terça-feira, 18 de maio de 2021

VAMOS PARAR O ACORDO UE-MERCOSUL

 

 


O Acordo UE-MERCOSUL

 

O tratado de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia é um acordo de livre comércio assinado em 2019 mas ainda não ratificado por nenhuma das partes. Vinte anos de negociações precederam a assinatura do acordo, que envolve a União Europeia e o Mercosul, blocos cuja população totaliza 780 milhões de pessoas. O conteúdo do tratado só agora foi, parcialmente, divulgado.

Em linhas gerais, é comum resumir o acordo com o slogan “carros por comida”. A expectativa é que a União Europeia aumente significativamente as suas exportações de automóveis e outros bens industriais, enquanto que, por outro lado, os países do Mercosul aumentem significativamente as suas exportações de alimentos, minerais e outros bens do sector primário.

Este acordo tem impactos ambientais, sociais, económicos e humanos extremamente perversos. As principais razões pelas quais este acordo deve ser rejeitado, são:

1- Um acordo que vai devastar as florestas tropicais e o património natural sul-americano

Não é conhecida nenhuma organização ambientalista que se tenha pronunciado em favor do acordo UE-Mercosul, pelo contrário, praticamente todas se pronunciaram expressamente contra. Em Portugal o GEOTA, a Liga para a Protecção da Natureza, a Quercus e a ZERO, entre muitas outras, já declararam que o acordo UE-Mercosul é um perigo para o Ambiente. Na Europa, tanto as organizações Friends of the Earth, como a Greenpeace, ou o European Environmental Bureau, entre outras, têm denunciado este acordo como uma das maiores ameaças para a Natureza e o Planeta. No Brasil, o Instituto Socioambiental e o Observatório Climático estão a mobilizar-se para o combate a este acordo, entre muitas outras associações e colectivos neste país e noutros países sul-americanos.

O acordo UE-Mercosul irá resultar num aumento da importação de produtos ligados à desflorestação, tais como a carne (63% da área desflorestada da Amazónia é utilizada para alimentação de gado), o etanol produzido a partir da cana de açúcar e a soja. Por esta razão, o acordo deverá resultar numa perda da biodiversidade galopante em todos os biomas da América do Sul, um aumento do ritmo de destruição da Floresta Amazónica e do Cerrado; na expansão das monoculturas intensivas e da pecuária intensiva, à custa da destruição de ecossistemas naturais; bem como a utilização não controlada de pesticidas.

Desde a tomada de posse de Jair Bolsonaro como Presidente, o ritmo da desflorestação disparou (algumas estimativas apontam para uma quadruplicação do ritmo). A legislação e controlos destinados a limitar o impacto das actividades económicas sobre as florestas foram desmantelados. A iminência da ratificação do acordo UE-Mercosul está associada também a um aumento deste ritmo de devastação, na medida em que os agentes económicos antevêem um alargamento dos mercados através dos quais podem escoar os produtos resultantes destas actividades.

Embora o acordo tenha todo um capítulo dedicado às questões ambientais, o mesmo não coloca limites claros e não prevê qualquer tipo de sanção em caso de infracção.

2- Um acordo que vai agravar as ameaças climáticas

A oposição das organizações ambientalistas ao acordo UE-Mercosul (que, em Portugal, inclui o GEOTA, a Liga para a Protecção da Natureza, a Quercus e a ZERO, entre muitas outras) também resulta do aumento do volume de emissões de CO2 ou outros gases de efeito de estufa que este acordo irá provocar. No entanto, as estimativas relativas ao impacto do acordo UE-Mercosul no volume de emissões anuais variam drasticamente.

Os valores mais baixos encontram-se – o que não admira -, no estudo de impacto encomendado pela Comissão Europeia, que apresenta valores entre 0,03% e 0,05% para o aumento de emissões na UE. Estes valores podem parecer quase residuais (note-se que, de acordo com o mesmo relatório, o impacto do acordo no PIB não é superior), mas surgem num contexto em que são necessários esforços tremendos para cumprir a meta de 2ºC do acordo de Paris e em que muita devastação ambiental poderia ser evitada se a meta de 1,5º C fosse cumprida. Acrescidamente, é de  referir que o estudo em causa apresenta aumentos maiores para outros países envolvidos no acordo: 0,16% para o Brasil e 0,51% para a Argentina no que diz respeito ao cenário com menos emissões. Além disso, o próprio estudo alerta para o facto de não contabilizar os impactos de outros gases de efeito de estufa além do CO2; nem os impactos da desflorestação, ou do uso de pesticidas e outras actividades críticas. Essa contabilização, de acordo com o estudo, será apresentada num relatório futuro.

Já outros estudos apresentam valores muito superiores. Uma estimativa centrada nos impactos do acordo na área agrícola apresenta um aumento das emissões anuais no valor de 9 milhões de toneladas. Trata-se de um volume de emissões anuais superior ao de uma cidade como Lisboa, e próximo do de cidades como Bruxelas ou Belo Horizonte.

O acordo UE-Mercosul resultará num aumento de emissões por via do aumento do volume de bens transportados (em particular bens agrícolas com uma pior relação “valor-volume”), por via da desflorestação e por alterações no uso dos terrenos, além do impacto que a redução das taxas aduaneiras sobre os combustíveis fósseis tem no que toca à diminuição de incentivos para a eficiência energética. Outros sectores específicos, como a aquacultura intensiva e a produção pecuária (que se tornará mais intensiva), também irão contribuir de forma significativa para este aumento.

3- Um acordo que estimula atentados aos Direitos Humanos

A líder indígena e activista brasileira Sonia Guajajara, numa conferência de imprensa (no âmbito da digressão “Sangue Indígena, Nenhuma gota a mais”, que passou por 12 países e 18 cidades europeias), afirmou que os produtos brasileiros que chegam à Europa vêm “regados com sangue indígena”. Sonia Guajajara apelou para a não ratificação do acordo comercial com o Mercosul:

«Estamos a tentar mostrar que os produtos [brasileiros] que a população está a consumir vêm regados de sangue indígena, seja a carne, o couro, o chocolate ou a soja”, disse Sonia Guajajara, lembrando que “tudo vem das áreas de conflito” com as comunidades indígenas, que “estão a ser desmatadas, onde há exploração ilegal de minério e trabalho escravo”.»

Sendo verdade que o número de mortos indígenas tem disparado em resultado de várias decisões políticas (e do discurso público) por parte do governo de Bolsonaro, também é verdade que muitas destas decisões se prendem com a vontade de aceder às riquezas naturais existentes nos territórios onde vivem os povos indígenas, como o próprio já declarou publicamente. É público que o processo de expropriação das terras indígenas e a violência que tem caracterizado as relações com estes povos estão associados a projectos de mineração ou outras formas de extracção de recursos do território. Se tivermos em conta que o acordo UE-Mercosul vai aumentar os mercados para estes produtos e facilitar o investimento europeu nestas indústrias extractivas, não há como negar que o acordo não só vai incentivar estas violações dos Direitos Humanos, como acentuar a cumplicidade europeia com os mesmos. É também esta a leitura das associações Aliança pela Amazónia, Coletivo Alvito, Colombianos por la Paz e Fórum Indígena.

Estas não são as únicas violações de Direitos Humanos associadas ao acordo UE-Mercosul. Um relatório da Human Rights Watch de 2019 denuncia que muitos residentes rurais no Brasil são expostos à pulverização de pesticidas nas suas casas, estabelecimentos escolares e locais de trabalho. O documento também relata o receio de denunciar estes envenenamentos devido à cultura de impunidade sob Bolsonaro. O Comité de Direitos Humanos da ONU criticou o Paraguai por não controlar o uso de pesticidas nas suas plantações de soja, causando graves problemas de saúde e danos ambientais. Acontece que o acordo UE-Mercosul vai estimular significativamente o consumo de pesticidas (o Brasil é o segundo país do mundo que mais os usa, sendo que Bolsonaro afrouxou signitivamente as restrições relativas ao uso de pesticidas).

4- Um processo de negociação dúbio e pouco transparente

Este acordo entre a União Europeia e o bloco Mercosul representa um perfeito exemplo da forma opaca e sem escrutínio como os governos negoceiam acordos de comércio, sem auscultar nem informar as populações e a sociedade civil.

Após cerca de 20 anos de negociações, o Acordo foi assinado em 2019 sem que o seu texto tenha sido inteiramente disponibilizado para o público. Mesmo a parte que foi tornada pública, só foi publicada em Julho de 2019. Antes disso, o único conteúdo conhecido deveu-se a uma publicação da Greenpeace em 2017, resultante de uma fuga de informação.

Algumas das organizações sindicais mais relevantes como a CCSCS e a ETUC estiveram integradas em algumas rondas de negociação, mas abandonaram-nas, alegando que a sua voz era sistematicamente ignorada, ao contrário do que acontecia com os lobistas empresariais. Isto aconteceu não apenas em prejuízo dos sindicatos, mas também em prejuízo das pequenas e médias empresas (nomeadamente, em relação ao sector têxtil e ao sector das peças para automóveis). As outras organizações da sociedade civil (associações ambientalistas, de defesa do consumidor, de defesa da saúde pública, etc.) só não foram ignoradas desta forma, porque nem sequer foram convidadas a estarem presentes.

Deve acrescentar-se que as negociações não foram apoiadas em nenhum estudo de impacto. De facto, o estudo de impacto encomendado pela Comissão Europeia só foi disponibilizado três meses depois do fecho das negociações. No entanto, o estudo apenas tem em conta o acordo na sua versão de  Setembro de 2017, ignorando as alterações ocorridas entretanto. Além disso, o estudo não tem em conta a extrema desregulamentação que se seguiu à eleição de Jair Bolsonaro e presume a existência e implementação de políticas eficazes com o propósito de mitigar a desflorestação e os impactos ambientais do agronegócio, quando, não só o acordo não inclui nenhum mecanismo para assegurar tais políticas, como a actuação do actual governo brasileiro não esconde o seu desprezo por estes objectivos. Estas falhas são tão graves que um grupo de organizações europeias, com trabalho desenvolvido na área do ambiente e dos direitos humanos (Federação Internacional de Direitos Humanos,  ClientEarth, Fern, Veblen Institute e La Fondation Nicolas Hulot pour la Nature et l’Homme) abriram um processo para suspender o acordo precisamente por esta razão.

Deve acrescentar-se que os governos dos países do Mercosul não conduziram nenhum estudo de impacto disponível ao público nos últimos 15 anos.

5- Um acordo que vai acentuar assimetrias e vulnerabilidades

O acordo UE-Mercosul pode ser resumido no slogan “carros por comida”, já que a expectativa da União Europeia é aumentar as suas exportações no sector industrial, onde é mais competitiva, e a do Mercosul é aumentar as suas exportações no sector primário. Em certa medida, o acordo vai promover o acentuar de relações económicas assimétricas, que perpetuam a dependência da América do Sul em relação ao sector primário.

Este processo de acentuar as assimetrias já pode ser observado como consequência de acordos de comércio entre a União Europeia e o Peru ou a Colômbia. Foi prometida uma diversificação como consequência destes acordos, mas, ao invés, verificou-se uma intensificação da extracção de recursos naturais e uma maior dependência económica destes sectores, acompanhada de uma destruição do tecido industrial e produtivo. A acompanhar este processo houve também uma concentração de capital em menos mãos (frequentemente investidores estrangeiros) no sector das exportações. Em paralelo, intensificou-se o ritmo de destruição florestal e de extracção mineral.

Nos países do Mercosul, os sectores da produção de peças automóveis, maquinaria, indústria química, têxteis e calçado estão em risco. Um estudo conduzido em Dezembro de 2017 pelo Observatório de Emprego, Produção e Comércio Estrangeiro (ODEP) e pela Universidade Metropolitana (UMET) da Argentina estimou que neste país um total de 186 mil empregos estão em risco, em resultado do acordo UE-Mercosul, devido às exportações europeias. Acresce a isto que o acordo pode facilitar a “triangulação” de bens (principalmente têxteis) da Índia ou China para a América do Sul, aumentando os lucros de multinacionais como a Zara ou a H&M e conduzindo a uma destruição de emprego acrescida na América do Sul.

Para a União Europeia, não se prevêem más notícias para o sector industrial. No entanto, o sector agrícola europeu será fortemente prejudicado. Esta circunstância pode ser preocupante na medida em que coloca os países da União Europeia numa situação de maior vulnerabilidade. A pandemia provocada pelo Coronavirus mostrou que as redes de comércio podem enfrentar fortes disrupções a qualquer momento – mesmo colocando de parte um cenário de guerra -, e uma maior dependência das importações agrícolas pode resultar em catástrofes humanas tremendas. Efectivamente, falou-se em reconsiderar a política comercial europeia no sentido de aumentar a autonomia e resiliência, em resposta às lições aprendidas com a pandemia, mas este acordo vem precisamente no sentido oposto.  Além disso, os agricultores europeus, que se vêem confrontados com uma legislação ambiental cada vez mais exigente, têm de concorrer com uma dimensão de agro-negócio e com práticas absolutamente à margem dessa exigência, o que poderá levar muitos deles à falência.

6- Um acordo que vai reduzir padrões de saúde e de defesa do consumidor

A harmonização regulatória prevista no acordo UE-Mercosul também inclui medidas sanitárias e fitossanitárias, que, no caso da UE, passarão a sofrer maior pressão no sentido do seu afrouxamento.

Por outro lado, segundo o acordo, o controlo do cumprimento das normas sanitárias e fitossanitárias estabelecidas cabe ao país exportador. Este deverá preparar uma lista de “estabelecimentos aprovados” que serão autorizados a controlar os produtos de origem animal e vegetal a ser exportados. Eles serão certificados por uma autoridade competente do país exportador, que supostamente garante que os produtores não violam os requerimentos sanitários do país importador. O país importador tem o direito de levar a cabo auditorias e verificações aos mecanismos de controlo oficiais do país exportador, mas terá de anunciar tais controlos com 60 dias de antecedência, o que abre a porta a toda a espécie de fraude. Inaceitavelmente, o acordo prevê um aumento dos volumes transaccionados, mas uma redução dos mecanismos de controlo.

A vulnerabilidade do sistema de certificação previsto neste acordo tornou-se clara no recente escândalo associado à carne brasileira.

Deve referir-se que os actuais controlos já são claramente insuficientes. A Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos, no seu mais recente relatório, declarou que 7,6% das amostras recolhidas excedem o nível máximo de pesticidas permitido na União Europeia. Se nos lembrarmos que o acordo praticamente põe de lado o “Princípio da Precaução” (que só consta do capítulo sobre desenvolvimento sustentável, o qual não inclui qualquer mecanismo para garantir a sua aplicação), favorecendo ao invés a abordagem mais laxista da Organização Mundial do Comércio, torna-se bem clara a fragilidade e inconsequência dos escassos mecanismos de controlo propostos.

Obviamente, o enfraquecimento do “Princípio da Precaução” também vai ter repercussões negativas na defesa dos direitos dos consumidores.

7- Um acordo que vai prejudicar as populações em benefício das empresas multinacionais

Os capítulos sobre Serviços e Propriedade Intelectual são manifestamente  fortes vitórias das grandes multinacionais sobre os interesses das populações. Por exemplo, em resultado do artigo 44º do acordo, os estados não podem estabelecer qualquer tipo de taxa aduaneira relativa a fluxos de dados transfronteiriços ou transacções no âmbito do comércio electrónico. No entanto, impostos internos são permitidos, o que efectivamente significa que a tributação pode incidir sobre os consumidores, mas não sobre as empresas transnacionais. Sabendo que o comércio electrónico representa uma fatia crescente da economia mundial, que é dominada por um número cada vez menor de empresas multinacionais, este contexto vai reforçar a actual tendência de aumento do poder das multinacionais e do seu peso na economia mundial.

No actual panorama internacional, vários estados têm exigido uma alteração da moratória sobre tributação de transmissões electrónicas transfronteiriças, em linha com objectivos de desenvolvimento. Este acordo tornará difícil ou impossível aos estados preservar o seu espaço de manobra para implementar políticas públicas no âmbito do comércio digital de forma soberana, perdendo-se assim mais uma oportunidade de tornar mais justas as relações sociais e as regras económicas globais.

No geral, o acordo proíbe o uso de políticas públicas para regular o investimento, os serviços, o comércio electrónico ou o movimento de capitais. Relativamente a este último ponto, o acordo UE-Mercosul acaba por retirar espaço de actuação aos bancos centrais de uma forma que pode tornar mais provável o surgimento de crises financeiras, ou mais severos os seus impactos. Isto é particularmente grave no caso da Argentina, um país que tem sofrido este tipo de crises com grande frequência, sendo que um adequado controlo dos fluxos de capital poderia ter ajudado a evitar ou a atenuar estas “paragens súbitas” da economia.

8- Um acordo que vai prejudicar sindicatos e trabalhadores

De acordo com um estudo encomendado pelo governo dos Países Baixos, o acordo UE-Mercosul vai afectar negativamente os salários em 19 dos 23 sectores afectados nos países da União Europeia.
Por outro lado, em resultado das políticas de Bolsonaro, o Brasil encontra-se actualmente na lista apresentada nas Conferências Internacionais do Trabalho de 2018 e 2019 dos estados que têm violado da forma mais grave as convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A OIT acusa o Brasil de violar as convenções 98 e 154, o que constitui um ataque aos Sindicatos e Trabalhadores em todo o mundo. Acrescidamente, o Brasil é um dos países do mundo inteiro onde mais líderes sindicais são assassinados, o que tem ocorrido com a complacência ou encorajamento do governo de Jair Bolsonaro. Ratificar um acordo comercial que envolva o Brasil neste contexto é recompensar estas opções políticas.
Por estas e outras razões, a Coordenadoria de Centrais Sindicais do Cone Sul (um organismo de coordenação e articulação regional que reúne as principais centrais sindicais da Argentina, Chile, Brasil, Paraguai e Uruguai) e a Confederação Europeia dos Sindicatos (que representa, além de 10 federações sectoriais, 90 organizações sindicais de 39 países europeus – incluindo a CGTP e a UGT em Portugal) fizeram uma declaração conjunta contra a ratificação do acordo UE-Mercosul.

9- Um acordo que vai conduzir a um enorme aumento do sofrimento animal

O acordo UE-Mercosul ignora completamente o sofrimento animal. Assim, ele conduzirá a um aumento dos métodos intensivos de criação de gado, por ter custos mais reduzidos. Efectivamente, um acordo deste tipo torna uma legislação menos exigente no que concerne ao bem-estar animal numa vantagem competitiva mais forte, propiciando a deslocalização  da produção pecuária precisamente para os países onde a legislação for menos robusta a este respeito. Este fenómeno, além de conduzir directamente a um aumento significativo do sofrimento animal (já que uma maior proporção dos animais é criada em piores condições), também aumentará os incentivos para enfraquecer a legislação que já existe com este propósito.

Ou seja: o acordo UE-Mercosul vai incentivar a criação intensiva de gado, sujeito a  espaços sobrelotados e com uma dieta inadequada. Isto tem conduzido a problemas de saúde, como é o caso da síndrome hemolítico-urêmica na Argentina.

10- Um acordo que vai levar a um esvaziamento da Democracia

O acordo UE-Mercosul estabelece, nos seus vários capítulos, um conjunto de sub-comités que representam uma camada burocrática de papel obscuro e não sujeita a um adequado controlo democrático. O acordo não oferece qualquer garantia de que os grupos empresariais não capturem estes sub-comités, sendo que alguns destes têm poderes que se estendem para lá daquilo que está explicitamente acordado no documento. Nenhum mecanismo de escrutínio democrático está previsto no âmbito destes sub-comités.

No que concerne à participação da sociedade civil, esta limita-se à participação em grupos consultivos nacionais, mas apenas no que diz respeito a disputas relacionadas com as questões do desenvolvimento sustentável e apenas através da submissão de comentários. A sociedade civil não terá qualquer capacidade de influência sobre as decisões que forem tomadas relativamente aos problemas que irão inevitavelmente surgir na implementação do acordo. A arquitectura institucional está desenhada para reforçar o controlo das elites políticas e económicas, de forma a que as mesmas estejam em posição de salvaguardarem os seus interesses.

11- Um acordo que é uma “porta de entrada” para o ISDS ou ICS

A estratégia “Comércio para Todos” da Comissão Europeia designa o objectivo de renegociar e “modernizar” os acordos de comércio anteriores a 2009 que excluíam os mecanismos de protecção do investimento. Assim sendo, a União Europeia pelejou (unilateralmente) pela “modernização” dos acordos com o Chile e o México, promovendo a inclusão de um capítulo sobre protecção do investimento que inclua o sistema ICS, uma versão ligeiramente melhorada do perverso mecanismo exclusivo para as multinacionais ISDS.

Embora o acordo UE-Mercosul não estabeleça um sistema ISDS ou ICS, parece claro que, na sua redacção actual, encontram-se já indícios desta intenção de uma renegociação futura que incorpore estes sistemas de justiça paralela.

Nesse sentido, o Brasil – que até agora nunca se sujeitou a estas soluções duvidosas de justiça privada – arrisca-se a ficar mais próximo de aceitar tais sistemas. Da mesma forma, os  países da União Europeia, por seu lado, alguns deles já enquadrados em acordos bilaterais com o Uruguai, o Paraguai e a Argentina, passarão também a estar sujeitos ao ataque de sucursais de empresas multinacionais nestes países e no Brasil. Com sistemas deste tipo, perdem as populações e a Democracia em ambos os lados do Atlântico, mas ganham, mais uma vez, as empresas multinacionais.