quinta-feira, 13 de maio de 2021

“Desconectados do mundo natural”, por Ana Silva

O apelo à devoção ao sobreconsumo de bens e serviços, como forma de satisfação e realização pessoal, está omnipresente, toma conta das nossas vidas, tornou-se numa forma de adição que vai adormecendo a consciência.

QUAIS SÃO OS PROBLEMAS DO RIO TEJO?
QUAIS SÃO OS PROBLEMAS DO RIO NABÃO?
QUAIS SÃO OS PROBLEMAS DA FLORESTA?
QUAIS SÃO OS PROBLEMAS DOS OCEANOS?
A resposta a esta e tantas outras perguntas, está noutra pergunta:
QUAIS SÃO OS PROBLEMAS DO SER HUMANO?
E a resposta já todos a conhecemos – é ele próprio. É a sua visão do mundo. Que em conjunto, determinam as suas escolhas.

Os problemas do ser humano prendem-se com o modo como sentimos, pensamos e agimos, trio cuja dinâmica obedece a contextos individuais e colectivos que vão constituindo a nossa visão do mundo. Visão que evolui e se reflete, a montante, no modo como somos educados, educamos e nos deixamos educar, e a jusante, no modo como nos organizamos, produzimos e consumimos.

A visão do mundo que adoptamos reflete a cada momento o compasso dos objectivos do lado que queremos que ganhe.

É de acordo com este compasso que o modo de sentir pensar e agir evolui cada vez mais focado na satisfação de desejos egocentristas. Desconectados do que é essencial para garantir a nossa própria sobrevivência, e que é, em grande medida, invisível aos olhos.

O apelo à devoção ao sobreconsumo de bens e serviços, como forma de satisfação e realização pessoal, está omnipresente, toma conta das nossas vidas, tornou-se numa forma de adição que vai adormecendo a consciência, desconectando-nos da nossa própria essência de ser natural. Um ser incapaz de compreender e por isso longe de admitir, que o destino da sua espécie está incontornavelmente associado à evolução global do funcionamento de todo o conjunto da Biodiversidade.

Créditos: Unsplash

Um ser, que ainda se divide entre acreditar ou não nas alterações climáticas. Entre acreditar ou não, que as alterações climáticas estão ligadas às emissões de gases com efeito de estufa, com origem nas actividades humanas. Como se de uma questão de fé se tratasse. Como se este fosse o único problema que pôe em causa a sustentabilidade da Vida.

Criar e alimentar a dúvida é o modo mais eficaz de garantir que tudo fique na mesma, mas não fica! A propaganda do sistema não olha a meios para manter inabalável a eficácia da ditadura das convicções e da manutenção da dúvida, tudo fazendo para induzir a nossa visão do mundo a prosseguir como habitualmente.

Enquanto os holofotes se dividem para fazer brilhar a importância de acreditar ou não nas alterações climáticas, vamos imaginando que o ar, a água e os solos envenenados são um problema menor. Uma vez que a esperança de vida tem aumentado, o ar é respirável, corre água “potável” nas torneiras e os alimentos não faltam no supermercado.

Enquanto içamos estas e outras bandeiras do optimismo, várias realidades vão-se instalando aos níveis do visível, mas sobretudo aos níveis do invisível.

Enquanto imaginamos poder “continuar a controlar a Natureza” impondo-lhe as leis ditadas pela superior inteligência e engenho humanos, a Vida de todas as outras criaturas do Planeta vai-se organizando como pode e enquanto pode.

Cada uma destas vidas desempenha um papel no funcinamento dos ecossistemas. A conjugação de todos os papéis (do micróbio ao macróbio) põe em marcha os ciclos vitais da água, do oxigénio, do carbono e do azoto, contribuindo a sua vitalidade para ditar a dinâmica do clima e por estas vias, a evolução das criaturas que formam e mantêm ligados os elos da cadeia da Vida.

A continuidade das condições favoráveis à sobrevivência da espécie humana, depende do funcionamento favorável de todo o conjunto da Biodiversidade que inclui como sabemos, a variedade de ecossistemas e a variedade de espécies aos níveis funcional, genético e filogenético.

O bom funcionamento dos ecossistemas depende da variedade de espécies e do clima. Num determinado meio, das actividades e do metabolismo de cada espécie, e das interelações dinâmicas entre as várias populações, resultam os ciclos ecológicos do oxigénio, da água, do carbono e do azoto. A vitalidade destes ciclos é determinante no que diz respeito à evolução do clima.

No contexto do funcionamento dos ecossistemas a espécie humana desempenha cada vez mais um papel de praga. Este papel passa pelo crescimento da sua população, mas passa também em grande medida, por uma visão desajustada e cada vez mais irresponsável quanto às consequências das suas actividades e das suas escolhas.

A introdução de artificialismos (processos e moléculas exóticas) com os quais a natureza não sabe lidar combinadas com uma crescente degradação e destruição indiscriminada de ecossistemas, contribui para a fragilização da vitalidade dos ciclos ecológicos que sustentam e são sustentados pela Vida.

De tudo isto resulta uma crescente erosão da Biodiversidade que pôe em causa a Sustentabilidade da Vida.

E é por tudo isto que salvaguardar a Biodiversidade é tão importante. Não podemos esquecer que a espécie humana foi a última a emergir.

Temos que nos perguntar porquê? Que condições não estariam reunidas antes? Que encontro entre criaturas resultou numa negociação favorável à emergência de uma linhagem diferente de chimpazé?

Mais do que saber responder a estas perguntas importa ter consciência do que significa o facto de fazer sentido formulá-las.

Créditos: Unsplash

Nós não somos um organismo, somos um pluriorganismo cujo corpo abriga e sustenta milhares de milhões de microorganismos sem os quais não conseguimos sobreviver. Tal como um ecossistema o nosso bom funcionamento depende do número e da variedade de espécies que o sustenta e que são sustentadas por ele, bem como da vitalidade dos ciclos que põem em marcha e que determinam o clima interno do nosso ecossistema – um intruso virtuoso é adoptado ou pelo menos tolerado, um intruso disruptivo e é um incêndio.

Assim percebemos que se chegámos em último é porque antes não havia condições. E percebemos a necessidade primordial de salvaguardar os equilíbrios por natureza frágeis e instáveis que resultam da acção de todo o conjunto da Biodiversidade. Pois são eles que determinam a disponibilidade dos recursos vitais que permitem a sobrevivência da nossa espécie: ar repirável, água doce potável, solos férteis…

A crise climática de que tanto se fala é muito mais uma consequência do que a causa dos maiores problemas que a humanidade enfrenta.

Contra ela o pouco que se faz e o muito que se vai planeando fazer, não levará a melhor sobre o muito que em crescendo a alimenta enquanto não percebermos que a crise que enfrentamos é uma crise civilizacional instalada pela ditadura das convicções: 

  •  Convicção de que o planeta se adapta a tudo.
  • Convicção de que a sobrevivência da espécie humana é um dado adquirido.
  • Convicção de que o ser humano pode e tudo deve fazer para dominar e não para ser dominado pelas leis naturais.
  • Convicção de que a Natureza nos oferece generosamente tudo o que precisamos sem pedir nada em troca.
  • Convicção de que a evolução para melhor da actual civilização assenta em primeiro lugar no crescimento económico.
  • Convicção de que o crescimento económico permanente é possivel num planeta com recursos finitos e com uma capacidade de renovação limitada.
  • Convicção de que a inteligência e o engenho humano serão sempre capazes de inventar uma tecnologia para resolver cada problema.
  • Convicção que o rumo das sociedades deve ser deixado apenas nas mãos de especialistas.
  •  Convicção de que o que é bom para a Ecologia não é bom para a Economia.
  • Convicção de que a competição é a norma na Natureza e que por isso deve ser a norma na condução da nossa evolução individuail e colectiva.
  • Convicção de que temos direito e merecemos satisfazer todos os nossos desejos.

    A lista é longa e o que emerge de modo consistente desta crise civilizacional é uma crise de confiança no Presente e no Futuro que se desdobra

  • Numa crise de confiança nas instituições políticas, financeiras e religiosas.
  • Numa crise de confiança nos representantes eleitos.
  • Numa crise de confiança na qualidade e segurança de produtos e serviços.
  • Numa crise de confiança entre as pessoas e entre os povos.
  • Numa crise de confiança intergeracional.
  • Numa crise de autoconfiança.
  • e também, cada vez mais, numa crise de confiança na capacidade de o Planeta poder continuar a responder às pressões sem pôr em causa as necessidades mais ou menos legítimas da população mundial em crescimento.

    Para ultrapassar uma crise civilizacional instalada assistida por problemas que crescem em número e em complexidade é preciso que individual e colectivamente estejamos abertos ao desafio de fazer crescer em nós uma vontade de:

  • Reavaliar a nossa visão do mundo.
  • Procurar conhecimento e informação que nos permita avaliar com justeza e legitimidade as possibilidades de consumir de um modo ecologicamente mais responsável.
  • Experimentar e partilhar as soluções que existem e que nos permitem satisfazer as necessidades mas de outra maneira, procurar novas soluções, e assumir um papel de cidadão activo exigindo que aqueles que nos representam nas instituições locais, nacionais e internacionais assumam as suas responsabilidades. Reavaliando os objectivos estratégicos e desenhando e implementando planos que coloquem a Ecologia como fio condutor na avaliação das decisões.

    A salvaguarda de uma ecologia, assente na divulgação do conhecimento e na dignificação da inteligência e do engenho humanos indo ao encontro do bem comum global, é a ideia mais poderosa que pode constituir uma nova visão do mundo, com condições para ser compreendida e partilhada por uma larga maioria da população mundial.

Ecologista / Ativista, porta-voz do Movimento ProTejo

Artigo publicado por: www.mediotejo.net, a 7 de Maio, 2021