sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

RUY BELO - Cidadão de longe e de ninguém - Maria Jorge Vilar de Figueiredo

                                        

 

«Passeou pelos espelhos dos dias / suas clandestinas alegrias / que mal se reflectiram desertaram»

 Ruy Belo - Aquele Grande Rio Eufrates               

    

 

 

Ruy Belo começou por ser, para mim, apenas um nome que, num longínquo dia de Primavera, alguém pronunciou num dos corredores da Faculdade de Letras de Lisboa. Corria o ano de 1962, nessa «pátria sem país por trás», eram cinzentos e tristes os dias das pessoas, e a Primavera de todos nós chegara com a violência daqueles que decretavam alegrias e tristezas, palavras e silêncios. De Ruy Belo só sabia que escrevia versos.

Não fui, portanto, amiga de Ruy Belo, nunca lhe li os versos sem ser em letra de forma, nunca lhe ouvi as gargalhadas de criança, nunca com ele comi castanhas assadas em fins de tarde de tourada, nunca senti o peso dessa enorme solidão que se vai aceitando na memória de um largo, de um jogo, da mansidão de um paul, da majestosa sombra de um plátano, de um risco de giz a desenhar a frescura das manhãs, nunca me falou de raparigas de rosto claro e rosado como as macãs do regresso da escola, nunca veio acordar-me a desoras para um copo de vinho ou uma conversa que ajudasse às madrugadas, nunca perdemos o olhar no mesmo Verão, no mesmo mar.

Também não sou sua conterrânea. Não houve torre de igreja a cobrir-me a infância, não li o jornal na mesma adega, nunca fui à «festa da azeitona», nunca vi na Primavera aquele rio que «rápido subia» e «os barcos [navegar] entre a vinha». Não conheci o ferrador que vinha de Almoster à quarta-feira, o barbeiro Marcelino, o Liovigildo, o Marcolino, a dona da farmácia, nem sei de noivos que iam casar-se de carroça. Nunca fui às «lavegadas / onde as mulheres mondavam as searas», nem vi ao fim da tarde aquele «sol-poente sobre si redondo / [...] / e prestes a cair no mar», ou senti que o vento trazia «a moinha da eira», ou me dediquei à «inspecção minuciosa de pauis, cômoros, marachas». Nunca ouvi o «búzio da azeitona [aspergindo] em leque o som inabalável / nos leves ondulados e restritos renques das mais longínquas oliveiras conhecidas», nem provei «esse peixe da infância que vem na enxurrada», nunca em dia de S. José fui dançar às Ómnias, não sei em que época decorre a feira da Piedade, nem houve pátio onde o meu olhar de adolescente medisse o tempo pelo alastrar da sombra na parede.

Quanto ao «Portugal futuro» que foi, para tantos de nós e durante tanto tempo, mais sonho que ambalava dias do que imagem real a ficar, um dia, «mais fixa do que nas fotografias», a nossa luta foi a mesma, primeiro na recusa de pertencer a essa «gente sonolenta» para quem «[era] possível consentir na vida / sem pelo menos lhe imprimir a marca do polegar», e na consciência de «uma dor chamada portugal», país que « fora de nós em nós»buscávamos. Depois, confirmada já a «hipótese da apoteose», quando as «vagas vinganças entrevistas» se foram esfumando na alegria de ermos finalmente um país, esse «paul recuperado», quando as janelas deixaram de ser «tão tristes como dom duarte», e Portugal deixou de ser «um país vencido / que só buscou no mar razão de ser», a nossa luta foi a mesma, mas nunca estivemos lado a lado, na mesma trincheira.

Não fui, portanto, amiga, conterrânea, ou companheira de luta de Ruy Belo.

Fui apenas sua contemporânea, simples questão de idade, devo tê-lo visto nalgum eléctrico onde esperava pelo fim da viagem, ou pelo fim do poema, devo ter-me cruzado com ele à saída do metro, nalgum cinema, nalguma cervejaria, por aí. E nunca soube que o vira, que me cruzara com ele, que estivéramos por uns instantes nos mesmos espaços, escondidos cada um de nós pela capa (in)cómoda do anónimo que somos sempre para quem nos não conhece.

Também nunca andei pelas livrarias à procura dos seus livros, nem vasculhei páginas de jornais e revistas à cata de referências que me permitissem situá-lo, analisá-lo, dissecá-lo nos seus versos.

Por tudo isto, só poderia começar a falar de Ruy Belo apoiando-me em indícios cronológicos ou referências à sua vida privada - que, segundo ele próprio, «é coisa que não gostaria de não ter mas que afinal tenho» -, se recorresse a informações biográficas que outrem foi recolhendo, decerto com objectivos muito legítimos e tidos por imprescindíveis para o que é costume considerar-se o conhecimento de alguém. Não o quis fazer. Limito-me a saber que nasceu, viveu - e viveu muito - e que, provavelmente, deve ter morrido na data em que a televisão noticiou a sua morte. Ou terá apenas adormecido, finalmente?

Não tendo sido amiga, conterrânea ou companheira de luta de Ruy Belo, e não tendo nunca ambicionado ser crítica literária, não pertenço ao número daqueles que o próprio poeta refere em Breve Programa para Uma Iniciação ao Canto: «Alguém se encarregará de institucionalizar o escritor, desde os amigos, os conterrâneos, os companheiros de luta, até aquelas pessoas ou coisas que abominou e combateu. Acabarão por lhe encontrar coerência, evolução harmoniosa, enquadramento numa tradição. Servir-se-ão dele, utilizá-lo-ão, homenageá-lo-ão. Sabem que assim o conseguirão calar, amordaçar, reduzir.»

Em: Antologia Poética RUY BELO Cidadão de longe e de ninguém, Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Círculo de Leitores, 1999, pp. 5 a 7. 

Nota: este pequeno trecho foi transcrito do Prefácio, escrito pela autora acima referida, à obra supracitada.