§0. Uma forte aposta no hidrogénio é bem notória no setor energético. O governo, as grandes empresas e uma parte da sociedade civil estão a apresentá-lo como a solução para tudo: para a transição energética, para criar empregos, para abastecer gás, para alimentar os transportes, para descarbonizar a indústria… Em 2020, foi lançada a Estratégia Nacional para o Hidrogénio. Existem vários projetos que estão na corrida aos fundos públicos para apoio financeiro.

A discussão pública à volta do hidrogénio tem tratado a crise climática como um assunto técnico: agora que encontrámos a forma de comercializar hidrogénio em grande escala, estamos salvos. Uma conclusão implícita deste discurso é que chegámos a este ponto da crise climática por falta de soluções técnicas até agora. A mensagem é clara: agora que temos a tal solução, a business-as-usual vai funcionar e vai salvar o clima.

Este artigo vai analisar as tecnologias de hidrogénio no seu contexto socioeconómico e faz parte de um Estudo de Caso sobre Transição Justa em Sines que está a abordar outros temas e infraestruturas (existentes e planeadas) em artigos separados.

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§1. O que é? O hidrogénio é o elemento mais abundante no universo. Não tem cor, cheiro nem sabor. Não é tóxico, e é muito inflamável.

Como é muito comum, pode-se produzir hidrogénio a partir de muitas coisas. A forma mais comercializada neste momento é tirá-lo de moléculas de água (H2O), separando o hidrogénio e o oxigénio. Então, o hidrogénio não é uma fonte de energia, é mais uma forma de guardar energia produzida por outras fontes. A regulamentação atual permite identificar a fonte no nome que se dá ao produto. O hidrogénio verde é produzido por eletrólise via energias renováveis; o hidrogénio azul é produzido utilizando gás fóssil ou biomassa com CO2 capturado; o hidrogénio cinzento é produzido via combustíveis fósseis.


Em comparação com a energia que se guarda com o hidrogénio, gasta-se muita energia para obtê-lo. Ainda pior é o armazenamento: o hidrogénio é muito instável e altamente inflamável, sendo, por isso, preciso armazená-lo em temperaturas muito baixas em contentores particularmente fortes. Gasta-se muito energia a arrefecer o hidrogénio e manter as temperaturas baixas. Uma aposta no hidrogénio é uma aposta num aumento drástico de produção energética.

A pergunta que pode surgir é que, se vamos produzir tanta energia, porque é que não podíamos, então, usá-la diretamente. A resposta é direta: porque, se fosse assim, as empresas de combustíveis fósseis não otimizariam os seus lucros.

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§2. Para que serve?quatro setores em que o hidrogénio pode ser utilizado. Alguns usos são completamente desnecessários, outros, controversos, e outros serão essenciais para descarbonizar a economia.

§2.1. Na indústria, há várias formas consideradas pelas empresas.

Uma é que as fábricas têm fornos próprios para queima direta de combustíveis fósseis para atingir altas temperaturas, o que pode ser necessário, por exemplo, na indústria de vidro. Substituir os combustíveis fósseis por hidrogénio é um dos controversos sobre a necessidade real, porque altas temperaturas são atingíveis diretamente pela eletrificação ou por energias renováveis nas tecnologias existentes. Introduzir um elemento intermédio no processo reduz a eficiência.

Por outro lado, nos processos industriais de produção de aço ou amónia, aparece o CO2 como um subproduto da reação química. Aqui, não há combustão, mas há emissões de gases com efeito de estufa. É possível trocar o CO (monóxido de carbono) por hidrogénio e descarbonizar o processo.

Neste momento, os processos industriais são 11% das emissões nacionais, mas se queremos aumentar drasticamente a rede ferroviária então vai ser preciso produzir aço e isso implicaria abrir novas fábricas de ferro e aço. Por outras palavras: mesmo se cortássemos a procura para o aço e a amónia drasticamente, haveria também um aumento estrutural que vai assistir essa redução. Portanto, a descarbonização deste setor vai ter de envolver algum componente tecnológico e, atualmente, a única opção viável é a utilização de hidrogénio.

§2.2. Nos transportes, deve ser fora de questão tentar utilizar hidrogénio para carros individuais, pequenos veículos ou comboios. Comboios e pequenos veículos são facilmente eletrificáveis, e devemos reduzir o uso dos carros individuais ao máximo e eletrificar o resto. Existe alguma discussão técnica sobre a possibilidade de usar hidrogénio para camiões e autocarros. Parece, por agora, que a eletrificação seria mais eficaz e eficiente.

Contudo, os grandes barcos e os aviões não têm outra solução técnica sustentável, neste momento, que não seja p hidrogénio.1 Reconhecendo a necessidade de localização de produção e de redução do comércio internacional, devemos também aceitar que alguma aviação e navegação marítima vão continuar a existir ao longo da transição e também no fim da transição. Para isto, o hidrogénio parece essencial. Em Sines, isto é particularmente importante por causa do porto internacional.

§2.3. Na produção energética, o hidrogénio só pode ser um subproduto. Ou seja, é extremamente ineficaz tirar eletricidade da rede para produzir hidrogénio, mas, quando há um excesso de eletricidade, pode ser interessante aproveitá-lo para armazenar em hidrogénio. (Isto pode acontecer por causa das oscilações de produção renovável, mas também pode acontecer por alterações da necessidade ao longo de ano)

§2.4. Nos edifícios é que o hidrogénio faz menos sentido. A rede de gás consegue receber só uma pequena percentagem de hidrogénio com o gás fóssil (por causa da instabilidade que referimos antes) e este é para acabar via eletrificação. A única forma razoável de introduzir hidrogénio, na equação, é haver uma rede de aquecimento com um excesso temporário, que, por sua vez, pode ser transformado em hidrogénio. Isto podia ser importante para densas zonas urbanas e para a indústria, mas teria sempre um impacto residual.


Tudo isto só faz sentido se estivermos a falar de hidrogénio verde. Hidrogénio azul e cinzento só servem para fortalecer a presença dos combustíveis fósseis no sistema energético.

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§3. A Estratégia Nacional para o Hidrogénio (EN-H2) prevê que, em 2030, o hidrogénio deva cobrir 1,5-2% do consumo energético, 2-5% da procura energética da indústria, 3-5% da procura energética da navegação marítima doméstica, 1-5% da procura energética de transporte terrestre e 10-15% do gás na rede nacional de gás. Isto implicaria, de acordo com a Estratégia, uma capacidade de eletrólise de 2-2.5 GW.

Em algumas partes da Estratégia, refere-se a hidrogénio verde mas nem sempre. Tendo em conta a relevância técnica do hidrogénio em cada um das áreas (ver §2), a Estratégia parece ter o foco contrário. Esta escolha é fácil de explicar: antes da publicação da Estratégia, o Secretário de Estado da Energia, João Galamba, teve 27 reuniões, das quais 22 foram com empresas, incluindo, mas não limitadas a, TAG Energy, Dourogás, Voltalia, Akuo Energy Group, LightSource BP, EDP, REN, Galp, Prio Energy, Vestas, Akuo e Trustenergy. (Depois da publicação, também se reuniu com a Endesa, Iberdrola e Allianz). Das mais de 50 reuniões, nenhuma foi com membros da comunidade científica, nem estiveram presentes membros da sociedade civil. (Houve reuniões com as embaixadas Holandesa, Alemã, Japonesa, Canadiana e Norte Americana.) Portanto, a Estratégia Nacional para o Hidrogénio a em conjunto com as principais empresas energéticas em Portugal.

O resultado deste processo é que o foco da Estratégia não é a transição energética mas a expansão energética. Por um lado, foram escolhidas áreas de atuação que sejam menos relevantes. Por outro lado, foi assinado um memorando de entendimento entre Portugal e os Países Baixos para exportação de hidrogénio verde, para qual o Porto de Sines serviria como porta.

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§4. Em Sines, existe uma quantidade devastadora de projetos em discussão, que incluem produção, transformação e armazenamento e que estão interligados com a/ligados à produção energética.

Como abordámos num outro artigo, há uma corrida por causa do Fundo para uma Transição Justa, que vai financiar diretamente 74 milhões de euros de investimento em Sines. A União Europeia tem, ainda, outros fundos que foram desviados para projetos de transição energética. Em Sines, sendo uma das três regiões em foco em Portugal, o número de projetos na comunicação social pode dever-se ao hype e, por isso, pode não significar a realização dos mesmos.

§4.1. A Estratégia Nacional para o Hidrogénio previa um consórcio de hidrogénio verde, H2 Sines, do qual, entretanto, a EDP, Galp e REN saíram, mas o governo está confiante que esta descoordenação faça surgir mais projetos. Ainda em 2020, uma seleção de 30 mega projetos concorreram para a lista de Projeto Importante de Interesse Europeu Comum (Important Projects of Common European Interest) para o hidrogénio.

§4.2. Talvez o consórcio mais consolidado neste momento é o GreenH2Atlantic, que inclui a EDP, Galp, Engie, Bondalti, Martifer, Vestas e Efacec. A empresa coordenadora do consórcio é a EDP Renováveis SA, sediada em Espanha.

O projeto prevê uma capacidade de produção de hidrogénio que chegaria a 1 GW até 2030, acompanhada por 1,5 GW de capacidade renováveis para alimentar a produção, ou seja, fotovoltaicos montados só para produzir hidrogénio.

GreenH2Atlantic vai arrancar em 2023 e já recebeu financiamento de 30 milhões de euros para um eletrolisador de 100 MW via Horizon 2020.

§4.3. Existem mais ideias em circulação.

Há uma menção em passagem de se utilizarem os terrenos da central termoelétrica para produção de hidrogénio, mas, por enquanto, não há algo concreto neste sentido.

A Agência Nacional para a Qualificação e Ensino Profissional criou um grupo de trabalho em colaboração com a Associação Portuguesa para o Hidrogénio para definir os referenciais de qualificação para os trabalhadores em Sines, mas este ainda não teve consequências práticas.

A Fusion Fuel quer criar uma fábrica para produzir hidrogénio verde, que será, depois, usado para produzir amoníaco verde em Sines.

O Ministro do Ambiente e da Ação Climática adiantou, em Junho de 2021, que estava previsto um total de seis grandes projetos de hidrogénio em Sines.

O que fazer com tanto barulho?

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§5. O que estamos a observar, então, é um crescimento verde colado à indústria fóssil e dirigido pelas empresas de combustíveis fósseis. Este crescimento está desligado da transição energética, em vários sentidos.

Em primeiro lugar, o facto de instalar capacidade de hidrogénio está desligado dos planos de instalação da capacidade solar nos próximos anos.

Em segundo lugar, nos projetos, não existe nenhuma menção de contratação prioritária ou obrigatória dos trabalhadores, que podem perder os seus empregos por causa dos encerramentos.

Em terceiro lugar, o uso previsto de hidrogénio não prioriza as áreas em que esta tecnologia é essencial para a descarbonização da economia.

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§6. A forma como esta nova tecnologia está a ser dirigida é igual à forma como todas as tecnologias energéticas atuais foram dirigidas até agora: maximização do lucro. Neste sentido, o hidrogénio não vai salvar o clima ou o emprego, como os carros elétricos não os salvaram nos últimos décadas.

A lógica comercial atrás dos projetos é a razão pela qual estamos na crise climática. As soluções para a crise climática não estão a ser bloqueadas por faltas tecnológicas, estão a ser bloqueadas por relações sócio-económicas. Neste sentido, propomos olhar para o hidrogénio por uma ótica social, focada nas pessoas.

As perguntas que levantamos e as reivindicações que visamos têm menos a ver com a tecnologia em si, mas mais com o enquadramento social dela.

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§7. Para concluir, as reivindicações por uma transição justa, em particular, sobre hidrogénio e em Sines, podiam incluir as seguintes:

  • Controlo público: o hidrogénio é uma nova tecnologia e, em certas áreas, vai ter um papel crucial na transição climática. Deixar esta tecnologia nas mãos das empresas petrolíferas é um erro estratégico. Aliás, está a ser visivelmente um erro estratégico já neste momento com a fragmentação dos projetos.

  • Envolvimento ativo dos trabalhadores: nos planos de governo, o Porto de Sines está previsto para servir como porto de exportação de hidrogénio. Então, os trabalhadores do Porto de Sines devem fazer parte do desenho dos projetos. Este envolvimento será essencial em qualquer caso, porque uma das áreas em que o hidrogénio vai ser essencial é nos grandes barcos e o Porto de Sines vai ter um papel importante neste sentido.

  • Garantia de emprego para os ex-trabalhadores das indústrias carbono-intensivas: a central termoelétrica de Sines foi encerrada em 2021 e os trabalhadores foram deixados para trás. Situações semelhantes vão acontecer ao longo dos próximos anos, com encerramentos (planeados ou precipitados) de outras indústrias com emissões de gases com efeito de estufa (GEE). Ao mesmo tempo, vão ser abertas novas indústrias na base de energias renováveis, como o hidrogénio verde. Então, é essencial haver cláusulas de prioridade e garantia de emprego para quem sai das empresas poluentes.

  • Formação profissional alargada: o hidrogénio traz consigo alterações estruturais que afetarão várias indústrias. Em alguns casos, os processos vão mudar, noutros casos, novas áreas vão surgir. É preciso preparar os trabalhadores, desde já. Para isso, todos os trabalhadores em setores intensivos em carbono devem começar de imediato a receber formação profissional sobre energias renováveis. Esta medida terá importância particular em Sines, não só por causa dos projetos existentes de hidrogénio, mas também por causa do porto.

Estas reivindicações estão interligadas com outras medidas de transição justa, focadas noutros setores e noutras empresas. Com o Estudo de Caso sobre Transição Justa em Sines, vamos continuar a focar-nos nos temas e setores específicos para, depois, compilarmos as nossas conclusões num relatório final.


1 Para aviões fala-se de biomassa como uma alternativa, porque diz-se que se liberta o CO2 que foi fixado nas plantas. Queimar biomassa emite CO2. O objetivo da descarbonização é deixar de emitir CO2. Se se produz plantas que afixam o carbono, então estas plantas são para deixar nos campos.