A COP26 abriu com as perguntas erradas
e está a fechar com as respostas erradas. “Irão os líderes mundiais
atender à última chamada pelo planeta?”, perguntou-se no início. Será
que a COP26 vai estabelecer os compromissos e as metas para limitar o
aquecimento abaixo dos 1,5°C? Será que haverá financiamento suficiente
para os países do Sul Global que estão a liderar a ação climática? Será
que haverá investimento adequado na transição energética?
São todas, todas, TODAS, perguntas erradas.
Em primeiro lugar, se 26 anos de respostas negativas não chegaram,
nada vai chegar. Pôr a mão na água a ferver uma vez é aprendizagem, a
segunda vez é teste, a 26ª vez é idiotice.
Em segundo lugar, as empresas de combustíveis fósseis
que controlam os políticos (e os políticos que controlam as empresas de
combustíveis fósseis – qual é a diferença, mesmo?) querem repetir
exatamente a mesma pergunta, porque nela está implícita que a conclusão
é: ou eles ou nada. There is no alternative. (Imagine-se: o dossier da Visão sobre a COP26 foi patrocinado – na capa da revista! – pela Galp)
Nasceu torto e nem se quer
endireitar. Portanto, a mesma performance mediática continua sobre a
COP26 e os seus resultados e desilusões. Não tenho nada a acrescentar
sobre esse jogo, mas tenho algo para te dizer: temos de parar esta
loucura.
Em terceiro lugar, uma cimeira não começa no vazio. Há dezenas de
grupos de trabalho, várias reuniões pré-COP. Isto é, nós sabemos os
possíveis resultados destes encontros bem antes deles acontecerem. Este
ponto é importante, porque nos diz que as pessoas que fazem estas
perguntas (os jornalistas, os políticos, os “especialistas”, todos eles)
já sabem as respostas. A pergunta é falsa. Estão a mentir. Estão a
mentir na nossa cara, deliberadamente, há décadas.
Depois, com as curiosidades erradas bem colocadas e bem espalhadas, começou a COP26, a cimeira do clima “mais branca e mais privilegiada” de sempre. Durante a COP26, na Cimeira Popular, a plataforma Acordo de Glasgow apresentou um novo relatório, Drill Baby Drill,
que mostra que, independentemente dos discursos, das conferências de
imprensa e das declarações, os governos já fizeram um compromisso: 800
furos de petróleo e gás planeados até ao final de 2022. Para que serve
uma cimeira do clima enquanto está tudo montado ao contrário?
Nasceu torto e nem se quer endireitar. Portanto, a mesma performance
mediática continua sobre a COP26 e os seus resultados e desilusões. Não
tenho nada a acrescentar sobre esse jogo, mas tenho algo para te dizer:
temos de parar esta loucura. Porque temos de atender à verdadeira
loucura: o sistema que nos trouxe até aqui e nos está a empurrar para o
abismo.
Porque à questão do clima tem um elemento distinto: o caos climático
será resultado do business as usual, de deixar tudo como está. O colapso
civilizacional, neste caso, não é porque alguém tocou no botão das
armas nucleares ou porque alguém declarou uma guerra para instituir
democracia num país com petróleo. Não é por um ato deliberado. É pela
inação. É pela inércia sistémica. É por continuarmos as nossas vidas
ignorando que a nossa casa está a arder. É por obedecermos ao sistema e
nos submetermos a um suposto “realismo” político, negacionista da
realidade climática.
Temos de deixar de olhar para as cimeiras. Na verdade, temos de
começar a olhar para as cimeiras como cenas de crime, como também são as
assembleias dos acionistas das petrolíferas. As COP são o problema. Não
só pelas falsas soluções das supostas emissões negativas e compensações
das emissões, não é só pelos compromissos não-vinculativos, não é só
por causa dos mecanismos de mercado que tornam tudo em mercadorias, mas
também pela sua própria estrutura.
O crime que os políticos cometeram durante a COP26 é o mesmo crime
que cometem diariamente: o crime de deixar as coisas como estão. O
governo português, com o seu Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 e
o Plano Nacional Energia e Clima 2030, tem planos de esgotar o orçamento de carbono de Portugal entre 2026 e 2035.
Isto é, se Portugal quer fazer a sua parte para nos mantermos abaixo de
1,5°C, e se os planos atuais se prolongarem por mais cinco a 10 anos,
teríamos de encerrar a economia inteira. Isto é o plano de Portugal. O
que me interessa então se o António Costa foi a Glasgow ou não?
Que me interessa a quem Joe Biden, presidente dos Estados Unidos,
apertou as mãos, quando ele continua a autorizar novos projetos de
combustíveis fósseis? Para a recuperação da ᴄᴏᴠɪᴅ-19 a administração
Trump e o congresso dos Estados Unidos alocaram 2,9 biliões de dólares e
o Banco da Reserva Federal inventou outros quatro biliões em
empréstimos e estímulos. Isto representa um quarto do PIB dos Estados
Unidos em 2019.
Agora, Biden propôs
um orçamento de 3,5 biliões de dólares para uma série de programas ao
longo de 10 anos. Nem isso conseguiu e ficou agora com 1,75 biliões para
uma década, o que perfaz 175 mil milhões de euros. Disto, só 55 mil
milhões vão para o clima. Isto é 50 vezes menos que as despesas da
COVID-19 do ano passado. Porque devo em qualquer momento imaginar que
esse mesmo Biden pudesse “salvar o planeta”?
A verdade é que a crise climática está muito para além da nossa
capacidade cognitiva. Faço ativismo climático há quinze anos. Porém, um tornado de fogo,
algo que estava para lá da minha imaginação, tornou-se real quando vi
uma foto dos incêndios florestais em 2020, na Califórnia, Estados
Unidos. É um redemoinho de vento criado e composto por fogo. Nos
incêndios de grandes extensões, as zonas de pressão mudam, criando os
seus próprios ventos e acabando por produzir um tornado que, por sua
vez, colhe as chamas do incêndio. É um feitiço mágico que esperaria de
uma personagem do videojogo Diablo II, não que fosse uma notícia
verdadeira.
Sejamos honestas connosco. Isto será
uma revolução. Não sabemos que forma ela terá. Mas se ganharmos isto
tudo, se travarmos o caos climático, as pessoas depois vão referir-se a
este período como uma Revolução pelo Clima.
E, supostamente, a minha mente é treinada para lidar com as imagens
da catástrofe climática. Agora tenho o tornado de fogo como protetor de
ecrã no meu telemóvel, para me lembrar regularmente o quão comprometidos
além do concebível nós estamos. Depois, em 2021, a Tower Bridge, em
Londres, ficou inundada pelas chuvas fortes. Uma ponte inundada, uma
ponte! Na mesma altura, 300 incêndios florestais torraram a zona
costeira da Turquia. Vários destes fogos chegaram a zonas residenciais,
com um deles a ter mesmo atingido a termoelétrica a carvão – a central
foi destruída pelo incêndio que ela própria causou. Sei que isto é
forte. É difícil. É horroroso.
Uma forma de negacionismo ao lidar com esta realidade é acharmos que a
responsabilidade é dos outros. Há várias formas de o fazer e os
governos andam a fazê-lo entre há décadas sobre qualquer tema. Mas nós,
as pessoas comuns, também o fazemos.
Desresponsabilizamos-nos quando questionamos se é esta COP que nos
vai salvar, se seria ligeiramente melhor se fosse este governo em vez
daquele. Delegamos a nossa tarefa aos representantes do sistema que é a
raiz do problema.
Isto é confortável e ao mesmo tempo criminoso. Isto é confortável,
mas consentir o crime não é um ato neutro. Alguém nos fará prestar
contas num futuro demasiado próximo. E não estou a falar em abstrato
sobre a responsabilidade da sociedade. Estou a falar sobre ti, sobre
mim. A filha do teu primo vai questionar-te a ti, diretamente, daqui a
dez anos, depois de mais uma falha de infraestrutura ou de um conflito
social. Por que é que deixaste que tudo isto acontecesse? “Eles na COP26
não resolveram o problema” não será uma resposta adequada, porque a
pergunta não será sobre eles, mas sobre ti.
Isto é muito pesado para eu conseguir carregar. Sei que tu também não vais conseguir. Vamos juntas?
Portanto, a minha “análise do que foi” a COP26 é, na verdade, uma
sugestão concreta: deixarmos de falar sobre o que os “outros” (cimeiras,
governos, empresas, aquela associação em que não confias, aquele
político que defende a solução de que não gostas, etc.) estão a fazer e
deviam fazer, e começarmos a falar sobre o que nós vamos fazer.
Como vamos nós travar o caos climático? Como vamos construir uma nova
sociedade? Como vamos responsabilizar os criminosos climáticos?
Sejamos honestas connosco. Isto será uma revolução. Não sabemos que
forma ela terá. Mas se ganharmos isto tudo, se travarmos o caos
climático, as pessoas depois vão referir-se a este período como uma
Revolução pelo Clima. Porque, muito provavelmente, não vamos só
“pressionar” os governos. Muito provavelmente, vamos ter de fazer cair
os governos existentes e vamos ter de fazer cair os governos que os vão
substituir. Sejamos honestas connosco. Nada do que está a acontecer
agora está minimamente perto daquilo que deveria estar a acontecer. Nem a
nível das políticas públicas, nem a nível das mobilizações sociais.
Sejamos honestas connosco. Há uma lacuna de ambição em nós sobre o que
realmente devemos fazer.
O futuro está a ser decidido. Está a sê-lo por eles, mas também por
nós. O futuro ou seremos nós ou será um inferno terrestre. Ou vamos
juntas mudar tudo, ou vamos juntas cair no colapso civilizacional. E há
uma proposta bastante prática: no dia 18 de Novembro, quinta-feira, vai
haver uma ação de desobediência civil em Sines,
na Refinaria da Galp, a infraestrutura mais poluidora em Portugal, para
exigir zero emissões, transição justa e democracia energética. Temos
autocarros.
Vamos juntas?
Artigo originalmente publicado no Setenta e Quatro a dia 12 de Novembro de 2021.