terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Lützerath: sabotagem e radicalismo verde – Diogo Silva

Tinha chovido a potes nos últimos dias e a polícia foi convocada para trazer toda a força do Estado contra as últimas pessoas resistentes. O cenário parecia de guerra: lama e polícia por todo o lado; casas ocupadas em terra e nas árvores, num ato de resistência final; e, a apenas umas dezenas de metros, um precipício sobre a mina de carvão com dragas enormes que transformam com a sua passagem qualquer paisagem rural num campo uniforme e preto digno de filmes de ficção científica. Lützerath pode vir a não ser mais do que uma memória. As casas serão demolidas, o entulho mandado para outro lado, todo o solo terraplanado, e aquelas belas máquinas do tamanho de prédios poderão então escavar a memória ainda mais fundo para chegar à matéria orgânica multi-milenar decomposta e ali arquivada debaixo do solo: o carvão.

O Governo federal tem Verdes, o Governo estatal tem Verdes, as palavras são verdes e até a destruição foi pintada de verde. Lützerath será destruída para que outras aldeias não o sejam, num acordo celebrado com a empresa RWE (agora proprietária do solo da aldeia), por “permitir” manter a meta de não haver mais exploração de carvão na Alemanha a partir de 2030 e reduzir a dependência energética da Rússia.

Este cenário de celebração Verde assume um radicalismo que não vê alternativas, que sabota o seu próprio discurso e as nossas vidas. Podemos ter independência energética sem ter dependência fóssil, nem a dependência nos interesses anti-democráticos dos 1% de ricos subsídio-dependentes que lideram economias inteiras a partir do seu luxo (des)confortável, à custa da injustiça gritante do nosso custo de vida a aumentar cada vez mais. Como se vê pelo investimento na guerra, basta querer e o dinheiro aparece.

Na Alemanha, como em Portugal, Governos que muito falam de ação climática estão radicalmente presos a ideias que sabotam qualquer justiça climática. Só podemos contar com eles para lutar contra nós: veja-se Lützerath, e veja-se a detenção e acusação recente de ativistas pacíficas nas Ocupas pelo Fim ao Fóssil.

Na Alemanha, como em Portugal, este movimento só vai ser bem-sucedido se além de saber que não nos vão salvar, estiver unido na sua diversidade tática e a inspirar quem ainda nos vê a juntar-se a nós. Em Lützerath, mais de 35.000 pessoas manifestaram-se de no local, outros milhares se juntaram pela Alemanha fora, a solidariedade internacional fez-se ouvir, e o bloqueio no terreno permitiu que uma aldeia, que facilmente teria sido despejada se não houvesse resistência ilegal a uma lei legal e injusta, resistisse durante mais de duas semanas contra o avanço de uma polícia em força máxima, e a anos de intimidação prévia.

Sem a concordância de base na necessidade de defender Lützerath e a coordenação do movimento na diversidade de táticas, não teria havido a resistência prolongada que trouxe visibilidade ao confronto desigual e reforçou um movimento que tem estado mais separado do que coordenado.

Temos até 2030 para cortar 50% das emissões globais. Ao dia de hoje, elas continuam a aumentar, e as nossas hipóteses a diminuir a cada hora. Temos cada vez menos tempo para tornar inevitável o que agora ainda parece impossível e só na mobilização da sociedade podemos depositar a nossa esperança. Por isso é que o movimento em Portugal se vai reunir em fevereiro em Coimbra, num Encontro Nacional por Justiça Climática.

Possa Lützerath inspirar-nos a passar da fraqueza da ação temporária à força da coordenação permanente no bloqueio de qualquer avanço radical, mesmo que pintado de verde, e construção de um futuro em que a economia esteja sempre ao serviço da vida, e a desigualdade atroz que vivemos hoje seja relegada para os livros de História de amanhã.


Artigo originalmente publicado no Público a 04 de Fevereiro de 2023