quarta-feira, 26 de julho de 2023

TRANSPORTES PÚBLICOS GRATUITOS NÃO SÃO UM MILAGRE!

Transportes Públicos gratuitos não são um milagre! – Leonor Canadas

Depois de meses de profunda confusão nos transportes em Portugal, ficamos a saber que durante as Jornadas Mundiais da Juventude os transportes públicos serão gratuitos para os peregrinos. O que durante muito nos foi rejeitado como impraticável rejeitado, afinal para os peregrinos será possível. Mas transportes Públicos gratuitos não são um milagre! Implementar transportes públicos gratuitos de forma permanente é essencial para travar a crise climática.

Foram várias as greves nos transportes públicos ao longo deste ano. Aos trabalhadores continuam a não ser dadas condições de trabalho e salariais. Os trabalhadores dos bares e serviço de bordo dos comboios da CP estiveram mais de dois meses sem receber salários, forçados a acampar em luta pelos seus direitos, ao longo de 54 noites. O caos nos transportes públicos urbanos e inter-cidades acentou-se. O investimento nos transportes públicos continua insuficiente e incapaz de reduzir o impacto daquele que é o setor com maior nível de emissões de gases com efeito de estufa em Portugal.

Nas vésperas do início da Jornada Mundial da Juventude, o Governo apresenta o Plano de Segurança e Mobilidade, anunciando um reforço nos transportes públicos – mais 354.000 lugares de dia 1 a 4 de Agosto, incluindo reforço rodoviário, comboios, metro, metro de superfície e barcos, e um total de mais 780.000 lugares nos dias 5 e 6. Descobrimos então que, não só há capacidade para reforçar os transportes públicos, mas também para os tornar gratuitos. Para as populações? Não. Para os peregrinos da Jornada Munidal da Juventude…

Afinal será preciso um milagre para termos transportes públicos gratuitos? Não. É preciso vontade política. Mas aparentemente a vontade política vem na forma de um passe especial para peregrinos, enquanto estações de metro e comboio são cortadas para as pessoas que trabalham e vivem na cidade. Se já é difícil nos movermos em Lisboa, o Governo e a Câmara Municipal de Lisboa tiveram a audácia de anunciar que durante estes dias nos vamos deparar com várias estações fechadas e terminais relocalizados. Também as bicicletas e trotinetas estarão proibidas de circular em algumas zonas da cidade. Dir-se-ia que havia alguma emergência, algo urgente, uma crise existencial.

O que nos dizem é que os transportes serão mobilizados, reforçados, e repensados para dar resposta, não às necessidades das populações, não à urgência de crise climática, mas sim à vinda do Papa e dos peregrinos que o vêm ver.

O plano que está a ser apresentado é um plano de intervenção do Estado que nos mostra que querendo, é capaz de agir quando identifica algo como prioritário. Mas as prioridades estão erradas e têm de ser condenadas à luz da crise climática e social em que vivemos. As pessoas e o planeta são a prioridade!

As Jornadas Mundiais da Juventude não são uma emergência, mas a crise climática é! Investir num serviço de transportes públicos renováveis e gratuito tem de ser uma prioridade. Este serviço deve servir as pessoas e as várias regiões do país, deve ser capaz de reduzir drasticamente a necessidade de utilização de transporte individual, e deve garantir empregos de qualidade.

O setor dos transportes deve ser pensado e gerido na ótica do serviço público e da mitigação das alterações climáticas. Tal passará pelo enorme investimento na ferrovia, incluindo a eletrificação e modernização das linhas existentes; a criação de novas linhas de alta velocidade; a reativação de linhas abandonadas e construção de linhas novas; assim como a organização dos portos e zonas industriais com vista à criação de núcleos logísticos de comboios.

Este serviço pode empregar milhares de pessoas em Empregos para o Clima dignos e de qualidade. Vários são os ex-trabalhadores da antiga refinaria da Galp em Matosinhos que vêm, há quase dois anos, reivindicando formação para ser empregados como maquinistas da CP, por exemplo. Estes foram despedidos sem qualquer plano de Transição Justa, muitos procuram ainda respostas e soluções. Estas são pessoas que já vivem em estado de emergência e a merecem os seus direitos e rendimentos assegurados, formação e acesso a Empregos para o Clima – que não só queremos como necessitamos. Não é preciso um milagre para que o tenham.

Este pode ser o verão mais fresco do resto das nossas vidas. Ainda vamos a meio e o recorde de dia mais quente de sempre foi batido quatro vezes na mesma semana! A crise climática é uma emergência. Transportes públicos gratuitos para toda as pessoas não é um milagre, mas sim uma necessidade.


Artigo originalmente publicado no Público a 24 de Julho de 2023.

terça-feira, 11 de julho de 2023

BCE, FMI e as virtudes do empobrecimento


António Barata

A ladainha não é nova, mas ganhou renovado fôlego com a realização do fórum do Banco Central Europeu, em Sintra, no dia 26 de Junho. Aí a nata dos funcionários de luxo do grande capital voltaram a culpar os trabalhadores pela inflação, a forma que agora assume a crise capitalista que se arrasta desde 2007.

Acusação, previsível dado o coro orquestrado de analistas, comentadores, doutores e outros encartados que enxameiam a comunicação e as redes sociais que do alto da sua sabichesa vinham à semanas decretando que a inflacção se deve aos “altos” salários dos trabalhadores europeus que, dizem, crescem mais que a produtividade. O que a ser verdade, remeteria para a categoria dos mistérios insondáveis o facto de os lucros das empresas e os dividendos aos seus acionistas nunca terem deixado de crescer desde os anos 80 do século passado, e em particular durante as crises mais agudas do capitalismo como sejam as do sub prime e COVID, enquanto os rendimentos do trabalho não têm parado de cair desde então.

Todos sabemos, e eles principalmente, que as causas da inflação não são da suposta pouca “produtividade” mas da especulação bolsista e imobiliária e do crédito à habitação, agravadas drasticamente com as consequências da guerra na Ucrânia, traduzidas na escassez de produtos agrícolas, cereais, fertilizantes e outras matérias-primas; nos altos preços da energia por ter cessado o fornecimento de gaz e petróleo pela Rússia, mais baratos que os vindos dos EUA e outros lugares; e nas sanções com que os Estados Unidos e a União Europeia pretendiam asfixiar economicamente a Rússia. Sanções que além de não terem asfixiado a Rússia nem provocado o colapso pretendido do regime de Putin estão a ter o efeito contrário ao pretendido penalizando duramente as economias dos países europeus e fazer crescer a sua dependência dos EUA. Crise esta aprofundada ainda pela ganância das grandes distribuidoras e cadeias de supermercados que viram nesta escassez uma boa oportunidade de negócio, inflacionando os preços e, por essa via, as suas margens de lucro sem terem que fazer qualquer investimento. Tanto assim que, que dos grandes supermercados aos especuladores imobiliários, das distribuidoras de energia à banca, seguradoras e fundos de investimento, todos têm visto os seus lucros multiplicar-se com a guerra na Ucrânia, como já havia acontecido durante a crise COVID, em particular com as farmacêuticas. Por isso, é sem surpresa que ficámos a saber que em 2022 a fuga de capitais de Portugal para os paraísos fiscais cresceu quase 20% nesse ano, totalizando cerca de 7600 milhões (quase 4% do PIB português), tendo mais de 80% desse capital sido desviado por empresas.

 

e

VERDADES INCONVENIENTES

Como apontar o dedo à banca, aos especuladores e à guerra na Ucrânia está contra a natureza e os interesses do grande capital há, na sua lógica voraz da busca do lucro infinito, que cavalgar a crise e a desorientação em que vivem mergulhados os trabalhadores desde meados dos anos 70 do século passado, espremendo-os ainda mais por via do desemprego estrutural, da precarização, da continua queda do seu poder de compra, e do seu endividamento, da exploração desenfreada da imigração, da proliferação do trabalho escravo, da massificação da pobreza e da exclusão. Quando os responsáveis do FMI e do BCE nos falam da suposta “baixa produtividade” dos trabalhadores europeus, o que sem eufemismos querem dizer é que há que fomentar a exploração do trabalho pelo capital, empobrecendo mais e mais os trabalhadores que, como dizia o Passos Coelho, “estão a viver acima das suas possibilidades”, limitando o valor da força de trabalho ao mínimo de sobrevivência.

A desfaçatez é tal que, mesmo reconhecendo que os salários reais estão abaixo dos praticados entes da crise do COVID e de que a inflação é provocada por choques nos preços da energia e dos alimentos” (Pierre-Olivier Gourinchas, FMI), “o aumento dos lucros das empresas foi responsável por quase metade do aumento da inflação na Europa nos últimos dois anos, tendo as empresas aumentado os preços praticados acima da subida muito forte dos custos com a importação de energia” (FMI), Christine Lagarde (BCE) não se cansa de repetir que a par da necessidade de continuar a desvalorizar os salários, está na altura de reduzir a grande despesa pública da era COVID e o apoio maciço devido ao choque energético na Europa”, ou seja, lembrar aos governos têm de cortar nas despesas e paliativos sociais. Ou, para quem acredita em histórias da carochinha – e tal como o fazem Marcelo e Costa -, apelar à boa vontade patronal para que as empresas “absorvam o aumento dos custos do trabalho nas margens”, não vão as coisas descambar. Porque diz o FMI as perspetivas de inflação na Europa dependem agora de como é que os lucros das empresas vão absorver os aumentos salariais que os trabalhadores estão a exigir para recuperar o poder de compra perdido”…”as empresas talvez tenham de aceitar uma parcela menor de lucros para que a inflação continue no rumo certo, de modo a atingir a meta de 2% em 2025, definida pelo BCE”. Rezemos pois à Virgem.

Conclusão: se os trabalhadores insistirem em tentar recuperar o poder de compra perdido e os patrões não se dispuserem, num inusitado acto de caridade cristã, a diminuir os seus lucros para que os salários aumentem, e se devido a essa circunstância a inflação persistir e os trabalhadores ficarem ainda mais pobres e os ricos mais ricos, a culpa não será do grande capital, do FMI, do BCE, dos especuladores, do governo nem da guerra imperialista travada na Ucrânia entre os EUA/NATO/EU e Rússia. A culpa será dos trabalhadores que com os seus salários exagerados consomem até mais não, obrigando assim o BCE e os bancos a subir as taxas de juro para que os seus salários percam valor e assim passem a gastar menos, reduzindo a procura e, por via dela, a inflacção.

Por isso, se ficam mais pobres e já não conseguem pagar os empréstimos bancários e as rendas de casa, se têm de cortar na alimentação e na saúde, se não conseguem aquecer as suas casas no inverno, se têm de recorrer ao Banco Alimentar e à caridade para sobreviverem e se vêm na contingência de ser despejados e passar a viver na rua ou dentro de carros, de retirar os filhos do ensino, etc., para as luminárias do FMI, BCE e seus partidários, a culpa será sempre dos que trabalham e não aceitam o patriótico sacrifício de serem eles a salvar a economia nacional e europeia, insistindo em obter aumentos salariais que reponham o poder de compra perdido. Porque, na língua de pau dos que assim falam e agem, tais aumentos não “acompanham a produtividade”. O que levanta uma questão curiosa: sendo Portugal um país onde o turismo, a restauração, a hotelaria e outros serviços informais uberizados, a agricultura sazonal, etc. têm um grande peso na economia empregando mais de um milhão de trabalhadores e são os sectores onde a precariedade e os baixos salários são a regra, é caso para perguntar como se mede a produtividade nestes sectores, dado que não são produtores de mercadorias. Ou, porque é que o mesmo critério da produtividade não se aplica a gestores que, como é do domínio público, recebem salários acima dos praticados em muitas das grandes empresas europeias e chorudas indemnizações e prémios, mesmo quando os resultados da sua gestão são desastrosos.

E no entanto, sendo tudo isto do conhecimento público, esta gente mente conscientemente e com sentido de missão. Sabem (e não o escondem) que a inflação é provocada pela escassez de cereais, produtos agrícolas, fertilizantes, pesticidas e outras matérias-primas anteriormente fornecidos pela agricultura e indústria ucraniana; dos elevados preços da energia; do desvio do investimento produtivo para as indústrias de guerra e para o rearmamento dos países da União Europeia e da NATO (que vai obrigar cada país membro a gastar mais de 2% do seu PIB nesse rearmamento, valor este tido até aqui como a contribuição máxima e não obrigatória de cada Estado). Mas como o que está em jogo, por um lado, é a máxima rentabilidade do capital e por outro, na guerra da Ucrânia e na crise por ela provocada (somada à crise que se arrasta desde 2007), o estabelecimento de uma nova ordem imperialista mundial em que os EUA vêm ameaçado o seu estatuto de potência dominante pela China e pelas potências regionais emergentes que constituem os BRICS, mais a Turquia, o Irão, Arábia Saudita, Israel e outros, apontar o dedo à voragem predadora do capital e a esta disputa pela partilha do mundo é uma inconveniência. Por isso, em nome do bom andamento dos negócios, silenciam-se estes factos e interesses e condenam-se milhões de pessoas à guerra e à miséria para que cresça a exploração laboral, o racismo e demais formas de intolerância política e religiosa.


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