundas habitações, que não estão no mercado de arrendamento. Ficam por explicar as casas de férias em zonas turísticas que permanecem vazias boa parte do ano. E sobretudo fica escondido o facto de haver milhares de casas que são subtraídas ao mercado de arrendamento porque são desviadas para os regimes muito mais rendosos do aluguer turístico, por natureza temporário. 

A realidade é que existe um tipo de procura (para continuar a usar um termo caro aos economistas) que marginaliza o cidadão ou a família comum. Uma procura gerada pelo capital — que chama a si a construção e lhe destina o uso, que adquire casas para fins especulativos, que provoca uma alta de preços a que os salários comuns não chegam — contra a qual os indivíduos e as famílias isoladamente nada podem. 

Em nome da liberdade de negócio, da iniciativa privada e do mercado livre, as necessidades sociais, abarcando milhões de pessoas, são simplesmente ignoradas. 

O dilema persiste. Ou a habitação é tida como negócio ou é encarada como necessidade social. A prevalência do negócio resulta sempre na realidade que, ontem como hoje, se pode observar. Nem este, nem outro governo saído do mesmo molde conseguem ou estão empenhados em enfrentar esta contradição de base. 

Nada de significativo será conseguido sem atacar os privilégios de que gozam o capital fundiário e a finança. É num equilibrismo entre interesses incompatíveis, tentado pela enésima vez, que radicam as meias medidas anunciadas pelo Governo, e por isso se pode adivinhar o seu fracasso.

Artigo originalmente publicado no Jornal Mudar de Vida a 09 de Março de 2023