A CONSOLIDAÇÃO DE UMA NOVA FASE DO CAPITALISMO
Posted: 03 Jan 2022 01:27 PM PST
# Publicado em português do Brasil
Paula Giménez e Matías Caciabue* | Carta Maior
Estamos nos
habituando a ouvir, através das nossas múltiplas telas, declarações
de grandes milionários afirmando que o mundo mudou para sempre. Bill
Gates, fundador da Microsoft, prevê para 2022 arealização de
“reuniões por meio de avatares digitais em espaços 3D”. Marck
Zuckerberg, CEO do Facebook, apresentou o Metaverse, um conglomerado
de serviços digitais cujo desenvolvimento significaria uma
“encarnação da internet”.
Também
Elon Musk, o CEO da Tesla e SpaceX, projeta uma “cidade do futuro,
Starbase, desde a qual será possível viajar a Marte”, enquanto
Larry Fink, CEO do poderoso Fundo Financeiro de Investimento Global
BlackRock, nos avisa que as mudanças climáticas devem trazer uma
“reformulação fundamental das finanças”.
Para onde eles
estão indo? Qual é a ligação entre a nova era digital e as
finanças? Por que a mudança climática é uma variável em
jogo?
Há anos, os capitais que controlam o sistema econômico
mundial vêm conduzindo um processo de digitalização e
financeirização da economia. A crise de 2008 revelou os níveis de
concentração e centralização do capital mundial em um punhado de
bancos e fundos de investimento, controlando a rede financeira
transnacional.
Esses mesmos atores financeiros fomentaram a
criação de “indústrias intensivas em conhecimento”,
desencadeando a chamada quarta revolução industrial. Tudo isso foi
acelerado com o isolamento causado pela pandemia de covid-19.
A partir daí, grande parte de nossas relações (econômicas,
políticas e sociais) passaram a ser mediadas pela virtualidade.
O
mundo está, portanto, passando por uma transformação estrutural.
Esses mesmos bilionários chamam isso de “transição tecnológica,
climática e socioeconômica”. Ninguém pode negar que essa
transição decorre do vertiginoso desenvolvimento das forças
produtivas da nascente revolução tecnológica e do surpreendente
salto na composição orgânica do capital, que permite a
digitalização, a virtualização e a automação dos processos
econômicos. Em suma, o salto na escala científico-tecnológica
promoveu um processo que está transformando profundamente as
relações sociais de produção.
Segundo um infográfico
elaborado em 2020 por Andrés Llorente, acadêmico que analisa o
mercado financeiro, três grandes fundos de investimento globais
(BlackRock, State Street e Vanguard) representam, juntos, 19,81% do
índice de ações industriais (Dow Jones) de Wall Street. O estudo
mostra, por sua vez, a presença de cada um desses fundos, em
proporções semelhantes, nas principais empresas de setores
estratégicos da indústria mundial.
Articulados em uma
complexa rede financeira, esses fundos concentram o controle de
setores estratégicos, como a conectividade 5G e 6G, inteligência
artificial, chips, semicondutores, dispositivos, plataformas de
serviços de internet, indústria aeroespacial, bio e nanotecnologia,
energia de transição e agricultura tecnológica (AgroTech).
Este
emaranhado financeiro e tecnológico configura um sistema baseado em
transformação digital, hiperconectividade, sistemas ciberfísicos,
além de robótica colaborativa e sensível. Todos esses
desdobramentos são decisivos para definir quem conformará a fração
do capital que acumula e detém o poder econômico no século XXI, já
iniciado.
Quais
projetos estão competindo por esta reconfiguração?
O
contexto pandêmico revelou, mais do que qualquer episódio ou
conflito, tudo o que está em jogo. Quemcontrolar esses setores
tecnológicos estratégicos vai definir quem será o grande vencedor
do século em curso.
Como a Guerra do Vietnã, as lutas de
libertação no terceiro mundo, a quebra dos acordos de Bretton Woods
e a conversão do dólar em moeda hegemônica, a crise do petróleo
de 1973, aentrada da China no capitalismo mundial a partir da
estratégia de Deng Xiaoping de “um país, dois sistemas”, a
ascensão da doutrina neoliberal com Reagan e Thatcher à frente do
sistema institucional anglo-americano e a dissolução da União
Soviética marcaram, como um todo, o fim da chamada “Era de Ouro”
do capitalismo pós-guerra. A crise global causada pela pandemia
iniciou a consolidação definitiva de uma nova fase do capital.
É
no marco desse capitalismo em sua nova fase digital que se
intensificam as lutas pela governança global, enquadradas na já
conhecida tensão entre Estados Unidos e China, mais como redes
financeiras e tecnológicas do que como Estados. Está se delineando
uma nova geopolítica mundial, com a mudança do centro de gravidade
para o eixo da Ásia-Pacífico.
Pode-se afirmar, em outras
palavras, que o centro de poder formado por uma nova aristocracia
financeira e tecnológica ultrapassou amplamente os Estados. A luta
intercapitalista, ou seja, a luta entre as diferentes frações do
capital para impor sua visão consubstanciada em um projeto
estratégico, não se restringe a limites territorialmente definidos
nos Estados, mas se constitui em uma rede que existe acima e apesar
deles.
Essa nova personificação se enfrenta em dois blocos
de poder, duas visões de mundo que expressam seus interesses em
programas políticos: o digital financeirizado da Huawei e o digital
financeirizado daAmazon. Esclarecemos, no entanto, que a complexidade
do comportamento desta realidade requer a superação de leituras
lineares para sua abordagem.
Esses dois blocos de poder
expressam seu interesse por meio de dois projetos estratégicos para
o mundo, com uma sede territorial nos Estados Unidos e outra na
China, também conhecida como “as duas rotas”.
Uma rota, a
do projeto digital financeirizado da Huawei, com sede na China, mas
com capitais globais e com grande influência do Partido Comunista
Chinês, lançou “A Nova Rota da Seda”, ou “Rota Digital da
Seda”, como a descreveu Xi Jinping: “uma proposta global de
integração em infraestrutura, economia e finanças”.
Depois
do chamado milagre chinês, sua escala não parou mais de crescer.
Agora, este projeto é baseado no plano de desenvolvimento para 2035,
elaborado pelo gigante asiático, que propõe aumentar o investimento
em setores de tecnologia cruciais, incluindo veículos inteligentes,
novos robôs, big data, investigação biológica e agricultura
molecular.
A outra rota, o projeto digital financeirizado da
Amazon, com sede nos Estados Unidos, encabeça a chamada “Rota do
Megabyte”, já anunciada por Trump em 2019. Seu sucessor, Joe
Biden, assumiu o projeto e lançou uma proposta de infraestrutura que
acrescenta, por exemplo, um investimento de 50 bilhões de dólares
para desenvolver a indústria de semicondutores. Em junho de 2021,
graças a uma iniciativa norte-americana, o G7 lançou o plano B3W ou
“Reconstruir Melhor para o Mundo”, um projeto direcionado a
nações da América Latina, Caribe, África e Indo-Pacífico.
Em
seu discurso ao Congresso em abril deste ano, Biden disse que
“estamos competindo com a China e outros países para vencer o
Século XXI”. No entanto, e ao contrário do bom senso e da agenda
pública, a disputa entre os Estados Unidos e a China não diminuiu o
investimento de capital dos grandes fundos de investimento globais
nos dois países. Ao menos no ano passado, aconteceu exatamente o
contrário.
Um informe da empresa de investigação Rhodium
Group, divulgado em fevereiro de 2021 pelo jornal britânico Financial
Times, mostrou a profundidade dos laços de investimento entre os
Estados Unidos e a China, além das estatísticas oficiais. Este
relatório afirma que “a dinâmica do capital supera em muito a
retórica competitiva que as duas potências podem apresentar em
termos geopolíticos, já que, apesar de todos os esforços do
governo Trump, os investimentos dos Estados Unidos na China só
aumentaram”, conclui.
Por exemplo, em setembro passado, a
Black Rock se tornou a primeira administradora de ativos estrangeiros
a operar um negócio de propriedade integral na indústria de fundos
mútuos da China, um negócio de3,6 trilhões de dólares. Os dados
mostram que a rede financeira tem capacidade de interpenetração e
controle além dos limites dos países.
Enquanto os dois
projetos acima mencionados desenham o futuro do planeta, os Estados
funcionam como cadeias de suprimentos. Suas funções são adquirir
dívidas, vender produtos, especular com títulos e, claro, construir
paliativos para as dolorosas condições de vida em que vivem as
grandes maiorias sociais.
De fato, as grandes figuras dessa
nova aristocracia financeira e tecnológica se confrontam entre si e
utilizam os Estados como instrumento a partir do qual sanções, leis
antitruste, controle de dados e listas negras de empresas são
implementadas como instrumentos para essa disputa.
Para
onde estão nos levando?
O
mundo que procuram impor inclui cidades inteligentes, interligadas
através de 6G, com o teletrabalho como modo de vida, a internet das
coisas, a digitalização absoluta da vida doméstica, do trabalho, a
vida educacional e social. Esses níveis de conectividade criam as
condições para um aumento da hipervigilância e do controle e
previsão de nossos comportamentos. Uma espécie de panóptico
foucaultiano em cada dispositivo.
Shoshana Zuboff, professora
emérita da Escola de Negócios de Harvard, descreveu em seu livro
“The Era of Surveillance Capitalism” como “as empresas
tornam-se capazes de influenciar e modificar o comportamento
individual e coletivo, em escala. Uma vez que controlam
espaços críticos de conexão e comunicação, conseguem impor uma
intervenção direta na autonomia humana”. Ela completa dizendo que
as empresas capturam nossos dados e nos devolvem “com mensagens
destinadas a ajustar, manipular e modificar nossas atitudes, minando
nossa própria capacidade de agir e pensar por nós mesmos”.
A
revolução tecnológica em curso afirma, por si só, que existem as
condições para resolver os grandes problemas da humanidade. Mas,
por outro lado, no Fórum Econômico Mundial de Davos, que aconteceu
em fevereiro de 2021, foram listadas oito previsões para o futuro,
entre as quais a primeira era que: “em 2030, você não terá nada,
mas você será feliz”.
Esta revolução do capital já
mostra suas consequências. Por um lado, a obsolescência cada vez
mais evidente dos modelos de produção e consumo, como é o caso da
energia fóssil, onde chega a ser considerada a aplicação de um
imposto sobre o carbono pela utilização deste tipo de combustível.
Uma crise que traz consigo o aumento dos preços da energia, a
expansão dos processos inflacionários e a escassez de alimentos e
produtos.
O aumento das desigualdades é outra consequência.
A concentração de riqueza não é uma novidade, mas a pandemia
aprofundou as desigualdades. O Banco Mundial estima que os surtos
sucessivos de covid-19 aumentaram o número de cidadãos que vivem em
extrema pobreza em 100 milhões, chegando a um total de 711 milhões,
a maioria vivendo na África e na Ásia. Os pobres do mundo
representam dezesseis vezes a população da Argentina.
Enquanto
isso, os 10% mais ricos da população concentram 76% da riqueza
mundial, conforme revelado pela Oxfam em seu relatório publicado em
10 de janeiro de 2020. Ou seja, cerca de 2 mil bilionários do mundo
têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas.
Só em 2020,
255 milhões de pessoas perderam seus empregos, e se espera que em
2022 haverá mais de 100 milhões de pessoas se mudando do seu local
de origem e solicitando asilo como refugiados.
As projeções
da OIT (Organização Internacional do Trabalho), em um relatório
sobre o “Emprego Mundial e Perspectivas Sociais: Tendências
para 2021” indicam que o déficit de empregos resultante
da crise global chegará a 75 milhões quando se tenha um balanço
final de 2021. Também se espera que esse índice caia para 23
milhões em 2022.
A correspondente escassez de jornada de
trabalho, que engloba a escassez de empregos e a redução de horas,
equivale a 100 milhões de empregos de tempo integral em 2021, e 26
milhões de empregos de tempo integral em 2022. Soma-se a esse
cenário os níveis persistentes de desemprego, subutilização da
força de trabalho e más condições de trabalho, dilemas que já
estavam vigentes antes da pandemia. O número de desempregados no
mundo em 2022 está projetado em 205 milhões, bem acima dos 187
milhões de 2019.
Em apenas nove meses, as mil pessoas com as
maiores fortunas do mundo já haviam recuperado as perdas econômicas
causadas pela pandemia de covid-19, enquanto as pessoas mais pobres
poderiam precisar de mais de uma década para se recuperar dos
impactos econômicos, segundo um relatório da Oxfam publicado em
janeiro de 2021.
Na América Latina e no Caribe, 20% da
população concentra 83% da riqueza. O número de bilionários na
região cresceu de 27 para 104 desde 2000. Em nítido contraste, a
pobreza extrema está aumentando. Em 2019, 66 milhões de pessoas –
ou seja, 10,7% da população – viviam em extrema pobreza, segundo
dados da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o
Caribe).
A política do medo e da incerteza também se
estabeleceu como uma das consequências que terão maior impacto a
longo prazo. Em um estado de guerra multidimensional, o controle de
nossos corpos e mentes torna-se um objetivo estratégico. O medo se
torna uma arma poderosa de controle social. A mídia e as redes
sociais afetam a psique coletiva, desarticulam o tecido social e
manipulam a opinião pública.
Depressão, pânico, ansiedade,
angústia, fobias, são os diagnósticos frequentes que, em 2020,
impulsionaram o aumento do consumo de psicofármacos. Somente na
Argentina, durante a pandemia de covid-19, o clonazepam e o
alprazolam figuraram entre os 15 psicotrópicos mais vendidos no
país, e “os pedidos pelos produtos desse grupo farmacológico
aumentaram 6,5%, ou seja, o mercado foi ampliado em 6,9 milhões de
unidades”.
É evidente que as consequências desse processo
de concentração econômica afetam de forma significativa,
principalmente as classes subalternas, cada vez mais alienadas, mais
separadas de sua produção.
A
máscara que não deixa ver
A
vida concebida em termos de consumo, não só de substâncias, mas
também de mercadoria, impõe o ideal de felicidade em torno da posse
de dinheiro, mostrando o paradigma da ostentação, a
“felicidade”exposta em fotos com “filtros” nas redes
sociais.
É claro que essas condições são acessíveis
apenas a uma pequena minoria. Não poder realizar esse sonho faz com
que as pessoas adoeçam, se desumanizem e se frustrem enormemente,
levando a comportamentos como o vício, a banalização, o
individualismo e uma série de valores que revelam até que ponto é
o capitalismo que está doente.
A relação entre pessoas
(entre corpos) é dominada pela mercantilização. Marx fala do
dinheiro como uma forma que “oculta, em vez de revelar, o caráter
social dos empregos privados e, portanto, as relações sociais entre
os trabalhadores individuais”. Desse modo, realiza-se a
manifestação fetichista do capitalismo, onde, ao não observar que
os bens são produto de uma relação social, eles substituem o
sujeito. O objeto mercadoria é personificado, separando o sujeito do
objeto.
Basta, portanto, obter o objeto, como se fosse algo
mágico, místico, que se consegue com dinheiro, e que, agora, é
levado até a sua casa pelas plataformas de comércio eletrônico.
Nessa relação, o indivíduo é apenas a personificação do
dinheiro. E tudo isso gerando uma aparente sensação de “liberdade”.
Uma realidade que nos parece mascarada, mistificada, oculta. Por trás
desse sistema de relações, o “sentimento” de igualdade e
liberdade se esvai, e a coerção surge como elemento central para a
reprodução do sistema.
É
irreversível?
Com
o desenvolvimento alcançado a nível científico e tecnológico, a
humanidade poderá viver na prosperidade. As pessoas podem usufruir
de dignas condições sociais, ambientais, sanitárias, educacionais
e de trabalho, tecendo redes territoriais, respeitando a natureza e
os demais, consolidando outra forma de desenhar a sociedade
humana.
Uma comunidade organizada que aproveita a liberdade
potencial conferida pelo desenvolvimento tecnológico atual, onde o
trabalho vivo necessário (capital variável) para a produção da
riqueza social é cada vez mais reduzido. Não é por acaso que
centenas de centrais sindicais em todo o mundo lutam por jornadas de
trabalho reduzidas e semanas de trabalho inferiores a quatro
dias.
No entanto, os processos de acumulação e concentração,
inerentes ao desenvolvimento do capitalismo como sistema, só são
possíveis à custa da fome e do sofrimento de grandes maiorias. O
capital sabe que a exploração econômica é a principal variável
da dominação política. A revolução tecnológica acelera o
processo de apropriação da riqueza por aqueles poucos bilionários,
algo que o discurso “libertário” contemporâneo coloca como
“digno”, “natural” e “inevitável”, e, portanto,
impossível de modificar. Mas, a história é sempre produto da ação
de homens e mulheres.
Isso possibilita o desenvolvimento de
uma individualidade comunitária, coletiva, geradora de consciência
social e promotora de crises com a matriz da “sede por dinheiro sem
dinheiro”, criando condições para que essa “sede” seja
coletivizada e rompa os laços místicos, mágicos apreendidos e
impostos. Observar o desenvolvimento disso tem a ver com a habilidade
de romper com o sentido comum.
Os corpos predispostos ao
coletivo, à comunidade, estabelecem uma relação
material com a realidade. São formados como sujeitos, estabelecendo
a relação com os objetos do mundo, não mais mediados pela
necessidade dos outros de ser um corpo que produz e consome, mas pela
necessidade organizada de ser um corpo que produz poder, de
transformar as relações sociais de produção, de desvendar suas
forças místicas e deixar a máscara cair de uma vez por
todas.
*Paula
Giménez é psicóloga, mestra em Segurança e Defesa Nacional, e em
Segurança Internacionale Estudos Estratégicos. Matías Caciabue é
cientista político e professor da Universidade de Hurlingham. Ambos
são investigadores do Centro Latino-Americano de Análise
Estratégica (CLAE)
*Publicado
originalmente em estrategia.la |
Tradução de Victor Farinelli