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«.... Entre as palavras e as ideias detesto esta: tolerância. É uma palavra das sociedades morais em face da imoralidade que utilizam. É uma ideia de desdém; parecendo celeste, é diabólica; é um revestimento de desprezo, com a agravante de muita gente que o enverga ficar com a convicção de que anda vestida de raios de sol.
Porquê tolerar? Parece-me ainda pior do que perseguir. No perseguir há um reconhecimento do valor; dá-me a impressão de que os morcegos, aliás bichos muito simpáticos, se pudessem, perseguiriam a luz; porque a luz brilha e tão ampla se alarga pelo mundo que até os pobres mosquitos nela têm defesa. No tolerar, somos nós os e consentimos que haja, lá muito abaixo de nós, uns mesquinhos seres insignificantes que não têm nem a nossa beleza, nem a nossa inteligência, nem a nossa imortalidade, nem se alimentam como nós de ambrósia e néctar, nem ouvem como nós a música de Hermes, na sua lira roubada. E quando nem sequer temos a certeza de que os outros nos sejam inferiores; inferiores porquê, inferiores em quê? Não sabem matemática? Talvez saibam viver, que é mais difícil. Não entendem filosofia? talvez sonhem, o que é mais belo. e talvez respondam à nossa tolerância com um amor de que nós, apolíneos, não seremos capazes. Em trezentos milhões de anos que vivêssemos não acumulávamos o tesouro de amor que eles às vezes dispensam num segundo.
Assim como você não ama quando diz amabilidades ou graças às mocinhas, também não ama quando se dispensa de discutir, porque sente o adversário como inferior a você; então tolera-o, com um sorriso. Não é amar as raparigas tratá-las como seres que não entendem senão as suas lisonjas e as suas anedotas; só as amará e só elas o poderão amar a você, para além das enganadoras aparências, quando a sua alma se lhes abrir , e com todos os seus problemas, todas as suas angústias, toda a sua seriedade, toda a sua gravidade humana. E a tolerância, pelo mesmo defeito, é em você, quando muito, uma indiferença; às vezes, no momento em que uma centelha ameaça brilhar-lhe no espírito, há uma tentativa de se pôr ao nível de uma tentativa desajeitada e ridícula, como a de um urso que dança.
Mesmo quem não estude filosofia vale muito, amigo Luís; mesmo quem não entende as funções exponenciais vale muito, amigo Luís; mesmo quem não vale nada vale muito. E não entendo os seus ares superiores. Pois não aprenderam eles a falar, a escrever cartas, não perceberam eles os mecanismos dos correios, não sabem eles verificar o troco dos homens dos eléctricos? Não têm eles, para viver, a coragem que lhe faltará um dia, talvez, a você, filósofo e sábio? Não têm eles, às vezes, a sério, com as mulheres e amigos e as filhas, as conversas que você seria incapaz de sustentar? Não lhes será possível admirar o Luís, mesmo que o não entendam, ou então, o que seria melhor para você, porque mais educativo, não serão eles capazes de o perseguir, mesmo sem também o entender?
Não os amar vem da inferioridade sua, não da inferioridade deles. Eles são amáveis, podem ser amados; você, porém é estreito, e não os ama. Depois disto, como se fizesse uma grande concessão, declara que os tolera.
E nem responde à verdade que os tolera; porque o Luís, com esse bocadinho de filosofia que já aprendeu nos compêndios, nas enciclopédias e nas revistas e com a leitura de um diálogo de Platão, o que você apresenta como luxo, e a que faz restrições (tomara você entender que não entende Platão!), já me vai tomando uns ares irritantes de filósofo superior e agressivo. Já declara que o não compreendem. Tome cuidado; a comédia espreita-o. Mas inquieta-me muito o que você poderá ser daqui a uns tempos: saberá bem o Descartes e o Kant, será capaz de transpor Spinosa em Leibniz, como um exercício musical de jovem virtuose, e varrerá todas as literaturas filosofantes da nossa época com a grande, a sólida vassoura da filosofia clássica (punhamos que há uma filosofia clássica). Derrubará todos os argumentos. Em tudo pelejará, para convencer.
(...).
Você tem que ir à frente do bando, mas não muito à frente para que não percam a luz. E nada de altivez, nada de desprezo, nada de vaidades absurdas, em toda a parte absurdas, mas totalmente incompreensíveis num filósofo. Seja sereno, seja efectuoso, se lhe pedirem que explique, explique trinta vezes, com a mesma calma e o mesmo interesse da primeira; se lhe puserem dogmas, não contraponha dogmas; se o não perceberem a você, perceba você os outros. Quando um modelo de vida lhe parecer bom, siga-o, mas, por favor, não queira que os outros também o sigam; o prégador é intolerável (quero eu dizer: muito difícil de suportar).
(...).
Seja como for, não ganhe dobras: você não é um papel, é um homem. Fluido, adaptável, maleável, humano, (...). Flexível e rijo, como o aço.
Em: da Silva, Agostinho, SETE CARTAS A UM JOVEM FILÓSOFO, Ulmeiro, 1990.
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A SACHOLA nasceu em junho de 2023 e partiu da vontade coletiva de criar um espaço de encontro entre quem habita o território barrosão e quem com ele se solidariza.
Generosamente, foi-nos cedido uma das salas da antiga escola primária de Covas do Barroso. Aqui, organizaremos sessões de cinema, concertos, reuniões, exposições, residências artísticas, e albergaremos gente vinda de todos os cantos do mundo para lutar lado a lado com as populações barrosãs. Foi também aqui que mantivemos um centro de informação em permanência, com documentos, panfletos, zines, flyers, cartazes e jornais sobre a luta.
Este foi um espaço importante, onde podemos conviver, aprender e experimentar. Foi sobretudo um espaço que, durante ano e meio, serviu de apoio a muita gente que ajudou na luta contra as mineração - foi na escola que dormimos, que cozinhámos, que descansámos.
Agora, sentimos a necessidade de criar um novo espaço , onde podemos continuar a fazer tudo isto, de forma autônoma. Queremos que este novo espaço seja ponto de encontro, de convergência e de acolhimento para todas as pessoas que querem cuidar do Barroso.
Já temos um espaço à nossa espera . Mas é uma casa que precisa de várias obras, amor, cuidado, rebeldia e criatividade.
Para erguer esta casa, apelamos à sua solidariedade e generosidade . Para começar, pedimos-vos que continuem a organizar benefícios nos nossos espaços e territórios. Dentro de algumas semanas, também iniciaremos uma campanha de arrecadação de fundos . Em breve, organizaremos igualmente as primeiras jornadas de construção .
Sendo uma vontade antiga, foi o momento atual que acelerou esta necessidade de criar um espaço. A empresa britânica Savannah Resources está a entrar em força nas aldeias de Covas do Barroso, Romainho e Muro, ferindo as águas e as terras, e trazendo os seus trabalhadores para estas aldeias. Até à data, já ocupavam três casas .
Esta entrada em força é uma tentativa de penetrar num território em que o projeto não é aceito . Em maio de 2023, a Agência Portuguesa do Ambiente revelou que a empresa realizava mais prospeções em terrenos privados e baldios. Esta condição é essencial para que uma empresa possa apresentar o RECAPE (Verificação da Conformidade Ambiental do Projeto de Execução) e receber a licença ambiental final. Não tendo acesso aos terrenos para realizar estas prospeções, a empresa requereu um "servidão administrativo", que lhe foi concedido pela Direção-Geral de Energia e Geologia, a 6 de dezembro de 2024. Este serviço dá o direito à empresa de entrar e trabalhar em terrenos privados e baldios para realizar essas prospeções. Este serviço - amplamente contestado pelas populações e associações locais - foi suspenso em 6 de fevereiro de 2025, graças a uma providência cautelar interposta por três particulares. Contudo, essa suspensão durou apenas duas semanas, pois o Ministério do Ambiente apresentou uma "resolução fundamentada", argumentando que a realização de prospeções é do "interesse nacional". Assim sendo, desde 24 de fevereiro de 2025 que a empresa retomou os seus trabalhos no terreno .
Queremos garantir que a população do Barroso não esteja sozinha nesta luta contra os delírios extrativistas. Queremos garantir que o Barroso - região atual como Património Agrícola Mundial pelas Nações Unidas - não seja esventrado para que uns poucos lucrem com essa destruição. Queremos viver num mundo de florestas densas, hortas abundantes, rios limpos, águas puras; um mundo onde pessoas livres convivem em harmonia com outras espécies.
Um mundo assim começa por criarmos espaços onde seja possível sonhá-los.
Ajude-nos a erguer esta casa.
Mais novidades em breve.
Até já,
Uma Sachola
Contatos:
E-mail: asachola@riseup.net
Telegrama: @asachola
À conversão de áreas de floresta em áreas urbanas, turísticas ou industriais, têm vindo a somar-se sucessivas pressões, desde a construção de novas infraestruturas (ex: rede elétrica, autoestradas e barragens), implementação de grandes faixas abertas de corte e gestão de combustível, propagação de grandes incêndios, prática generalizada de gradagem junto às árvores, e o uso e abuso de cortes rasos que, devido à ausência de fiscalização sobre as autorizações de corte, proliferam impunemente perante a lei, inclusivamente dentro das áreas protegidas do Sistema Nacional de Áreas Classificadas (SNAC).
Com esta carta pretendemos estimular o debate público sobre os problemas sistémicos da floresta portuguesa, apontando aquelas que nos parecem ser as três grandes prioridades a ter em conta para conseguir uma gestão verdadeiramente sustentável, explorando quais os fatores que atualmente puxam pela sua degradação, e propondo soluções de fundo.
1 - Fiscalizar, rever a lei e gerir a paisagem
Face aos sucessivos casos de abates abusivos em espaço público e privado, assinalamos a urgência do aumento de meios e poder de fiscalização do ICNF e GNR, a par da revisão da lei de corte (Decreto-Lei nº 31/2020), como passos essenciais para a consolidação de uma verdadeira proteção física e jurídica das árvores e florestas no nosso país.
No que diz respeito às normas aplicáveis às Faixas de Gestão de Combustível (FGC), defendemos a sua revisão e uma consulta pública prévia à aplicação no terreno do novo regulamento (Decreto-Lei nº 82/2021). Apesar de essa aplicação ser apontada para 2025, sociedade civil, associações do setor florestal, ONGA e a academia não foram ouvidas, tendo elas elementos para melhorar as diretrizes de uma forma abrangente e construtiva, neste que é um regulamento estruturante para o desenvolvimento do nosso território.
Propomos ainda ficarem previstas na lei contraordenações muito graves, com coimas elevadas, para quem realize cortes injustificados e que não estejam de acordo com o que venha a ser definido no novo regulamento de normas técnicas de gestão de combustível anteriormente citado.
A vulnerabilidade crescente que se tem feito sentir nas últimas décadas face a grandes incêndios e outros fenómenos climáticos extremos no país, demonstra a urgência de se aplicar um outro ordenamento do território (ex: com a limitação de novas plantações aos seus sítios mais adequados, e minimizando o cruzamento e impacto da rede elétrica nas áreas florestais), da regulamentação e adoção generalizada de uma silvicultura mista e de cobertura contínua, e do apoio estrutural e inabalável do Estado ao mosaico da paisagem (com agrofloresta, pastagens, áreas de renaturalização/rewilding e florestas de conservação). Sem isso, os portugueses apenas podem esperar uma floresta autóctone cada vez mais fragmentada e frágil, maior área de monoculturas e matos em contínuo, incêndios cada vez mais recorrentes e incontroláveis, inundação e distorção do mercado com madeira queimada, custos crescentes tanto da reparação de estragos após incêndio como da abertura de faixas, a desertificação, e, entretanto, o despovoamento do território.
2 - Dar novo rumo à produção florestal
A indústria da madeira de pinho estará a consumir anualmente à volta de 4 milhões de m3 de rolaria descascada, sendo mais valorizada a madeira verde de “corte final” (também designado “corte raso”), com valores de mercado entre os 35 a 45€ por tonelada. Deste total, 20% estarão a ser destinados à produção de pellets, 5% diretamente para centrais a biomassa, e os restantes 75% para fabricação de postes e varas tratadas, serração, painéis de madeira e papel de embalagem.
Olhando para o setor energético vemos que atualmente existem já 23 centrais termoelétricas a biomassa e 26 fábricas de transformação de pellets amplamente distribuídas pelo território, e que estarão a consumir desta madeira. Segundo os dados oficiais, as centrais estarão neste momento a utilizar cerca de 45% de resíduos agrícolas e florestais na sua produção de eletricidade e calor (seja dedicada ou em cogeração), e no consumo doméstico e de serviços esta utilização de resíduos estará já próxima dos 55%, sendo considerada uma fonte de energia renovável. Porém, admitamos que o seu processo de produção e queima não é nem mais limpo nem se baseia numa matéria-prima que tenha a renovação rápida o suficiente para ser verdadeiramente sustentável, e desse ponto de vista é preocupante constatarmos que em 2022 esta fonte chegou a representar 47% do total de energia consumida em Portugal (33% térmica + 14% elétrica).
Também em 2022, as 6 maiores fábricas de produção de pellets no país (situadas na região Centro, e com uma capacidade total instalada superior a 760 mil ton/ano) exigiram um consumo de 1,4 milhões de toneladas de madeira, da qual 75% de rolaria e apenas 25% de fontes secundárias (ex: sobrantes agrícolas e florestais ou subprodutos de serração). Sendo que, apesar de estas empresas afirmarem que apenas utilizam biomassa residual, a totalidade dos sobrantes estará na realidade a ser utilizada apenas como combustível no processo de secagem da estilha produzida a partir da rolaria e não como matéria-prima para os pellets.
Tendo em conta as limitações à extração e queima já impostas pela última revisão da Diretiva de Energias Renováveis da UE (2023), as dúvidas que subsistem sobre as florestas de origem, e a prática generalizada de cortes rasos, vemos este tipo de utilização da rolaria com grande preocupação, reforçando o apelo a uma regulação mais robusta e ao reforço dos meios de fiscalização do setor.
Ainda segundo dados de 2022, do total de pellets produzidos, 43% são exportados para alimentar centrais termoelétricas no Norte da Europa, sendo a central DRAX do Reino Unido o maior cliente individual e esse país o maior mercado de exportação da biomassa florestal portuguesa. Tanto essa como as centrais e fábricas portuguesas estão na sua grande maioria dependentes da subsidiação direta dos Estados e de fundos da União Europeia para subsistir. Fundos esses que poderiam ser alocados à transformação da paisagem, e ao desenvolvimento e instalação de outras fontes de energia mais limpas e sustentáveis!
Acresce que nas ações de (re)arborização a sementeira é frequentemente negligenciada a favor da plantação, estando estas plantas mais sujeitas a conter pragas e doenças dos viveiros de origem, a provirem de biogeografias distantes e com genética menos bem adaptada ao local, e a precisarem de rega em viveiro e mais apoio nos primeiros anos pós-instalação, resultando assim muitas vezes em taxas de sobrevivência baixíssimas (<5-20%) e num desperdício de tempo e recursos.
Os cortes rasos para utilização na indústria de pellets e centrais de biomassa são claramente um fator que vem contribuir e potenciar ativamente esse saldo negativo de emissões, favorecendo a erosão do solo, o crescimento de matos baixos e outras espécies pioneiras pirófitas, e um pinhal mais jovem e vulnerável ao ataque de pragas, doenças e fenómenos climáticos extremos.
3 - Inverter fatores de degradação
É com base em todo o cenário descrito nos capítulos anteriores, que recebemos com grande consternação as declarações recentes da Sra. Ministra da Energia e Ambiente, Maria da Graça Carvalho, no final da conferência “Portugal Renewables Summit” da APREN[1], afirmando que o seu ministério está neste momento a “preparar novos projetos relacionados com a biomassa, com um grande foco no aproveitamento das ‘limpezas’ das áreas florestais”, “tendo como princípio não ter tarifas garantidas” mas admitindo que em algumas situações irá continuar a “auxiliar, remunerando os serviços que são prestados à sociedade e ecossistemas florestais”, pesando sempre “o benefício que essa central produz em relação à floresta e sua ’limpeza’”.
Não sugerimos com isto que Portugal deva ficar às escuras, energeticamente dependente de combustíveis fósseis vindos de países terceiros, ou a ser arrasado ciclicamente por grandes incêndios. Apelamos sim a que se procurem soluções alternativas que não delapidem ainda mais as florestas e seus serviços de ecossistema. Se bem ordenadas e geridas, serão elas a verdadeira chave para prevenir os grandes incêndios, e ajudar a contrariar as restantes crises do clima, biodiversidade, solos, poluição, saúde pública e produção alimentar.
Para esse efeito, sugerimos o envolvimento do BIOREF - Laboratório Colaborativo para as Biorrefinarias[15], um consórcio português de 10 grandes empresas e PMEs com 10 instituições académicas portuguesas que dominam esta matéria, encomendando-lhes um estudo estratégico sobre as potencialidades e entraves atuais à criação e integração de fitobiorreatores e biorrefinarias em Portugal, e o seu enquadramento em próximas versões do já lançado “Plano de Ação para o Biometano 2023-2040”.
4 - Alinhamento das nossas propostas com estratégias e planos nacionais
Estas propostas visam evidenciar os esforços desenvolvidos por diversos projetos públicos e privados, e como no seu conjunto podem ser úteis para complementar e potenciar os esforços do governo português. Alinhando as suas políticas internas com as melhores práticas e os vários objetivos, estratégias e planos europeus e internacionais, o governo português poderá responder com maior eficácia às necessidades de gestão interna mais urgentes (ex: prevenção de incêndios e cheias, perda de solo fértil e biodiversidade, despovoamento do interior e alta pressão no litoral, e todos os custos financeiros e estruturais que estes fenómenos acarretam para o erário público) ao mesmo tempo que dá o seu contributo para as causas comuns da comunidade internacional e solidifica a sua posição como uma referência na transição para uma bioeconomia limpa e circular.
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Subscritores:
Movimento FAIXAS VIVAS
Movimento de União em Defesa das Árvores - MUDA
Associação de Promoção ao Investimento Florestal - ACRÉSCIMO