quinta-feira, 15 de abril de 2021

O secretário de Estado que aprovou a Lei dos Eucaliptos tornou-se diretor-geral das celuloses – João Camargo

Francisco Gomes da Silva, o ex-secretário de Estado das Florestas que fez aprovar a lei que liberalizou a plantação dos eucaliptos, agora tornou-se diretor-geral da CELPA, a Associação da Indústria Papeleira que reúne os gigantes das celuloses em Portugal. O anúncio foi feito na véspera da decisão do julgamento de José Sócrates, evitando assim qualquer escrutínio desnecessário, e é por isso que se contratam agências de comunicação.

Já não causa surpresa a milésima porta giratória que atravessa a administração pública e as grandes empresas privadas. Esta é mais uma história entre as muitas que revelam a natureza do Estado Português, uma conciliação entre o interesse privado e a vantagem que a gestão da coisa pública tem para garantir a satisfação desse interesse.

Em 2013, o então secretário de Estado das Florestas, Daniel Campelo, demorava a avançar com a nova lei para as acções de arborização e rearborização, que viria a ser chamada de “Lei dos Eucaliptos” e falava com regularidade da realização de um cadastro de terras. Tardando Campelo em aprovar a lei, acabou por sair dar lugar a Francisco Gomes da Silva, sócio da empresa Agro.Ges e professor do Instituto Superior de Agronomia.

Poucos meses depois, Gomes da Silva, cuja empresa prestava vários serviços às celuloses do hoje grupo The Navigator Company (ex-Portucel e Soporcel), aprovou o Decreto-Lei 96/2013, de 19 de Julho, a lei que liberaliza a plantação de eucaliptos e, em 2014, demitiu-se. Desde a saída de Campelo não mais se falou de cadastro de terras. A lei dos eucaliptos viria a estar em vigor até ser revogada, após os incêndios florestais de 2017.

Agora, Gomes da Silva foi nomeado director-geral da CELPA. Quem é a CELPA? A Associação da Indústria Papeleira, isto é, a The Navigator Company, a Altri, a Celbi, a Celtejo, a Caima, a Renova. A matéria-prima principal de cada uma destas empresas provém de eucaliptos. A propósito do conflito de interesses do patrocínio da Navigator à presidência portuguesa da União Europeia, a empresa informou que não tem quaisquer antigos governantes da administração. Felizmente ninguém falou de associações empresariais onde ex-governantes pudessem trabalhar.

A história da promiscuidade entre governantes e celuloses é longa e antiga:

– Álvaro Barreto: Ministro no IV, V, VII, IX, X e XVI Governo Constitucional, Administrador da Portucel-Soporcel, Presidente do Conselho de Administração da Portucel-Soporcel;

– António Nogueira Leite: Director Portucel-Soporcel, Director da Papercel, secretário de Estado XIV Governo Constitucional;

– Daniel Bessa: Ministro do XIII Governo Constitucional, Administrador da Celbi;

– Daniel Proença de Carvalho: Ministro IV Governo Constitucional; Presidente Assembleia-Geral Renova; Presidente Assembleia-Geral Celulose do Caima;

– Fernando Faria de Oliveira: secretário de Estado VIII, X, XI Governos Constitucionais; Administrador da Celbi; Ministro XI e XII governos constitucionais;

– Francisco Pinto Balsemão: Ministro VI Governo Constitucional; Primeiro-Ministro VII e VIII Governo Constitucional, Administrador da Celbi;

– João Manuel Soares: Director-Geral das Florestas, secretário de Estado das Florestas XV Governo Constitucional, Director da Portucel-Soporcel, Direcção do Comité Florestal da Confederação Europeia da Indústria Papeleira; Administrador da Portucel-Soporcel

– João Morais Leitão: Ministro VI e VII governos constitucionais, Presidente Assembleia-Geral da Portucel-Soporcel, Grupo Queiroz Pereira

– Joaquim Ferreira do Amaral: secretário de Estado V, VII, IX governos constitucionais, ministro do IX, XI, XII governos constitucionais, presidente da Comissão Directiva do IFADAP, Administrador da Inapa, Administrador da SEMAPA, consultor do Grupo Queiroz Pereira (accionista principal SEMAPA, accionista Portucel)

– Jorge Godinho: secretário de Estado X, XI governos constitucionais, Presidente do Conselho de Administração da Portucel-Soporcel;

– José Pedro Aguiar-Branco: Ministro (XVI, XIX governos constitucionais), Presidente Assembleia-Geral Semapa, Presidente Assembleia-Geral Portucel-Soporcel

– Luís Todo Bom: secretário de Estado X Governo Constitucional, Presidente Conselho Fiscal Portucel-Soporcel, Administrador Celulose do Caima, Administrador Semapa

– Paulo Lowndes Marques: secretário de Estado VIII Governo Constitucional, Administrador Portucel-Soporcel

– Tiago Oliveira: adjunto do Secretário de Estado das Florestas XV Governo, adjunto do Ministro da Agricultura do XVII governo constitucional, responsável por estratégia, inovação e desenvolvimento da The Navigator Company (e antes Portucel) Presidente do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais dos últimos dois governos.

A notícia da contratação de Gomes da Silva continua esta história. Após o seu curto mas preciso mandato no governo, e de volta à sua empresa de consultoria, o professor continuou a ser um dos mais acérrimos defensores da monocultura do eucalipto como desígnio de desenvolvimento para o país, defendendo a indústria e defendendo a sua lei, mesmo até nos dias seguintes aos incêndios de 2017. A empresa de que era (ou ainda é) diretor-geral, a Agro.Ges, é descrita pela Navigator por três palavras “Confiança, Eficácia, Colaboração”. Segundo o próprio Gomes da Silva agora, na CELPA, vai proteger a floresta de “ser olhada com um viés ideológico que não corresponde aos anseios e às necessidades de toda a fileira [celuloses]”.

Quem leia este artigo pode ficar com a impressão, em algum momento, de que estou a sugerir que há aqui algum crime, nomeadamente corrupção. Deixem-me ser completamente taxativo: não há. Quando um ex-governante é apanhado com malas de dinheiro que recebeu de alguma empresa ou banco para favorecer algum negócio, isso é corrupção. Quando há uma maneira das coisas serem subtis, como por exemplo um ex-governante ser nomeado para um Conselho de Administração de uma empresa favorecida ou próximo dela, isso não é corrupção – aí chama-se capitalismo.

Esta é mais uma história entre as muitas que revelam a natureza do Estado em capitalismo, uma estrutura de manutenção dos interesses dos poderosos através de mecanismos legais que garantem que o interesse privado é, em qualquer circunstância, o principal interesse para o Estado e, quando é necessário, que esse interesse pode até administrar directamente o Estado. A Justiça é só um mecanismo para regular e garantir que esta função vital do estado capitalista se mantém intocável.

Assim, notícias destas não podem nem devem ser olhadas com desconfiança ou indignação, porque tudo isto é legal, tão legal como manter as indústrias mais poluidoras e destruidoras da história a trabalhar e até aumentar a sua produção quando estamos à beira do colapso climático.

Artigo originalmente publicado no Expresso dia 11 de Abril de 2021