Não é raro falarmos de capitalismo
“fóssil”, mas o objetivo desta formulação é apenas tornar clara a origem
da crise climática: a queima de combustíveis fósseis. Poderia haver
quem argumentasse que, se há um capitalismo fóssil, também haveria
“verde”. Essa é, no entanto, uma impossibilidade. O capitalismo não pode
não usar combustíveis fósseis. Não significa que não possa também usar
outras formas de energia. A ligação entre capitalismo e combustíveis
fósseis é absoluta, como é portanto a ligação entre o capitalismo e a
crise climática. É preciso ser claro: o capitalismo criou a crise
climática. É preciso ser mais claro ainda do que isto: o capitalismo
criou e sabia há muito que criou a crise climática. Além disso, é
preciso dizer que o capitalismo é e será incapaz de travar a crise
climática.
Tendemos a assumir que o capitalismo é o
estado natural das coisas porque somos permanentemente bombardeados na
guerra cultural que fez das nossas cabeças e da nossa imaginação um
campo de batalha sobre o que é ou não possível. Desde a cultura
dominante no capitalismo às notícias, às redes sociais, tudo nos diz que
o mundo é isto e não pode ser isto. No entanto, sabemos que somos uma
espécie que tem entre 200 e 300 mil anos de existência. Também sabemos
que só nos últimos 12.000 anos surgiram as condições para o aparecimento
de agricultura, de grandes aglomerados populacionais e da “civilização”
como a conhecemos. Foi o clima do Holoceno que nos permitiu essa
evolução. O capitalismo como forma de produção e organização social não
tem muito mais de 200 anos, apesar das suas alianças com outras formas
antigas de organização repressiva, como o patriarcado e o colonialismo. A
lengalenga de que a maneira como alguns grupos se comportam em
capitalismo é “natureza humana” não passa disso mesmo – uma lengalenga.
Como todas as lengalengas, tem aderentes. O que eles querem conformar é a
ideia de que não há alternativa a este sistema, e que portanto devemos
simplesmente aceitar que é assim. Apesar de termos vivido enquanto
espécie neste planeta durante pelo menos 198.800 anos sem capitalismo, e
apesar de termos agricultura, aglomerados populacionais e civilização
há pelo menos 11.800 sem capitalismo. Apesar disto, dizem-nos que não há
alternativa ao capitalismo. Sim, é ridículo e não passa qualquer crivo
histórico ou científico.

Em 2006, Sir Nicholas Stern escreveu no seu livro “The Economics of Climate Change”,
que as alterações climáticas eram a maior falha de mercado que o mundo
já viu. Stern reconhecia que havia um grave problema “o maior que o
mundo já viu”, mas chamava-lhe uma “falha”. Não é verdade. O capitalismo
necessitou e necessitar ignorar os efeitos das suas atividades para
funcionar. Se o capitalismo tivesse de pagar a degradação ambiental que
as suas atividades produzem, teria de abdicar dos seus lucros e portanto
deixaria de funcionar. O capitalismo tem de desprezar o facto básico de
os recursos humanos serem não só escassos como finitos, razão pela qual
encoraja permanentemente (e além da cultura, a publicidade tem aqui um
papel essencial) produtores e consumidores a gastar os recursos de
acordo com o ritmo das “condições de mercado”. Mercado é uma
palavra-chave em capitalismo. De acordo com a Investopedia, um “mercado é
um lugar onde as partes se juntam para facilitar a troca de bens e
serviços, tendo compradores e vendedores, podendo ser físico ou
virtual”. Além disso, algumas características chave do mercado incluem a
“disponibilidade de um local, compradores e vendedores e uma mercadoria
que possa ser comprada e vendida”. Este mercado, em particular os
“mercados internacionais”, não são algo que nós consigamos ver ou
participar. Talvez sejam mais simples explicar que mercados são pessoas
ricas que decidem o que comprar e vender, porque essa definição descreve
a quase totalidade dos mercados nacionais e internacionais. Não é uma
entidade abstrata: tem nomes, moradas e interesses representados em
bolsa.
O capitalismo necessita que tudo seja
mercadoria e, portanto, transacionável – recursos, naturais, plantas,
animais, o clima, as emissões – mesmo que o seu valor seja incalculável,
como a capacidade que as plantas têm para fornecer oxigénio. Algo que
não possa ser transacionável entre os ricos (“mercados”) tende a ser
ignorado em capitalismo porque não tem valor de troca e, portanto, não
poderá render imediatamente a alguém. Isso pode ser algo como a
dignidade ou direitos humanos, como pode ser a habitabilidade de um
território, o colapso de um ecossistema terrestre ou a vida de uma
comunidade. A atribuição de um valor monetário a qualquer um destes é um
processo de alienação, até porque um valor monetário, uma “moeda”, seja
ela qual for, depende apenas de uma crença e não tem qualquer
correspondente material.
No livro “Capital Fóssil”
de Andreas Malm, ele explica-nos a origem e fusão completa entre o
capitalismo e os combustíveis fósseis, partir do início da revolução
industrial. O abandono da utilização da água como fonte de energia,
trocada pelo carvão e o vapor não foram apenas um “avanço tecnológico”,
como tantas vezes nos explicam em livros de história: foram uma maneira
de aumentar o controlo sobre a maneira como se produzia e,
principalmente, sobre quem produzia. O carvão e, mais tarde, o petróleo e
o gás, ganharam sobre a água e o sol como fonte de energia porque
permitiram aumentar o controlo dos patrões sobre quem trabalhava,
aumentando simultaneamente o poder da burguesia industrial sobre o
Estado.
Permitiram construir fábricas longe da
água e ignorar as horas do dia, colocando quem trabalha – crianças,
mulheres, homens, idosos – a trabalhar todas as horas do dia, 14 a 16
horas por dia, seis dias por semana. A concentração da energia também
permitiu arruinar pequenos produtores que não tinham capacidade de
produzir à mesma velocidade e com a mesma quantidade das fábricas, que
se desenvolviam à volta dos motores a carvão. Além disso, o carvão (como
o petróleo e o gás) são matérias cuja extração é de muito maior
dificuldade, tendendo a criar grandes monopólios. Os combustíveis
fósseis fazem parte integral das relações de propriedade burguesas: foi o
carvão que criou a grande fábrica e o proletariado industrial. A
“transição” para o carvão foi uma decisão deliberada e extremamente útil
para consolidar o capitalismo como modo de produção, tal como as
inúmeras decisões tecnológicas que sucederam desde o final do séc.
XVIII. As decisões tecnológicas foram sempre orientadas por relações de
poder e não de racionalidade energética.
Além das turbinas a carvão e petróleo,
em 1804 foi criada a primeira locomotiva a carvão em Inglaterra. As
locomotivas a vapor e a petróleo continuaram a evoluir e a ser adaptadas
a vários usos, desde os comboios às fábricas e aos barcos, permitindo a
explosão de produção e distribuição de produtos, que levou ao êxodo
rural das populações do campo para as cidades e as indústrias, que
continuou durante os séculos seguintes. Os caminhos de ferro foram-se
expandindo, como o foi também a navegação marítima alimentada agora não
apenas a ventos e marés, mas também a carvão e petróleo – isto tornou o
mundo mais pequeno, aumentou o comércio, a extração de matérias-primas
em todos os continentes e o modelo de desenvolvimento industrial
capitalista.

Os combustíveis fósseis têm outra
vantagem sobre as energias eólica, solar e da água – são uma pilha, têm
energia solar armazenada, pois são o resultado da degradação de seres
vivos há milhões de anos. Como estavam no subsolo, estavam fora do
sistema biológica de circulação. Podem ser transportados e armazenados
para ser consumidos a qualquer altura. E a sua queima liberta na
atmosfera o dióxido de carbono que tinha sido fixado pelos seres vivos
enquanto estavam vivos.

Em 1864 Nikolaus Otto inventou o motor a
4 tempos, que deu origem aos motores a gasolina e a diesel.
Simultaneamente, o motor elétrico também era desenvolvido, mas a sua
menor rentabilidade e predisposição a controlo monopolista colocou-o
sempre em segundo plano. O primeiro carro a combustíveis fósseis foi
inventado no séc. XIX, tal como o primeiro carro elétrico – o segundo
praticamente desapareceu durante mais de 100 anos. O Ford-T foi o
primeiro automóvel produzido em massa numa fábrica, e o seu objetivo era
ser barato e acessível a milhões. Entre 1908 e 1927 for produzidos 15
milhões de Ford-Ts. Desde o início do século passado cerca de 3 mil
milhões de carros foram produzidos, tornando-se um dos principais meios
de transporte do planeta, e criando inúmeros monopólios simultâneos – da
produção dos automóveis, das peças, do combustível, da construção das
estradas, etc.. Nos anos 30 do século passado foi inventada a turbina a
jato, que lançaria o transporte aéreo, também a combustíveis fósseis, e
que se foi desenvolvendo para ocupar o espaço das viagens cada vez mais
curtas, substituindo barcos e comboios. A eletrificação das sociedades e
economias ocidentais exigiu a criação de grandes centrais elétricas,
cujos proprietários tinham forte poder sobre a sociedade (seja pelo
preço da energia, seja pela quantidade e regularidade de abastecimento).
Eletricidade, fábricas, portos, aeroportos e estradas, todos
dependentes de combustíveis fósseis, são expressão mais clara de como o
capitalismo é e só pode ser capitalismo fóssil.
O capitalismo não pretende produzir bens
e serviços, mas sim capital e acumulação. Se para isso tiver de
destruir o planeta, fá-lo-á sem problemas, a não ser que seja travado.
Mas também é flexível e, por isso, quando os capitalistas deixam de
conseguir acumular riqueza a ritmos crescentes, ou quando vêm uma
oportunidade, “inovam” e tornam-se “empreendedores”.

A gigante confusão entre crescimento e
desenvolvimento é o terreno fértil em que o capitalismo quer ser eterno.
Infelizmente esta confusão domina e é por isso que se alimenta a ideia
errada de que, para haver empregos, é preciso destruir o ambiente e o
clima. O capitalismo diz-nos que abdicar dos combustíveis fósseis é
escolher viver nas cavernas, quando a realidade é que continuar a usar
combustíveis fósseis significará, na melhor das hipóteses, viver nas
cavernas. O mundo já está fundamentalmente diferente daquele em que o
capitalismo se desenvolveu e prosperou. Agora só degradando cada vez
mais e muitas vezes de forma irreversível o trabalho, o ambiente e o
clima poderá continuar a manter as suas taxas de retorno, os seus
lucros, a sua extração de mais-valia.
A austeridade é um sintoma disso mesmo,
como é a crise do custo de vida, que hoje já tem como fonte direta o
preço dos combustíveis fósseis e a crescente escassez material ligada à
crise climática. Enquanto houve capitalismo, a crise climática
continuará sempre a exprimir-se como uma crise de custo de vida, em que
nós pagaremos os prejuízos e os lucros das elites capitalistas, que
nunca pararão. O capitalismo considera mesmo que a escassez de
estabilidade climática pode ser uma oportunidade de negócio a ser
aproveitado por aqueles que possuem capital e tecnologia para aproveitar
o momento. Como o capitalismo nunca aceita perder, além das
“oportunidades” no combate às alterações climáticas também vê
“oportunidades” no caos climático. O frenesim das seguradoras e das
resseguradoras é total, e a financeirização uma necessidade. Assim, o
capitalismo procura rentabilizar já não só futuros lucros como lucrar
com as catástrofes. Nos últimos anos houve uma explosão financeira para
transferir riscos climáticos através de derivativos climatéricos e
títulos de catástrofe (cat bonds).

“Descarbonizar” a economia, por outro
lado, é um jogo de palavras proclamado por vários governos e empresas,
sempre que não se pára a utilização de combustíveis fósseis, que não se
encerram indústrias com elevadas emissões, sempre que não se transformam
os transportes e a produção agro-pecuária e florestal. Renováveis não
tiram dióxido de carbono da atmosfera e os novos modelos de renováveis
estão a mimetizar os monopólios fósseis e são mesmo algumas destas
empresas que já dominam o novo sector: com grandes centrais, grandes
redes de distribuição e a manutenção do poder nas mãos dos “mercados”.
Em muitos locais do mundo as
alternativas já existem e estão a ser praticadas: a permacultura, a
democracia energética, a revolução alimentar, o combate às energias
fósseis em funcionamento, os transportes alternativos. No entanto, a
escala a que estas alternativas estão a ser praticadas é residual e
estas são mantidas na marginalidade pelas leis que defendem o status
quo, o poder como ele sempre foi e, acima de tudo, a propriedade.
O capitalismo não poderá jamais abdicar
de lucro, e há mais reservas de petróleo e gás no subsolo do que aquelas
que queimámos até hoje – e é por isso que até hoje as emissões nunca
pararam de aumentar. Eles não têm alternativa a fazer todo o lucro que
possam e por isso têm de ser derrubados para poder continuar a haver
Humanidade.
Artigo originalmente publicado em: https://outraseconomias.pt/outrasec/o-capitalismo-contra-o-clima