segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

«MORREU DOM FUAS....» - Poema de Jorge de Sena

 

«MORREU DOM FUAS....»


Morreu Dom Fuas, gato meu sete anos,
pomposo, realengo, solene, quase inacessível,
na sua elegância desdenhosa de angora gigante,
cendrado e branco, de opulento pêlo,
e cauda com pluma de elmo legendário.

Contudo, às suas horas, e quando acontecia
que parava em casa mais que por comer
ou visitar-nos condescendentemente como
 a duquesa de Guermantes recebendo Swann,
tinha instante de ternura toda abraços,
que logo interrompia retornando
aos seus passos de império, ao seu olhar ducal.

Nunca reconheceu nenhuma outra existência
de gato que não ele nesta casa. Os mais
todos se retiravam para que ele passasse
ou para que ele comesse, eles ficando
ao longe contemplando a majestade
que jamais miou para pedir que fosse.

Andava adoentado, encrenca sobre encrenca,
e via-se no corpo e no opulento pêlo,
como no ar da cabeça quanta humilhação
o sofrimento impunha a tanto orgulho imenso.
Por fim, foi internado americanamente,
no hospital do veterinário. E lá,
por notícia telefónica, sozinho, solitário,
como qualquer humano aqui, sabemos que morreu.

A única diferença, e é melhor assim,
em tão terror ambiente de ser-se animal que morre
foi não vê-lo mais. Porque ou nós morremos,
como dantes se morria em público,
a família toda, ou toda a corte à volta, ou
é melhor que se não veja o rosto de qualquer
- mesmo ou sobretudo no de um gato que era tão
                                              [orgulhoso em vida -   
não só a marca desse morrer sozinho de que 
                                            [se morre sempre
mesmo que o mundo inteiro faça companhia,
mas de outra solidão tecnocrata, higiénica
que nos suprime transformados em
amável voz profissional de uma secretária solícita.

Dom Fuas, tu morreste. Não direi
que a terra te seja leve, porque é mais que certo
não teres sequer ter tido o privilégio
de dormir para sempre na terra que escavavas cuidadosa para nela pores
as fezes de existir que tão bem tapavas,
como gato educado e nobre natural.
Nestes anos de tanta morte à minha volta,
também a tua conta. Nenhum mais
terá o teu nome como outros tantos gatos
antes de ti foram Dom Fuas.

Jorge de Sena

Em: "Quarenta Anos de Servidão" 


Pareceu-nos adequado publicar este poema de Jorge de Sena, hoje que tomou posse outro Dom Fuas, no império, dizem que: ocidental.  

EU ME PERDI - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen

 Eu Me Perdi


Eu me perdi na sordidez de um mundo
Onde era preciso ser
polícia agiota fariseu
Ou cocote

Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra

Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar

Sophia de Mello Breyner Andresen

Em: "Geografia"

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

18 JANEIRO - 15H. - PRAÇA JOSÉ FONTANA - MARTIM MONIZ: MARCHA INTERNACIONAL CONTRA O FASCISMO, PELA PALESTINA E A JUSTIÇA CLIMÁTICA


Cercam-nos novas injustiças e as injustiças de sempre. 

Fechar os olhos não é uma opção. 

A agenda que nos é imposta é a de um pesadelo difícil de imaginar. 

É um plano de violência e autoritarismo sem restrições. 

É o colapso dos sistemas que sustentam a vida na Terra há milénios.

É tempo de uma grande mobilização internacional que combina as lutas antifascistas, pela libertação da Palestina e por justiça climática.

O fascismo não pode ser travado sem acabar com as guerras. 

O fascismo não pode ser combatido sem desmantelarmos a indústria fóssil que alimenta o caos climático.

O caos climático não pode ser travado num contexto de fascismo e guerras.

E as guerras não podem ser evitadas sem travarmos o crescimento do fascismo e pormos fim ao caos climático, que criam as condições perfeitas para novos conflitos todos os dias.

Estes desafios são diferentes facetas da mesma luta!

Este é o primeiro de muitos clamores, com múltiplas vozes, contra o fascismo, o caos climático, o genocídio e a guerra!

Olhos abertos! Avancemos juntas! 


sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

O LEGADO ISLÂMICO EM PORTUGAL - Cláudio Torres e Santiago Macias

O Legado Islâmico nos Territórios do Gharb


SANTARÉM


A cidade de Santarém (a antiga Scalabis romana) domina a imensa campina ribatejana, o antigo território de Batala, desde sempre referida e louvada pelos cronistas. O sistema de cultivo destes terrenos, ciclicamente inundados pelo rio, foi comparado por al-Himyari, como já antes se referiu, ao que se praticava no Nilo.

A zona áulica da cidade está implantada sobre uma plataforma natural, situada cem metros acima do rio Tejo, que corre a seus pés. A cidade em si é ainda mal conhecida no que se refere ao período islâmico. Al-Idrisi, para além de referir as vantagens defensivas do seu posicionamento, afirmava que a cidade não tinha muralhas, referindo-se naturalmente à Ribeira que seria nessa altura o casco urbano mais importante.



CAPITÉIS DA ÉPOCA ISLÂMICA


Hoje conservados em São João de Alporão, estes três capitéis, referenciados desde finais do século XIX (um deles foi desenhado por Zeferino Brandão no livro Monumentos e Lendas de Santarém), são atribuíveis às épocas califal (dois deles) e almorávida. Os mais antigos encontraram-se na zona de Alporão e são peças finamente lavradas, onde uma progressão do geometrismo se começa a fazer sentir. A origem clássica sente-se ainda na evolução das volutas jónicas e das folhas de acanto. O ábaco, porém, começa a ser ocupado por complexa laçaria abstractizante. Esta evolução permite-nos propor o seu enquadramento numa fase pós-califal, sendo provável que sejam obra da segunda metade do século XI ou mesmo depois disso. Tendo em conta as cartelas epigrafadas com invocação religiosa, estes capitéis devem ter pertencido a uma mesquita, da qual resta este testemunho apenas.

Santarém organizar-se-ia, aparentemente, em três núcleos bem diferenciados. A alcáçova, certamente muralhada, que tinha três portas, prolongava-se até à zona de São João de Alporão. A oeste, e junto ao Tejo, estavam já implantados os arrabaldes da Ribeira e do Alfange.

A cidade terá mantido em época islâmica um importante núcleo de população moçárabe, sendo sintomática a manutenção do nome paleocristão (Sancta Irena » Xantarin) ao longo de todo o período islâmico.


Nota: os capitéis referidos encontram-se no Museu de São João de Alporão.


Transcrito de: O LEGADO ISLÂMICO EM PORTUGAL, Cláudio Torres e Santigo Macias, Círculo de Leitores, pp. 106-109.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

O FRANCESISMO - Eça de Queiroz

 Há já longos anos que eu lancei esta fórmula: «Portugal é um país traduzido do francês em vernáculo.» A secura, a impaciência, com que ela foi acolhida, provou-me irrecusavelmente que a minha fórmula era subtil, exacta, e se colava à realidade como pelica. E para lhe manter a superioridade preciosa da exactidão fui bem depressa forçado a alterá-la, de acordo com a observação e a experiência. E de novo lancei assim aperfeiçoada: «Portugal é um país traduzido do francês em calão.» E desta vez a minha fórmula foi acolhida com simpatia, com rebuliço, e rolou de mão em mão como uma moeda de ouro bem cunhada e rutilante, que é agradável mostrar, fazer tinir sobre o mármore dos botequins. Jã a encontrei brilhando num almanaque, numa comédia do Príncipe Real e num sermão. Porque foi este novo, carinhoso acolhimento? Quem sabe? Talvez porque a ideia da vernaculidade desagradava, lembrando pedantismo, caturrice, a Academia das Ciências, o pingo de rapé, outras coisas antipáticas. Enquanto que a ideia de calão nos sugere, sobretudo a nós, Lisboetas, chalaça alegre, bacalhau de cebolada, Chiado, Grémio, pescada frita nas hortas, em tarde de sol e poeira, e outras delícias de que eu, ai de mim, estou aqui privado!

Em todo o caso, ou à maneira de Curvo Semedo, o clássico, ou à maneira do Zé Pinguinhas, o fadista, é evidente que há quarenta anos, desde a Patuleia, Portugal está curvado sobre a carteira da escola, bem aplicado, com a ponta da língua de fora, fazendo a sua civilização, como um laborioso tema, que ele vai vertendo de um largo traslado aberto defronte - que é a França. Quem dependurou ali o traslado para que Portugal copiasse, com finos e grosso? Talvez os homens de 1820; talvez os românticos da Regeneração. Eu não fui; tenho sido acusado com azedume, nos periódicos ou naqueles bocados de papel impressos que, em Portugal, passam por periódicos, de ser estrangeirado, afrancesado, e de concorrer, pela pena e pelo exemplo, para desportuguesar Portugal. Pois é um desses erros de salão, em que tão fértil é a frivolidade meridional. Em lugar de ser culpado da nossa desnacionalização, eu fui uma das melancólicas obras dela. Apenas nasci, apenas dei os primeiros passos, ainda com sapatinhos de croché, eu comecei a respirar a França. Em torno de mim só havia a França. 

(...)

Começou então a minha carreira social em Lisboa. Mas era realmente como se eu habitasse Marselha. Nos teatros - só comédias francesas; nos homens - só livros franceses; nas lojas - só vestidos franceses; nos hóteis - só comidas francesas... Se nesta capital do reino, resumo de toda a vida portuguesa, um patriota quisesse aplaudir uma comédia de Garrett, ou comer um arroz de forno, ou comprar uma vara de briche - não podia.

Nem nos palcos, nem nos armazéns, nem nas cozinhas, em parte alguma restava nada de Portugal. Só havia arremedos baratos da França. A particular atmosfera de coscuvilhice política, que é tão peculiar a Lisboa como o nevoeiro a Londres, forçou-me, a meu pesar, a embrenhar-me também na política. Em que política? Boa pergunta! Na francesa! Porque havia então em Lisboa toda a classe culta e interessante de políticos «franceses», que, no Grémio, na Havanesa, à porta do Magalhães, faziam uma oposição cruel, amrga, inexorável, ao Império Francês e ao Imperador Napoleão!

Também havia decerto, na Baixa, no Passeio Público, imperialistas, que tinham empreendido a campanha da ordem contra Rochefort e contra Gambetta. Mas era uma minoria. Lisboa toda arreganhava o dente para o imperador. E, naturalmente, eu, moço e ardente, cheio de ideias de liberdade e de república, transbordando de ódio contra a corja dos Rouher e dos Baroche, que proibiam o teatro de Hugo e tinham levado à polícia correcional Gustave Flaubert, lancei-me vivamente na oposição às Tulherias. O que eu conspirei!, Jesus, o que eu conspirei! O meu desejo era filiar-me na Internacional! E lembra-me que uma noite, a propósito de não sei que novo escândalo do império, achando-nos uns poucos no Martinho, em torno de um café, exclamámos todos, pálidos de furor, cerrando os punhos: «Isto não pode ser! Já sofremos bastante. É necessário barricadas, é necessário descer à rua!»

Descer à rua, era a ameaça terrível. E descemos o degrau do Martinho! Depois, na rua, sob o quente luar de Julho, ouvindo os foguetes para os lados do Passeio Público, voltámos para lá os passos frementes - porque um de nós, o mais exaltado, encontrava lá uma certa senhora, em noites de fogo preso.

(...)

Enquanto à política propriamente portuguesa, escuso dizer que nenhum de nós verdadeiramente sabia se o regime que nos governava era a Constituição ou o absolutismo. De tais detalhes portugueses não curavam os filhos de Danton. E enquanto às divisões parlamentares de regeneradores, históricos, reformistas, nem sequer as suspeitávamos, nós que conhecíamos as menores nuances da oposição francesa, e que distinguíamos as pequenas subtilezas de opinião que dividiam Jules Favre e Gambetta, Picard e Jules Simon.

Mas para que hei-de continuar? Não quero escrever uma página de memórias. Apenas mostrar tipicamente como eu e toda a minha geração (exceptuando espíritos superiores, como Antero de Quental ou Oliveira Martins) nos tínhamos tornado fatalmente franceses no meio de uma sociedade que se afrancesava e que, por toda a parte, desde as criações do Estado até ao gosto dos indivíduos, rompera com a tradição nacional, despindo-se de todo o traje português, para se cobrir - pensando, legislando, escrevendo, ensinando, vivendo, cozinhando - de trapos vindos da França!

Esta geração cresceu, entrou na política, nos negócios, nas letras, e por toda aparte levou o seu francesismo de educação, espalhou-o nos livros, nas leis, nas indústrias, nos costumes, e tornou este velho Portugal de D. João VI uma cópia da França, malfeita e grosseira. De sorte que, quando eu, lentamente, fui emergindo dos farrapos franceses em que essa educação me embrulhara e tive consciência do postiço estrangeiro da nossa civilização, eu pude dizer que «Portugal era um país traduzido do francês» - no princípio em vernáculo, agora em calão.

Mas dir-me-ão: «Tudo isso é uma pequena minoria, feita de alguns políticos, alguns literatos, alguns banqueiros e alguns mundanos; a vasta maioria do país, a burguesia das vilas, a gente dos campos, permanece portuguesa, conservando no seu sentir e no seu pensar o fio da tradição, que seria fácil ir buscar lá, para com ele se continuar a tecer a nossa verdadeira civilização de feitio português.»

Nenhum erro maior! Essa vasta maioria não conta. Um país, no fundo, é sempre uma coisa muito pequena: compõe-se de um grupo de homens de letras, homens de Estado, homens de negócio e homens de clube, que vivem de frequentar o centro da capital. O resto é paisagem, que mal se distingue da configuração das vilas ou dos vales. è a gente sonolenta da província, que apenas se diferencia das pequenas vielas, tortuosas e sujas, onde vegeta; são os homens do campo, que mal se destacam das terras trigueiras que semeiam e regam. A única função social é trabalhar, pagar. A direcção de um país é dada justamente por essa minoria da capital.

(...)

O que um pequeno número de jornalistas, de políticos, de banqueiros, de mundanos decide no Chiado que Portugal seja - é o que Portugal é.


Em "O FRANCESISMO"


domingo, 5 de janeiro de 2025

IDEÁRIO PARA A CRIAÇÃO - POEMA DE JORGE DE SENA

Quando, em ti próprio, ouvires algum combate 
do sonho em luta com a sua própria alma
e o mundo te parecer maior que a vida
e a vida te parecer a velha estrada
onde só tu não perseguiste o sonho,
defende, de ambos, o que for vencido.

Quando, à tua beira, houver um perseguido
e o escárnio se abater sobre o que ele pensa
e o mundo inteiro o perseguir mentindo
uma mentira maior que a dessa ideia.
defende-a como tua antes que o mundo
esmague em si próprio a chama em que se ateia.

Quando, como hoje, os crimes forem tantos
que as praias sequem no desdém das ondas,
e o melhor homem for um criminoso
voltando ansioso ao local do crime,
e o sangue nem lhe suje a ansiedade
porque não há mais sangue que ciências loucas,
grita aos ventos da morte que os traíram -
e na terra se ouça que a verdade é falsa
e só eram verdade os que partiram.

Em "COROA DA TERRA" (1946)  

AMIGO - POEMA DE ALEXANDRE O´NEILL

Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

«Amigo» (recordam-se, você aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!

«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!

Em "No Reino da Dinamarca"