segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

EXPLICAÇÃO QUE O AUTOR HOUVE POR INDISPENSÁVEL ANTEPOR A ESTA SEGUNDA EDIÇÃO*

Há sensivelmente dez anos eu tinha sensivelmente menos dez anos do que hoje tenho. Existe muita gente que, por múltiplas razões - quase sempre coerência, quase nunca imobilismo, que sei eu? -, não muda em dez anos. Eu, para já, mudei e mudei muito, até porque num simples decénio pode caber, por exemplo, a Guerra de Tróia, com todas as suas peripécias, ou a frequência do curso de Direito por parte de João de Deus ou de outros não menos ilustres portugueses e, no meu caso pessoal, com a modéstia inerente não só a tudo o que, no fundo, se me refere mas também a um destino obviamente individual, muitos acontecimentos se verificaram. Sempre aceitei as coisas, quanto mais não fosse - e não é esse, afinal, o principal motivo - porque se me torna impossível modificá-lo, quando até as próprias coisas que, num dado momento, me acontecem, as aceito com portuguesa paciência, desde que não envolvam, nalguma medida, a minha responsabilidade como homem enquadrado num certo contexto social.

A muito poucas pessoas que não eu deve - assim o espero - importar a minha vida particular, coisa que não gostaria de ter mas afinal tenho, como quem veste um pijama para a travessia da noite - oh! estas minhas incorrigíveis alusões culturais - ou lava os dentes, pelo menos, ao começar o dia. No entanto, a minha suprema ambição - o meu ideal inatingível até porque ideal, mas sempre presente como limite - longe de ser a figura de César ou mesmo a de Shakespeare (que, aliás, nos legou uma figura incomparável do ditador romano) - é a de um simples mineral, com a sua impassibilidade e a sua adesão à terra, a que acabarei por voltar não só por condição como por desejo profundamente, longamente sentido e só satisfeito no dia em que a minha voz passar a ser a voz da terra, mais importante, no fundo, do que todas as palavras que me houver sido dado proferir à sua superfície, ao longo da minha vida mais ou menos curta mas ao fim e ao cabo sempre curta, se encarada na perspectiva do destino do homem como espécie e da vida deste planeta como seu ambiente de sempre e para sempre.

Decerto haverá quem não me perdoe eu ter mudado, ou porque ficou no cais donde parti ou porque sempre esteve no cais onde pressinto que acabarei por chegar, termo de uma escala que julgo explicável e justificável mas que não predeterminei, até porque nunca predeterminei coisa alguma na minha vida, embora possa haver escrevinhadores que pensem o contrário num país onde, noutras circunstâncias, teriam sido talvez jornalistas, mas onde sem dúvida o deixarão de ser no dia em que essas circunstâncias se modificarem, porque afinal de contas dessas circunstâncias dependiam e só elas lhes permitiram exibir o que, à primeira vista, podia parecer inconformismo mas, no fundo, não passava de conformismo, conivência, integração, porque sempre os extremos se tocam (o que até explica que dois antigos seminaristas, em dois países geográfica e ideologicamente distantes, houvessem chegado a satisfazer e a saciar, à custa da grande maioria de homens que só vivem uma vez, a sua insaciável sede de poder).

A minha solidariedade de base com um livro que passei a abominar mal o reli em letra impressa manifesta-se até no facto de consentir na sua reedição, embora sobre mim não tenham deixado de exercer uma certa pressão quer a Casa Editora a que mais devo (alguma outra afinal me explorou e continua a explorar, o que , ao fim e ao cabo, mais não é do que, com pretensa benevolência, consente em publicar autores nacionais, autores jovens ou marginais, livros de poesia, etc), quer um seu representante qualificado, meu velho amigo do tempo dos bancos da Faculdade de Direito de Lisboa, companheiro de tomadas de posição em que se nos foram anos de vida e, como se tudo isso não fosse bastante, sonhador que como eu nasceu com a fatalidade de investir o seu capital de nuvens (viva o José Gomes Ferreira!) numa arte tão pouco significativa no nosso tempo como a poesia.

No entanto, afinal como manifestação da mudança a que comecei por aludir, acabei por introduzir nesta edição modificações muito mais profundas e numerosas do que alguma vez pensara introduzir. Não renego um passado conhecido de muitos, susceptível de ser conhecido por quem o quiser conhecer. Apesar disso sofri alguma coisa, numa sociedade e num país onde se sofre muito. No termo de dez anos de uma aventura mística que terminou há dez anos, eu saí para a rua e para o dia-a-dia com este punhado de poemas, com estas palavras que me consentiram escrever nos breves intervalos de um silêncio durante muitos anos imposto, a pretexto de que, de contrário, a minha alma correria perigo, como se eu tivesse uma coisa como alma, como se correr perigo não fosse talvez a minha mais profunda razão de vida.

Trata-se obviamente de um livro cheio de defeitos, o menor dos quais não deixará de ser por vezes a falta de autonomia da linguagem, como muito bem viu, se bem me lembro (nem imagina como me custou não ter podido assistir à sua última lição, meu caro, meu sempre jovem Vitorino Nemésio), António Ramos Rosa, num artigo publicado na Seara Nova, artigo esse em que eu, entre outros poetas criticados, tive a honra de emparceirar com Daniel Filipe, escritor irregular mas irrequieto, morto na cidade que cantou, morto para mim, mediante a simples leitura de uma lacónica notícia de jornal, em Trás-os-Montes, talvez a província portuguesa da gente mais pobre e mais explorada mas mais generosa, por onde na altura eu passava à descoberta dos homens, de companheiros de viagem (um deles condenado à morte), da terra e de mim próprio.

Quem tiver tempo e paciência para isso, não deixará talvez de notar que, já à data da composição destes poemas, atravessava uma crise profunda quem aliás sempre viveu em crise, apesar de, nos domínios fundamentais, ter porventura por conta própria arriscado mais que muitos homens de sistema, de ideologia, de doutrina, de instituição. Tema limite dessa crise talvez seja o da solidão no meio da cidade: o do homem que não dispõe de «ombro para o seu ombro», que tem «o destino da onda anónima morta na praia» (por que diabo hei-de ser eu mais imortal que essa onda entrevista no Outono no mar de Cascais?), que «vai só», que «não tem ninguém».

A solidão será porventura um problema burguês. Mas, numa sociedade onde todos os intelectuais mais ou menos o são, ela será talvez, numa perspectiva realista, não tanto o reflexo como a denúncia dessa mesma sociedade, responsável responsabilizada por consciências que, nos casos mais significativos, não terão escrito Os Lusíadas mas escreveram a Mensagem, não terão morrido a 10 de Junho de 1580, muito a tempo portanto de se poder utilizar o dia da sua morte como «Dia da Raça», mas morreram a 30 de Novembro de 1935, que poderá perfeitamente vir a ser o «Dia da Civilização Ocidental».

Como também viu António Ramos Rosa, até hoje autor de única antologia verdadeiramente representativa da mais moderna poesia portuguesa - e note-se que acabo de receber a terceira edição de uma outra, que consegue ser cada vez pior de edição para edição, embora eu nela vá conseguindo uma representação cada vez maior a ponto de recear vir a absorver, num prazo mais ou menos longo, mais ou menos curto, todas as suas páginas -, a insatisfação expressa na minha poesia sempre foi «mais de raízes ontológicas do que religiosas». E, embora eu não tenha querido levar as alterações por mim agora introduzidas até ao ponto de obnubilar o clima onde se moveu e continua sem remédio a mover-se a organização verbal deste livro, embora eu tenha conservado significantes, sintagmas que traduzem significados como por exemplo os de pecado individual, de mal e tantos outros que hoje não têm o condão de me afectar na mínima medida que seja, esta colectânea, estou certo, fundamentalmente fiel à primeira edição, terá sido e continuará a ser suficiente para, de certa maneira, me permitir a integração naquela geração que, em Portugal - e para glosar Jorge de Sena - perdeu o jogo do catolicismo e, talvez como nenhuma outra, proveniente de qualquer outro sector ideológico, aliás incondicionalmente merecedor do meu maior respeito, haja contribuído tanto para a luta tendente à emancipação do povo português, não só pela sua actividade como pela constante e inexorável capacidade de reflexão e de revisão de métodos.

Fundamentalmente, as modificações a que nesta edição procedi relativamente à primeira (a que não chamo princeps até porque algum erudito a poderia porventura confundir, neste ano de comemoração de Os Lusíadas, com essoutra obra onde, apesar da incomensurável superioridade de engenho, talvez conseguisse descobrir, após porfiadas pesquisas, um espírito de cruzada de certa maneira idêntico) cifram-se na supressão de maiúsculas e na redução da pontuação àquele mínimo que ao mesmo tempo permitia o máximo de ambiguidade e de possibilidades de leitura para o receptor o que, se não significa uma concessão para com a poesia concreta, talvez ao fim e ao cabo implique uma integração não só no conjunto da minha poesia como na verdadeira poesia de vanguarda portuguesa, actualmente representada pelos textos escrupulosamente coligidos por Casimiro de Brito e por Gastão Cruz, e onde afinal há muitas moradas, tal como no reino dos céus. Mesmo a grafia do lexema »deus», com minúsculas, decerto mais consentânea com a minha actual posição ideológica, mais não significa, digamos, que a recente tomada de posição (só que de sinal contrário, devido aos diferentes ventos que sopram, não da Espanha ou da Sibéria, mas simplesmente da história) de Soljenitsine na URSS ou o desejo de que palavra alguma levante a cabeça no maio da frase, por mais carregada de sagrado que a história no-la tenha feito chegar.

A substituição da epígrafe inicial do livro por uma diferente, de que aliás já dispunha ao tempo da primeira edição, enquadra-se noutra ordem de ideias: afinal a de que poesia é, ao fim e ao cabo, uma aventura de linguagem, por muito que os significantes possam significar. A arte pode não ir muito longe mas, de qualquer maneira, sempre oferecerá maior resistência ao tempo do que as ideologias, expressas sem irmos mais longe no credo da Santa Madre Igreja ou no hino da General Motors.

De livro para livro, de poema para poema, talvez mesmo de verso para verso, sempre procurei assegurar ao eventual leitor - não menciono o eventual ouvinte porque não tenho poemas gravados, nunca escrevi letras para baladas nem concorri nem tenciono concorrer (está portanto descansada, Helena) a qualquer festival da canção - aquela capacidade de surpresa que Valéry, poeta que talvez não preze mas intelectual que, a vários títulos, admiro, considera características de arte moderna Se não fui tão longe como outros poetas, difícil será decerto encontrar quem, como eu, haja com tamanha veemência repudiado a instituição sem, por outro lado, cair ou ficar nos simples jogos verbais, que nem os mais medíocres gongoristas ousaram trazer a lume, até porque não havia jornais, não havia publicidade, não se vivia numa sociedade de consumo.

Todo este livro foi escrito num clima a que não só já não tenho acesso hoje em dia como espero não o voltar a ter. E a solidariedade fundamental com o passado, condição do presente para mim, não integrado em qualquer revolução cultural e portanto capaz de compreender que a incomensurável complexidade de um Shakespeare não cabe nem mesmo se esgota no conceito de escritor burguês, nem sequer implica saudade em quem não só não pertence à filosofia portuguesa como nem sequer tem mais de português que haver nascido no país mais ocidental da Europa.

Não se deve, não se pode pedir ou exigir ao autor de um livro, por mais filólogo que seja, que examine o seu rebento ou o seu dejecto numa perspectiva estrutural ou paracientífica ou que ceda mesmo à tentação de ser sistemático, o que, pelo menos, talvez o levasse a traduzir-se na própria língua ou a praticar uma literatura segunda, para mais quando se tem a vaga suspeita de que se não é Dante ou S. João da Cruz.

É claro, até para mim, que de inocente pouco tenho pelo menos como poeta, que, ao longo de todos estes poemas, certas palavras afloram com maior frequência, o que sem mais poderá permitir a qualquer desempregado ou reformado ou funcionário público - nos tempos que correm não se pode esperar por um erudito, um estudioso ou um simples interessado, aos quais os mortos já dão trabalho bastante, especialmente se estão verdadeiramente mortos - proceder a estudos que, embora possivelmente de muito diversa índole, necessariamente terão de comum a circunstância de conseguirem ser mais loucos do que a própria poesia. Citamos, mais ou menos ao acaso e sem a menor preocupação de ordem: morte, deus, folhas, homem, árvore, estações, primavera, palavras, chuva, cidade, manhã, dia, crianças, infância, coração, pássaros, mar Poesia metafísica a deste livro? Decerto. Mas também - e não faltou quem o visse e o dissesse e me fizesse tomar consciência disso - poesia do quotidiano, onde de certa maneira sobressai um real que sucessivamente chega até nós, dessa forma humilde e comezinha que convém à realidade

Livro, por outro lado, cheio de influências. A única coisa que jamais perdoei a um autor foi tê-lo lido, tê-lo até talvez estudado e não haver deixado a menor, a mais indirecta marca em tudo aquilo que escrevi. Bíblia, missais, Eliot, que importa tudo isso? Ao próprio Saint-Exupéry, onde colhi a epígrafe, pouco decerto devo em comparação com o que ele me deve, dívida principalmente contraída ao longo dos dois anos de vida que sacrifiquei à tradução de Citadelle quando, impedido de escrever coisas minhas, escrevi em português a obra de um autor estrangeiro, imolando-lhe assim as experiências e os achados de vida e de linguagem que se me iam proporcionando.

Talvez seja possível detectar, no conjunto da obra poética que até hoje dei a lume, uma certa evolução técnica, um conhecimento cada vez maior do ofício à medida que fui escrevendo e publicando os livros. Mas esse aperfeiçoamento,além de ser mais aparente do que real, de forma alguma é significativo. Se, por exemplo, só no seu terceiro livro o soneto surgiu, foi porque não conseguiu resistir por mais tempo à irresistível sedução dessa forma quem, durante nada menos que uns longos quinze anos, a praticara com o carácter oculto e obstinado de um vício. Sensivelmente o mesmo se poderia dizer das aliterações, das assonâncias, do apoio constante do decassílabo, da utilização, exploração e dinamitação de toda a espécie de rimas, que conheço melhor, muito melhor do que a aldeia onde nasci ou a Vila Ápia Antiga, ambas ruminadamente trilhadas caminho por caminho, pedra por pedra.

Não me venha quem quer que seja com a história da inspiração, quando mais não seja porque a própria poesia se aprende. Mas a perfeição técnica sem rebuço exibida pode afinal dissimular não tanto uma maior ou menor falta de chama como o desconhecimento de um princípio no entanto elementar: o de que só quem sabe fazer as coisas as pode saber deixar de fazer. Independentemente do valor deste livro mesmo só no restrito cômputo da minha produção poética, não vim na verdade adquirindo uma perfeição técnica cada vez maior de livro para livro. Talvez até tenha perdido uma certa ciência do abandono, porventura até fácil de comprovar nalgumas correcções nesta edição introduzidas, por mais pensadas e medidas que tenham sido.

Embora neste momento longe de muitos papéis e livros meus, ia jurar que nenhum manuscrito subsiste de qualquer poema incluído nesta colectânea porque, coerente com o princípio de que só o produto acabado interessa, devo ter rasgado tudo o resto. Limitei-me a anotar, num exemplar de cabeceira - sem maior valor aliás que qualquer outro objecto ao alcance da mão de quem dorme ou descansa, maxime do «vaso doméstico» (a expressão, como está bem de ver, tão eufemística é que consegue exceder em mau gosto o objecto a que se refere) -, as datas, os locais e alguns outros elementos minimamente relacionados com a elaboração dos textos. Mas um só poema é toda a vida de um homem e tenho por manobra de diversão revelar a outrem uma coisa não menos íntima do que a mais íntima peça de roupa. Limito-me a citar um exemplo:

O «Poema de carnaval», constante deste livro, devia incluir um epígrafe que nem a primeira edição incluída, mas se encontra, escrita à mão, no referido exemplar de uso pessoal: «Num segundo entreviu a sua solidão medonha, fundamental, a solidão dos filhos de Deus.» Como toda a gente sabe (isto é, como pouca gente sabe), trata-se de uma frase extraída de La joie, de Bernanos, autor aliás que, embora ou porque convictamente católico, também escreveu um livro como Les grands cimetières sous la lune.

Mas para quê, pergunto eu, fornecer a essoutro autor que afinal é o leitor ou o crítico um elemento que só poderá servir para desnortear? Efectivamente, de duas uma: ou o poema em questão sugere a solidão fundamental de um homem. Para quê explicar então o que porventura não alcançou realização artística, o que na melhor das hipóteses nem a terá talvez mesmo desencadeado? Além de que a arte fica e o comentário petrifica. O poema é o que era há dez anos e, por muito que tenha envelhecido seja para quem for - decerto para ninguém terá envelhecido tanto como para mim -, que pode significar, aos olhos de um homem realmente do nosso tempo, a atribuição de uma sua filiação a um deus que, por mais divino que seja, não pode ser tanto seu pai como o homem ou a terra?

Para um poeta que, quanto à concepção do poema, perfilha a doutrina designadamente de Horácio e de Sá de Miranda, dois eternos autores de vanguarda, para um poeta que portanto só publica textos que, por haver longamente limado, tem por definitivos, não pode deixar de ser mau sinal ver-se na obrigação de, num caso ou noutro, proceder a alterações. Mas talvez lhe possa servir de consolação a ideia de que a perfeição é coisa de mortos.

Agora reparo que me propunha fornecer uma simples explicação e talvez tenha falado de mais. Apesar disso espero que neste livro, mesmo de estreia, a minha poesia seja de alguma maneira essa poesia silenciosa a que Gastão Cruz, grande poeta e grande conhecedor de poesia, embora meu amigo e portanto suspeito, aludia em depoimento se não estou em erro inserto num número recente de Crítica, jornal que, não sei bem como, me veio ter às mãos aqui a Madrid, uma das cidades do mundo mais distantes de Lisboa.

Madrid, 16 de Fevereiro de 1972

*Ruy Belo refere-se à 2.ª edição, de 1972, de Aquele  Grande Rio Eufrates (N.E.- Nota do Editor).

Em: RUY BELO - TODOS OE POEMAS, Círculo de Leitores, 2000,  pp. 15 a 21.