segunda-feira, 1 de julho de 2024

O General do Exército Fantasma - Ismail Kadaré,


 

Capítulo V

Voltavam a partir, no meio de uma chuva miudinha. Havia semanas que percorriam terras rudes, aldeias distantes. Atrás deles o camião que transportava os operários e as ferramentas. Pelo caminho, camponeses vestidos de lã grosseira, passavam a pé, a cavalo ou pendurados em camiões. O general observava atentamente o relevo do solo. E punha-se a imaginar a táctica que os exércitos tiveram de aplicar no decurso de todas as guerras de que o país foi teatro.

Num quiosque não longe do centro, comprimia-se muita gente diante dos jornais.

«Os albaneses lêem muitos jornais», disse logo o general.
O padre, saindo do seu torpor, respondeu:
«É porque se interessam muito pela política. Depois do desentendimento com a União Soviética, ficaram isolados na Europa.

- Como sempre...
- Agora estão submetidos a um bloqueio.
- Um país tão pequenino e um bloqueio. É esquisito.
- É verdade. E vão ter dificuldades para se aguentarem.
- Povo do diabo, disse o general. À primeira vista não se consegue dominá-lo pela força. Talvez ele se renda à beleza.

O padre pôs-se a rir.
- Porque é que você ri?
Mas o padre não respondeu e continuou a rir.
O general deixou-se mais uma vez prender pelo sombrio da paisagem escondida no nevoeiro, donde sobressaiam os flancos escalvados das montanhas e pedras grandes e pequenas que emergiam do solo.


(...)

Pelo meio dia chegaram à planície, a uma aldeia de casas alinhadas dos dois lados da estrada. Tinha parado de chover, e como era hábito, as crianças rodeavam o automóvel, correndo de todos os caminhos que iam dar à rua principal. O camião parou alguns metros atrás e os operários, uma vez descidos, trataram de desentorpecer as pernas.

Os camponeses que passavam, paravam para olhar os estrangeiros. Nenhum deles parecia ignorar a razão desta visita. Lia-se-lhes nos olhos, sobretudo nos das mulheres. O general já conhecia aquele tipo de expressão indecifrável dos albaneses: «Nós lembramos-lhes a invasão, pensava ele, e quanto mais avançamos, quanto mais encarniçados foram os combates, mais os seus rostos são enigmáticos».

No limite da aldeia, num terreno em declive, estavam numerosos túmulos. O cemitério era cercado dum muro baixo, que em certos pontos estava demolido. «Os mortos deste cemitério, pensou o general, são nossos». Cobriu-se com um longo impermeável.

(...)

O perito albanês procedeu às formalidades habituais. Mais longe, havia outros túmulos, mas muito mais perto da aldeia, todos eles encimados por uma estrela vermelha. O general reconheceu imediatamente o «Cemitério dos mártires», nome que os habitantes dão às sepulturas dos patriotas. Neste cemitério, sete italianos estavam enterrados ao lado dos albaneses. E o general pôde ler nas lápides ornadas de uma estrela vermelha, com erros ortográficos e tudo, o nome daqueles soldados, a sua nacionalidade, a data da sua morte, a mesma para todos. «Estes soldados estrangeiros morreram como heróis batendo-se ao lado dos «partisans» albaneses contra a força do Batalhão Azul, em 17 de Março de 1943».


Ismail Kadaré, O General do Exército Fantasma, Tradução de Carlos de Miranda, Edição Ispagal, 1976, pp. 41 e 43)

 

As pretensas "grandes culturas" desprezam a literatura e a cultura dos pequenos povos. 

Este romance transporta-nos para uma realidade histórica, vivida pelo povo albanês, que devemos revisitar...  

Esta é a nossa singela homenagem a um escritor que nos deixou mas perdura, através da sua obra, enquanto houver quem a leia.