sábado, 20 de agosto de 2022

Aos Poetas - Miguel Torga


 
Somos nós 
As humanas cigarras. 
Nós, 
Desde o tempo de Esopo conhecidos... 
Nós, 
Preguiçosos insectos perseguidos. 
 
Somos nós os ridículos comparsas 
Da fábula burguesa da formiga. 
Nós, a tribo faminta de ciganos 
Que se abriga 
Ao luar. 
Nós, que nunca passamos, 
A passar... 
 
Somos nós, e só nós podemos ter 
Asas sonoras. 
Asas que em certas horas 
Palpitam. 
Asas que morrem, mas que ressuscitam 
Da sepultura. 
E que da plantura 
Da seara 
Erguem a um campo de maior altura 
A mão que só altura semeara. 
 
Por isso a vós, Poetas, eu levanto 
A taça fraternal deste meu canto, 
E bebo em vossa honra o doce vinho 
Da amizade e da paz. 
Vinho que não é meu, 
Mas sim do mosto que a beleza traz. 
 
E vos digo e conjuro que canteis. 
Que sejais menestréis 
Duma gesta de amor universal. 
Duma epopeia que não tenha reis, 
Mas homens de tamanho natural. 
 
Homens de toda a terra sem fronteiras. 
De todos os feitios e maneiras, 
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele. 
Crias de Adão e Eva verdadeiras. 
Homens da torre de Babel. 
 
Homens do dia-a-dia 
Que levantem paredes de ilusão. 
Homens de pés no chão, 
Que se calcem de sonho e de poesia 
Pela graça infantil da vossa mão.
 
Em: Miguel Torga, Antologia Poética - obra completa - Círculo de Leitores, 2001, pp.85/6

terça-feira, 16 de agosto de 2022

A Colecção: EXÍLIOS SEM FRONTEIRAS - Percursos e Memórias de Exilados Militantes

Esta colecção é da responsabilidade da Associação de Exilados Políticos Portugueses. Até ao momento foram publicados três volumes. É deste: Exílios.3 - Exílio Sem Fronteiras - Percursos e memórias de exilados militantes, Carlos Ribeiro, Editor Coordenador, 2021, que transcrevemos partes do depoimento escrito por José Louza. 

 Um povo em fuga

15 de Março de 1966. Naquela noite o nosso grupo era composto por nada menos que 315 homens e 2 mulheres, uma das quais notoriamente grávida. Entre todos eu era o único que não podia ser apanhado pelos guardas espanhóis e recambiado para a origem. Cairia nas garras da polícia militar ou, pior, nas da PIDE. (...).

Três guarda-costas

Conversávamos, sobretudo durante o dia, escondidos em barracões perdidos nas montanhas. Fiquei a saber que para emigrar é preciso desfazermo-nos do único bem: a vaca ou a porca com leitões, as arrecadas da mulher ou da mãe ou endividarmo-nos a algum agiota. (...). Falava-se da muita miséria e da esperança de uma vida melhor que permitisse viver e fazer viver a família que tinha ficado, por enquanto para trás. Mas respirava-se entreajuda e solidariedade. E foi assim que, desde o segundo dia, me vi atribuídos três guarda-costas voluntários e abnegados. Eles aperceberam-se, enquanto falava com outro companheiro, amigo para sempre e que me acompanhava desde o início da viagem, que era desertor. Imediatamente um deles declarou:

- O meu aspirante terá de chegar a França. Nós vamos protegê-lo.

Perante o meu espanto, acrescentou:

- Fizemos dois anos de Guiné e estivemos mais dum ano à espera dum passaporte que nos foi sucessivamente recusado. Deveríamos ter feito como o meu aspirante.

Grupos na montanha

Foi assim que até Paris tive sempre nas proximidades três simpáticas «carraças». Guardo do périplo pelos Pirenéus uma imagem indelével que resume muito do que foram aqueles tempos. Talvez no dia anterior à pasagem da fronteira, já a rair a manhã, seguíamos na cauda da longa fila do grupo que deveria contar com cerca de 150 pessoas e ao atingir o topo da montanha percebemos finalmente por que todos paravam e se agitavam ao atingir o ponto em que nos encontrávamos. Na montanha em frente um grupo praticamente idêntico ao nosso subia a encosta. Era a visão brutal dum país em marcha, dum povo em fuga. Um povo com coragem para fugir à miséria e ao negrume da esperança. Após a junção dos dois grupos estávamos em condições de atacar o derradeiro acto da viagem: entrar em França. Não era o primeiro grupo que se juntava ao nosso, outros muito menos numerosos j+a o haviam feito em dias anteriores.

(...).

O apoio solidário da população

Nas inúmeras vezes que tenho narrado esta aventura há um facto que nunca me esqueço de salientar: a simpatia e o apoio solidário da população de Cambo-les-Bains, em que incluo os componentes da esquadra local. Era domingo e toda a população, diminuta naquela época do ano, já que Cambo é uma estância termal, andava pelas ruas. O nosso grupo não podia passar despercebido e rapidamente todos ficaram a saber quem éramos e qual era a nossa situação. Pela parte que me toca assinalo dois factos. Primeiro: antes da hora do almoço os polícias comunicam-me que tinha uma consulta marcada num médico local. Tinha-lhes falado dum pequeno problema que me causava alguns incómodos. O médico mandou-me tomar um duche, ofereceu-me umas ceroulas e uma pomada, desejando-me toda a sorte do mundo neste novo país que agora era o meu, segundo as suas palavras. Segundo: dirigi-me a uma pastelaria, com o meu grupo restrito, para comer qualquer coisa. As proprietárias do estabelecimento não só não permitiram que pagássemos como nos ofereceram dois enormes caixotes com todos os bolos que tinham restado, explicando que como era domingo iriam encerrar e só tornariam a abrir na terça-feira seguinte. Antes de sairmos pedem-nos para esperar e, para nosso espanto, tiram todas as notas da caixa registadora (ou, pelo menos, foi o que nos pareceu) e entregam-mas, dizendo que tinham sabido que muitos não tinham dinheiro e que ainda tínhamos caminho pela frente. Depois de nos desfazermos em agradecimentos, regressámos à esquadra. Rapidamente e com a equidade possível pudemos distribuir todo o dinheiro. Quanto aos bolos, creio que ao chegar a Paris ainda havia alguns croissantes no fundo dos caixotes.

Em: EXÍLIOS SEM FRONTEIRAS - Percursos e memórias de exilados militantes - Exílios . 3 - 61AEP74 Coleção EXÍLIOS - Exílios.3 AEP61-74 - Associação de Exilados Políticos Portugueses, 2021, PP. 45, 46 e 47.



 

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Ocupar até mudar

Pedimos a palavra para exigir a ação.

Vivemos em emergência climática. Não podemos continuar à espera de quem nos tem falhado sistematicamente. Temos de ser realistas. Temos de tomar ação agora.

No primeiro semestre do ano letivo 2022/2023, os jovens do movimento por justiça climática vão ocupar centenas de escolas e universidades de todo o mundo sob a bandeira do End Fossil Occupy. Em Portugal, vamos ocupar escolas e universidades pelo fim ao fóssil.

O custo da inação – exploração, uso e importação de combustíveis fósseis – é o custo de milhões de vidas. O custo da inação é o fim da civilização como a conhecemos hoje. Tomar a ação necessária e urgente pelo fim dos combustíveis fósseis e por justiça climática não vai ser fácil, mas é definitivamente mais fácil do que viver em caos climático.

O negacionismo climático do governo Português está a conduzir-nos ao abismo. A ciência é inequívoca. Para ficarmos abaixo da barreira de segurança de 1,5ºC, neutralidade carbónica até 2030 é o único plano realista para Portugal. Não podemos aumentar emissões. Não podemos aceitar novos projetos que aumentam emissões. Não podemos continuar a depender de combustíveis fósseis. O destino das políticas nacionais não pode estar nas mãos de ex-CEOs de petrolíferas e de ministros que deliberadamente ameaçam o nosso futuro – não o permitiremos! Precisamos de uma transição justa agora.

Há três anos começámos a faltar às aulas porque queríamos reclamar o futuro, futuro esse para o qual nos estariam a preparar. Agora, face à inação, ocupamos e perturbamos o funcionamento normal das nossas escolas para gritar alto e bom som que sem o fim aos fósseis não há futuro. Temos de interromper a normalidade para podermos radicalmente mudar tudo. Começamos, então, pelas instituições de ensino, os espaços que a sociedade elegeu para nos projetarmos no futuro. Aprendemos demasiado bem a lição, ocupamo-las por ele. Inspiração não falta, e nos corredores, auditórios e salas de aula ocupados vamos abrir conversas que têm escapado por entre os dedos das instituições de ensino: que futuro com combustíveis fósseis? Como vamos construir as alternativas que queremos? Como vamos transformar a sociedade para torná-la livre de opressões, dentro e fora das escolas e universidades?

O governo não vai parar os seus projetos suicidas se não o fizermos parar, se não pararmos a sociedade. Paramos para avançar. Vamos ocupar para desestabilizar a normalidade até que as nossas reivindicações sejam atendidas: exigimos o fim aos combustíveis fósseis até 2030, e o fim a todos os fósseis no governo, começando peloatual ministro da Economia e do Mar e Ex CEO da petrolífera Partex Oil and Gas, António Costa e Silva.

A força dos estudantes já deu provas de si em momentos determinantes da história, tendo resistido e alterado o status quo. Agora é a nossa vez – temos de mudar tudo antes que tudo mude por nós. As ocupações pelo fim ao fóssil são apenas o início – queremos as nossas reivindicações ouvidas, e desejamos ter toda a sociedade civil a tomar ação, lado a lado.

Vamos ocupar para provar que é possível um mundo novo, livre de fósseis e de opressões, onde a vida esteja no centro. Junta-te a nós!

Apelo Internacional – End Fossil: Occupy!

Esta ação, que em Portugal foi lançada pelo núcleo de Lisboa da Greve Climática Estudantil, surge como resposta ao apelo internacional do “End Fossil: Occupy”.
Entre Setembro e Dezembro de 2022, a juventude do movimento pela justiça climática vai ocupar centenas de escolas e universidades por todo o mundo. Não vamos desistir até conseguirmos o fim da era dos combustíveis fósseis.

Os nossos 3 princípios:

LIDERANÇA ESTUDANTIL

As ocupações das escolas/universidades são organizadas por estudantes.

JUSTIÇA CLIMÁTICA

O enquadramento político destas ocupações é a justiça climática. Queremos acabar com os fósseis para alcançar justiça climática e social globalmente. Queremos acabar com os fósseis através de um processo global socialmente justo.

OCUPAR ATÉ VENCERMOS

A nossa intenção é ocupar escolas e universidades em vários locais, perturbando o funcionamento normal da sociedade até que a exigência local seja ganha.

Junta-te a nós!

As preparações para as ocupas de escolas e universidades de Lisboa estão a começar agora!

Vamos decidir a reivindicação para Portugal e espalhar a mensagem ao máximo número de pessoas para ocuparmos várias escolas e universidades em Lisboa.

Qualquer estudante pode organizar e participar nas preparações destas ocupações!

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Santos Arranha, secretário-geral da CGT: memórias da guerra e da Revolução Russa

Operário marceneiro, foi dirigente da Confederação Geral do Trabalho e diretor do jornal A Batalha. Foi sete vezes prisioneiro político e permaneceu socialista-libertário até à sua morte que aconteceu há 60 anos. 
 
José da Silva Santos Arranha por volta de 1910. Foto do arquivo do Movimento Social Crítico e Alternativo.
José da Silva Santos Arranha por volta de 1910. Foto do arquivo do Movimento Social Crítico e Alternativo.

Passa este ano o centenário da sua eleição como secretário-geral da Confederação Geral do Trabalho (CGT). Teve lugar no “Congresso Operário Nacional”, realizado em outubro de 1922, na Covilhã.

Mais tarde, ele desempenhou outra elevada responsabilidade no movimento sindical como diretor do diário A Batalha, órgão da CGT. Isto em 1925/26.

Este ano cumpre-se igualmente o 60º aniversário da sua morte, ocorrida em 1962.

Operário marceneiro

José da Silva Santos Arranha nasceu a 3 de Janeiro de 1891, nas Caldas da Rainha.

Filho de um ferroviário, tornou-se marceneiro e radicou-se em Lisboa. E foi aqui que se salientou nas lutas laborais e na organização sindical do seu sector profissional. Colaborou esporadicamente no jornal A Voz do Operário, em 1916/17.

Uma das reivindicações pelas quais lutou nessa altura prendeu-se com o horário de trabalho, no sentido de obter um limite diário máximo de 9 horas. Outra reivindicação incidiu nos salários. Tratava-se de recuperar poder de compra face à elevada inflação da época, no contexto internacional da perturbação económica provocada pela 1ª Guerra Mundial.

Depois de ter sido preso político sob a ditadura de Sidónio Pais, em 1918, Santos Arranha foi um dos fundadores do novo “Sindicato Único dos Operários Marceneiros de Lisboa”. Correspondia a uma “nova tática”, buscando reunir trabalhadores (e forças) do mesmo ramo de atividade que até então estavam divididos por pequenos sindicatos de ofícios específicos.

Numa etapa seguinte, Santos Arranha foi também um dos organizadores da Federação Nacional dos Operários da Indústria de Mobiliário (em 1920).

Assumiu entretanto responsabilidades na direção da central sindical. E, já com esta experiência, foi eleito seu secretário-geral. Tinha 31 anos de idade.

Faz parte do naipe notável de sindicalistas que lideraram a CGT no seu período áureo, entre 1919 e 1927. Até ser ilegalizada pela ditadura militar.

Além de Santos Arranha, estamos aqui a falar de nomes como Manuel Joaquim de Sousa, Manuel da Silva Campos e Mário Castelhano. Todos seriam presos políticos antifascistas. E o último já não sairia com vida do cativeiro, no campo de concentração do Tarrafal…

CGT

Santos Arranha foi secretário-geral da CGT durante um ano, entre 1922 e 1923.

Uma das marcas da atividade desta central sindical nesse período foi a proposta de redução do horário de trabalho para seis horas por dia. Mas a primeira preocupação foi certamente o agravamento do custo de vida.

O próprio governo republicano reconheceu que “a carestia dos géneros de primeira necessidade” atingia preços “exorbitantes” e que era “verdadeiramente aflitiva a situação de milhares de consumidores”. Admitiu mesmo a existência de muitos “casos de exploração intensamente gananciosa” e de lucros “excessivos” que estavam “semeando a miséria”.1

Embora de aplicação prática mitigada, os governos da altura publicaram vários decretos visando travar os lucros “excessivos”, obtidos à custa de um contexto de crise social. Para os trabalhadores organizados no movimento sindical, tratou-se de uma luta defensiva, procurando tão somente recuperar os salários reais.

E defensivo foi outro problema central para a CGT nesse período: o agravamento da repressão política com que se viu confrontada, por parte das autoridades republicanas: ativistas presos, imprensa apreendida, sindicatos temporariamente encerrados, reuniões dissolvidas…

Só no período (de apenas um ano) em que foi secretário-geral da CGT, o próprio Santos Arranha foi três vezes preso político. Também lhe aconteceu começar a discursar na sede de um sindicato, e aparecer a polícia a proibi-lo de falar e a encerrar a sessão.2

Solidariedade

Neste contexto, outro foco da atividade da CGT foi o apoio e solidariedade para com trabalhadores em luta.

“Em Outubro de 1922 os mineiros de Aljustrel declaram-se em greve, reclamando melhores salários, luta que sustentaram ininterruptamente até Janeiro seguinte”. A central sindical organizou então o acolhimento temporário dos filhos destes trabalhadores em famílias de Beja e Lisboa, “para subtraí-los à fome e ajudar os pais na sua luta”.

O processo repetiu-se em Lisboa e no Porto para apoiar trabalhadores em greve na Covilhã e em São Pedro da Cova. No total terão sido acolhidas algumas centenas de crianças.

Diria Emídio Santana que estes “foram atos de solidariedade de um grande significado e demonstrativos das energias morais do movimento”.3

Divisões

A pujança da CGT quebrou-se com as discórdias e ruturas entre correntes internas. Sobretudo entre a corrente anarquista e a corrente comunista, mas também a nível interno da corrente anarquista. E com sindicalistas socialistas e republicanos pelo meio.

Santos Arranha foi um dos arautos anarquistas nesse contexto.

Em concreto, o que espoletou mais discórdia e intransigência foi uma questão bem distante do dia a dia dos trabalhadores: a filiação internacional da CGT. Era uma forma de cada corrente afirmar a sua influência: a “vanguarda” anarquista advogava a filiação numa internacional de índole anarco-sindicalista, sediada em Berlim; a “vanguarda” comunista pretendia a filiação na “Internacional Sindical Vermelha”, sediada em Moscovo. E neste jogo ambas as “vanguardas” terão afastado “massas” de trabalhadores da vida sindical…

Santos Arranha demitiu-se do cargo de secretário-geral da CGT no Outono de 1923, quando essa questão da internacional já provocava muitos estragos. Mas, um biénio depois, regressou à linha da frente do movimento sindical. Desta vez como diretor do jornal A Batalha, cargo que também só exerceu durante cerca de um ano, entre 1925 e 1926.

Era ele quem estava nesse posto quando se deu o golpe de 28 de Maio de 1926, que instaurou a ditadura militar. Uma das preocupações da A Batalha nesse período foi precisamente a denúncia e o apelo à luta contra a ameaça de uma ditadura e do fascismo.

Santos Arranha estava porventura menos intransigente mas acabou sendo alvo de uma forte oposição no seio da própria corrente anarquista. E é nesse quadro que se afastou da direção da A Batalha.4

Preso político

No final de Maio de 1927, a ditadura militar encerrou A Batalha e prendeu vários militantes que estavam, ou tinham estado, ligados a este jornal. Foi o caso de Santos Arranha. No total, ele foi preso 'político' pelo menos sete vezes, entre 1918 e 19275. Sob diferentes regimes, da ditadura de Sidónio Pais à ditadura militar, passando pela “liberal” 1ª República.

Depois, saiu do país. Foi viver para a Bélgica. E por lá manteve a sua militância, organizado num sindicato da construção civil.

Só terá regressado a Portugal para escapar às tropas de Adolf Hitler, quando a Alemanha nazi invadiu a Bélgica, em 1939 – segundo João Freire e Maria Alexandra Lousada.6

Na década de 40, em Lisboa, integrou um coletivo anarco-sindicalista clandestino: o grupo “Esperança”. Mantinha a ideologia que havia perfilhado na juventude. E manteria até ao final da vida.

Quando faleceu, a 24 de Fevereiro de 1962, Santos Arranha ainda frequentava uma discreta “tertúlia” que reunia velhos sindicalistas.

A guerra e a Revolução Russa

Na véspera de falecer, Santos Arranha tinha preparado uma reflexão crítica sobre o curso da Revolução Russa, para apresentar numa reunião clandestina.

O texto foi preservado e viria a ser publicado a seguir ao 25 de Abril, como “homenagem a Santos Arranha” por parte do jornal A Batalha, então reaparecido sob a direção de Emidio Santana.7

Espécie de testamento ideológico, é também um texto de memórias em que Santos Arranha recorda o impacto da 1ª Guerra Mundial (1914-18) e da Revolução bolchevique na Rússia (1917). Reafirma as suas convicções anarquistas: “Fui, sou e serei sempre socialista-libertário”, disse. E nessa perspetiva traça uma crítica ao Estado gerado a partir da Revolução bolchevique - a URSS - e respetivo regime político:

Oiçamo-lo:

“Estávamos em fins de 1918. Tinha-se assinado o armistício e, mais do que a simples derrota dos impérios centrais [a Alemanha e a Áustria-Hungria], o ambiente era de derrocada para a burguesia internacional. A impressão geral era a de que das trincheiras saíra o germe da revolução libertadora e, nas retaguardas, as massas populares, saturadas de sofrimento e de horror, pareciam dispostas a fazer a guerra à guerra, tomando conta dos seus destinos. Nos últimos meses da guerra, nas próprias trincheiras, deram-se prenúncios de decomposição. Sempre que podiam, os soldados, que tinham por missão entredestruírem-se, matarem-se uns aos outros sem perguntarem porquê, confraternizaram, e é sabido que algumas destas manifestações foram afogadas em sangue. Quando, assinado o armistício, o exército francês, reintegrado em Paris, ia desfilar garbosamente pelo Arco do Triunfo e se esperava que, aos acordes na “Marselhesa”, toda aquela multidão vibraria de aplausos aos bravos, dos peitos dos soldados irrompeu, unissonamente, altissonante, como uma represália contra a Autoridade que os levara à carnificina, a “Madelon”, essa canção alegre e plebeia com que, tantas vezes, nos momentos mais cruciantes da peleja, se tinham animado… e tinham afrontado a morte. E então, foi o delírio. Apoteoticamente, soldados e povo confraternizaram, num anseio de Bem Estar que pusesse termo a todas as lutas fratricidas.

Para a burguesia, a situação era de fracasso e quase de pânico. A revolução de Outubro na Rússia, vista à distância, era o facho para onde se viravam os povos ansiosos de sacudir o jugo milenário e sequiosos por viverem em regime de autêntica liberdade. Em Portugal também se viviam e sentiam esses acontecimentos: também as classes dominantes se confessavam ultrapassadas e dispostas a aceitar a fatalidade histórica.

Diziam-nos as agências noticiosas que, destronando o mais odioso regime de opróbrio e despotismo [o czarismo], o povo russo se tinha dado uma nova estrutura social, constituindo-se, desde a mais longínqua ‘estepe’ até às maiores urbes, em núcleos de “soviets” de camponeses e soldados. Que num descentralismo profícuo, esses núcleos, convergindo para os grandes conselhos de “soviets”, até proviam à equitativa [distribuição8] da produção e do consumo.

Mas a história repetiu-se. Tal como na Revolução Francesa, não faltaram os mais espertos que, alardeando uma inteligência superior, impuseram as suas diretivas. E a revolução foi sopeada. O poder de base dos “soviets” foi reduzido até ao seu virtual desaparecimento e hoje [1962] o “soviet” é apenas uma designação simbólica.

As primeiras tentativas de reação contra o desvio da Revolução foram selvaticamente afogadas em sangue. O esmagamento da revolta dos marinheiros de Cronstadt e o massacre dos camponeses macnovistas, só porque, depois de combaterem e destroçar as tropas imperialistas comandadas por generais como Wrangel, Petliura, Yudenitch, Denikine e outros, não quiseram ingressar no Exército Vermelho e trair os seus camaradas, são de triste memória e ninguém, com honestidade, poderá alegar tratar-se de atos contra-revolucionários.

Hoje [1962], a Rússia é, não o que se diz ou todos ansiávamos que fosse, mas o que é na realidade: um povo de muitos milhões de almas que, vindo de um regime arbitrário e inumano em que o chicote era argumento vulgar, se viu – após um esforço colossal no sentido da liberdade – enquadrado noutro regime em que lhe é proibido pensar livremente e usar da palavra e do escrito como expressão do pensamento.”9


Luís Carvalho - Investigador.


Notas

1 Freire/Lousada (2013), Roteiros da memória urbana - Lisboa: marcas deixadas por libertários e afins ao longo do século XX, Lisboa: Edições Colibri, p.119.

2 Santana (1987), Memórias de um militante anarco-sindicalista, Lisboa: Perspectivas & Realidades, p.61.

3 Diário do Governo (link is external) (1ª série), 21/10/1922, p. 1233.

4 A Batalha, 04/01/1975, pp. 5.

5 Na edição original, em 1975, estava impressa a palavra "destruição'', em vez de “distribuição”. Mas parece-nos uma gralha evidente, considerando o sentido da frase.

6 A Batalha, 04/01/1975, pp. 5 e 7.

7 Em artigos anteriores, nomeadamente em O Setubalense (link is external) e A Voz do Operário (link is external), mencionámos apenas seis prisões de Santos Arranha, por ainda desconhecermos a primeira vez que ele foi preso quando já era secretário-geral da CGT. Por sinal, uma prisão ocorrida em Aljustrel, quando ele ali foi apoiar os mineiros em greve. Os registos da época que subsistem hoje no Arquivo da PIDE/DGS (na Torre do Tombo), omitem frequentemente as prisões efetuadas na província.

8 Esta oposição a Santos Arranha no seio da corrente anarquista teve um cariz muito fulanizado, nomeadamente por parte do seu antecessor na liderança da CGT, Manuel Joaquim de Sousa.

9 Um caso de reunião sindical encerrada pela polícia, onde Santos Arranha foi proibido de falar, ocorreu no sindicato dos trabalhadores marítimos de Setúbal. Já aflorado aqui: Carvalho (2022), “Santos Arranha, secretário-geral da CGT”, in O Setubalense (link is external), 15/03/2022.

Artigo originalmente publicado no Esquerda.net a 07 de Agosto de 2022

terça-feira, 9 de agosto de 2022

10 razões para o gás fóssil liquefeito ser a escolha errada para a Europa


A campanha gás é andar para trás traduziu para Português o Relatório “GNL: O caminho Líquido para o Caos Climático – 10 razões para o gás fóssil liquefeito ser a escolha errada para a Europa” realizado pela Food and Water Action Europe e Friends of the Earth Europe.

 

 

Introdução

O “Gás Natural Liquefeito” (GNL) tem sido objeto de grande atenção. O custo do gás fóssil tem aumentado desde 2021 e a terrível invasão da Ucrânia por parte das forças russas obrigou os governos a tentar arranjar formas de terminar com a dependência europeia dos combustíveis fósseis russos. Em conjunto com a necessidade de acabar com a dependência de combustíveis fósseis o mais rapidamente possível de forma a mitigar os impactos das alterações climáticas e manter o aquecimento global abaixo dos 1,5 ºC, estas situações criaram algum burburinho em torno do GNL. Mas afinal o que é o GNL e porque é que é tão importante? Este relatório pretende fazer soar o alarme sobre a implantação de GNL na Europa, como uma tentativa de deter preocupações com a segurança energética. O documento apresentará dez argumentos-chave que demonstram os maiores problemas que o GNL representa.

Mas, primeiro, uma explicação sobre o que é realmente o GNL.

O GNL refere-se ao gás fóssil que é transportado não em formato gasoso através de condutas de gás, mas refrigerado a 162 ºC negativos, o que o torna liquefeito e transportado a longas distâncias em navios. Isto significa que quando falamos de GNL na Europa, referimo-nos a gás que é extraído, convertido à sua forma líquida e transportado pelo oceano, convertido novamente à sua forma gasosa e depois bombeado para a rede de gás europeia, para aquecer e arrefecer casas e alimentar energeticamente atividades industriais. 

As importações de GNL perfizeram 20,5% do consumo de gás fóssil na Europa em 2021 [1] e, com a pressão para terminar com as importações de gás russo, os governos estão agora a procurar GNL de fontes não-russas para responder à demanda. 

A mobilização para deixar de depender do gás russo é necessária e urgente para ajudar a acabar  com a guerra na Ucrânia, ao reduzir os lucros que Putin pode usar para a sua máquina bélica. No entanto, devemos ter cuidado para não deixar que preocupações sobre as demandas energéticas a curto-prazo levem a Europa a ficar refém de negócios caros e a longo-prazo que prendam os consumidores a infraestruturas de combustíveis fósseis e dependências energéticas ainda mais sujas no futuro. 

O uso de gás fóssil a longo-prazo é incompatível com um clima seguro e isto necessita de ser o ponto fulcral para fazer com que a Europa deixe os combustíveis fósseis de uma vez por todas. 

Este relatório oferece contra-argumentos sobre o papel superinflacionado em que se está a posicionar o GNL no futuro energético europeu e demonstra que, ao contrário do que se faz parecer, o GNL é uma distração perigosa da transição energética justa de que o planeta precisa.

10 razões para o gás fóssil liquefeito ser a escolha errada para a Europa

  1. O GNL não irá terminar com a dependência europeia de combustíveis fósseis;
  2. O novo GNL não aborda a crise energética atual e irá atrasar a transição justa;
  3. Mais GNL significa um aprisionamento ao gás fóssil e mais infraestruturas para combustíveis fósseis;
  4. O GNL é mau para o ambiente;
  5. O GNL não serve para quem sofre de pobreza energética;
  6. O GNL continuará a render lucros crescentes para as indústrias de combustíveis fósseis;
  7. O GNL impulsiona a fraturação hidráulica: um desastre para a nossa saúde e o meio ambiente;
  8. O GNL produz e alimenta conflitos;
  9. O GNL é perigoso;
  10. O GNL é uma distração. Existem soluções comprovadas para abandonar o gás;
Memória

100 anos da sede d’A Voz do Operário, expoente de património associativo

“A preocupação de proteger e estudar o património industrial é muito recente”, diz o Ministério da Cultura. Mas apresenta já uma rota nacional com 23 locais.

A sede da A Voz do Operário no dia em que foi inaugurada, em 1922.

I


Fala-se menos, mas existe também o património comercial. Com edifícios que foram construídos de raiz ou profundamente remodelados para funcionarem como espaços comerciais. São exemplos, em Lisboa, os edifícios dos «Armazéns Grandella» ou da «Loja do Povo» (em Alcântara), entre outros.

Em Coimbra, o edifício da antiga sucursal dos «Armazéns do Chiado» foi musealizado pelo município. Defende-se o seu valor histórico, considerando que se tratou do “primeiro “centro comercial” da cidade” e que “introduziu um novo modelo de consumo, de progresso e modernidade que ficou marcado e materializado na tipologia arquitectónica”, segundo explica Raquel Magalhães, da Divisão Municipal de Museologia [na página da Universidade de Coimbra).

Noutra vertente de património comercial, o Museu do Trabalho, em Setúbal, recria, numa das suas exposições permanentes, o cenário interior de uma antiga mercearia de Lisboa. Com o respectivo mobiliário e equipamento.

II

Pois também existe o «património associativo». Com edíficos construídos de raiz ou profundamente remodelados para servir como sede de uma associação, nomeadamente de cariz popular e operário.

Em Portugal, a sede da A Voz do Operário é um expoente deste outro tipo de património. Está aliás classificada como “Monumento de Interesse Público”. O autor do seu projecto era um dos mais renomados arquitetos portugueses à época: Manuel Joaquim Norte Júnior (1878-1962).

Logo aqui em frente, bem do outro lado da rua, está a sede (ainda mais antiga) da cooperativa Caixa Económica Operária.

Na cidade de Lisboa há outros casos significativos. Como a Associação de Socorros Mútuos dos Empregados do Comércio e Indústria, na Rua da Palma (também projectada por Norte Júnior).

Ou a Cooperativa A Padaria do Povo, no bairro de Campo de Ourique. Edifício onde também funcionou a Universidade Popular Portuguesa.

Ou a antiga «Tuna Comercial de Lisboa», à Praça das Flores. É o edifício onde depois passou a funcionar o «Ritz Club» mas conserva a identificação original, no cimo da sua fachada.

Há que valorizar, “proteger e estudar” este património.

O arquiteto Norte Júnior, autor do projeto da sede d’A Voz do Operário.

III

O último dia deste ano de 2022 será o centenário da sede da A Voz do Operário.

Foi inaugurada no dia 31 de Dezembro de 1922. Dos discursos então proferidos, salientamos o de João Rodrigues Cassão, operário tabaqueiro e um dos mais destacados sindicalistas deste sector profissional.

Segundo uma reportagem à época, Rodrigues Cassão traçou “a história da Voz do Operário, descrevendo o seu início, as fases da sua evolução, a grandiosidade da obra realizada, os intuitos e os sacrifícios de que ela nasceu e que a fizeram frutificar, tornando-a um maravilhoso exemplo do que pode a vontade perseverante ao serviço de um ideal de solidariedade e de bondade”.

Outro orador, Júdice Biker, “ocupando-se do sentido doutrinário daquela obra, disse que ela teve o seu germen nas teorias de Karl Marx, que José Fontana trouxe a Portugal e que um grupo de manipuladores de tabaco transformou em realização prática”.

Nesse dia de inauguração, “os visitantes, acompanhados pela direção da Sociedade, percorreram as dependências do edifício, o qual se encontrava todo embandeirado”. Houve uma sessão solene, que já se realizou no “salão principal, vasto compartimento, podendo abrigar alguns milhares de pessoas, e que se encontrava artísticamente ornamentado, tendo ao topo um estrado armado para a mesa e oradores”. Participaram “alunos dos colégios da Voz do Operário, muitos convidados e a Tuna Recreativa Tondelense, que abrilhantou a festa, enchendo o restante espaço uma enorme quantidade de povo”.

A mesma reportagem descreveu que “a magestosa construção, embora ainda incompleta”, apresentava já “um aspecto imponente, obedecendo o seu plano a um critério moderno, de estética e de utilidade, o que foi reconhecido com louvor por todos os presentes” [O Século, 01/01/1923, p.2].

Outro jornal da época, anunciava que “no novo edifício passam já a funcionar as escolas privativas da Sociedade, sendo as salas a esse fim destinadas, amplas, cheias de luz” [A Capital, 30.12.1922, p.2].


O sindicalista Fausto Gonçalves e o jornal setubalense Alvorada

O Alvorada foi um jornal sindical de trabalhadores do comércio, que se publicou em Setúbal entre 1911 e 1929. Com uma influência entre ativistas de norte a sul do país.

Quanto a Fausto Gonçalves (nascido em 1898, em Tomar), ele salientou-se como sindicalista, sobretudo entre 1921 e 1923, quando foi secretário-geral da Federação Portuguesa dos Empregados no Comércio (zona sul).

Faz parte do naipe notável de seis militantes que exerceram esse cargo entre 1913 e 1929, com José de Almeida, Joaquim Domingues, Amílcar Costa, Francisco Rodrigues Loureiro e Manuel Rodrigues.

Entre eles: um foi presidente do antigo Partido Socialista Português e da sociedade A Voz do Operário (José de Almeida); outro foi vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa (Joaquim Domingues); e outro foi secretário-geral do Partido Comunista Português (Rodrigues Loureiro).

Metade deles foram presos políticos antifascistas, depois do golpe militar de 1926: Joaquim Domingues, Rodrigues Loureiro e Amílcar Costa (por sinal, um republicano, um comunista e um socialista).

Bateram-se especialmente pelos direitos dos trabalhadores a um dia de folga semanal (legislado em 1907 e 1911) e à limitação do horário de trabalho (primeiro para 10 horas, em 1915; depois para 8 horas, em 1919).

No caso de Fausto Gonçalves, coube-lhe estar na linha da frente numa fase defensiva, em que esses direitos já tinham sido conquistados, no papel. Mas na prática eram muito torpedeados por grande parte do patronato.

À semelhança de Rodrigues Loureiro e Manuel Rodrigues, Fausto integrou o órgão deliberativo da CGT (Confederação Geral do Trabalho). Até que, no final de 1923, se afastou da atividade sindical.

Depois de ter sido militante do antigo Partido Socialista Português, tinha aderido ao novo PCP. E em 1923 foi um dos 21 subscritores do manifesto que lançou a corrente sindical pró-comunista. Esteve no epicentro da discórdia entre anarquistas e comunistas que à época dilacerou o sindicalismo em Portugal. E foi agastado com este conflito que se afastou.

Em 1926 a situação era diferente, sob ditadura militar e com o movimento sindical mais enfraquecido. Foi quando Fausto retomou a colaboração no Alvorada. Por sinal, um dos primeiros jornais em que ele começara a escrever, ainda muito jovem.

Tinha a experiência de já ter dirigido dois outros jornais sindicais. E em 1927, passou a ser ele o diretor do Alvorada. Voltou também à direção da federação dos empregados do comércio, agora como secretário-adjunto e ao lado de dois outros ex-líderes: Rodrigues Loureiro como secretário internacional e José de Almeida de novo como secretário-geral. Foi uma tentativa gorada de salvarem uma estrutura muito debilitada. Dois anos depois, tanto a federação como o Alvorada suspenderam a sua atividade, por falta de meios e de apoio.

A Fausto ficou-lhe, todavia, o gosto pelo jornalismo. Em 1932, lançou uma revista ilustrada, com um nítido cunho antifascista, a que chamou Relâmpago. Mas não foi além de três números. Tornou-se redator do Diário da Noite, rival democrático do salazarista Diário da Manhã. Mas esse jornal encerrou em 1933.

Fausto acabou por singrar na imprensa regional. Em 1938, lançou a revista Almanaque Alentejano, que dirigiu até 1973. E, por volta de 1945, assumiu a redação da revista da Casa do Alentejo, na qual se manteve durante 30 anos.

Também publicou alguns livros de temática regionalista ou associativa, com destaque para o volume «Inválidos do Comércio e a sua obra de solidariedade» (com 7 edições entre 1942 e 1958). Aquando do seu lançamento, O Setubalense reproduziu um capítulo deste livro, bem em destaque na primeira página.

Fausto Gonçalves ainda assistiu ao 25 de Abril, com entusiasmo e como militante do PCP.

Faleceu em 1977.

Artigo originalmente publicado no O Setubalense a 05 de Agosto de 2022

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Azedo Gneco, ilustre filho de Samora Correia  

 

                                                            

O que há hoje em Portugal de sindicalismo, de cooperativas e associações mutualistas; de partidos de esquerda; de ideias socialistas e marxistas[1]: de tudo isto ele foi um dos mais destacados ‘pais fundadores’, desde a década de 1870 até falecer, em 1911. 

Esteve na linha da frente dos primeiros protótipos de central sindical neste país: a «Associação Fraternidade Operária» (1872), a «Associação dos Trabalhadores na Região Portuguesa» (1873) e a «Confederação Nacional de Associações de Classe» (1894). 

Foi também fundador (em 1875), e ‘líder histórico’, do primeiro partido operário e marxista: o antigo «Partido Socialista Português» (em cuja sede se viria a realizar o primeiro congresso do «Partido Comunista», em 1923). 

No plano internacional, foi um dos raros portugueses que se corresponderam diretamente com Friederich Engels, o mais próximo camarada de Karl Marx.[2] 

Fez parte da missão operária portuguesa à Exposição Internacional de 1889, em Paris. 

Foi o único delegado português ao Congresso Internacional Operário de 1896, em Londres. E foi um dos oradores na inauguração da sede operária «Casa del Pueblo», em Madrid, a qual acabaria encerrada e destruída sob a ditadura do general Franco. 

 

                                                              II

 É porventura a mais relevante figura histórica nascida na vila de Samora Correia, concelho de Benavente. 

Esta origem foi divulgada em vários artigos biográficos publicados no seu tempo.[3] E o facto está bem documentado nos registos da Igreja Paroquial de Samora Correia: ele foi ali baptizado, a 19 de Julho de 1849, com o peculiar nome de Eudóxio César. Ficaria mais conhecido pelos seus apelidos: Azedo Gneco. 

Segundo esse registo, ele tinha nascido no dia 11 do mês anterior. O pai seria de origem italiana embora já natural de Lisboa. Havia também uma ascendência alentejana, pelo lado da avó paterna. A mãe e os avós maternos eram todos oriundos de Lisboa[4]. 

Segundo o operário gráfico António Francisco Pereira, próximo camarada de Gneco, o pai deste terá sido um “importante lavrador”.[5] Presume-se que terá sido dessa atividade do pai que veio a ligação da família a Samora Correia. 

Quanto à vida profissional do próprio Gneco, essa levou-o para Lisboa. Sobre isso, um outro operário e seu camarada, Sotto Maior Júdice, contava que ele, “bem novo ainda dedicou-se à escultura e em 1865, contando apenas 16 anos de idade, entrou para a Casa da Moeda onde completou a sua educação artística como abridor de cunhos e medalhas, e gravador tipográfico, exercendo por último, profissionalmente, a galvanoplastia”. Alguns dos seus trabalhos foram premiados em exposições realizadas em Lisboa e Paris.[6]

 

                                                              III 

 Compulsando a imprensa da época, é fácil encontrar vitupérios contra Azedo Gneco. Ele esteve no centro das discórdias que dividiram o movimento sindical português à época. Discórdias entre as correntes socialista, anarquista e republicana. E no seio da própria corrente socialista. 

Também houve quem escrevesse poemas em sua honra[7]. Mas, à semelhança de Marx, ele foi certamente um dos homens mais caluniados do seu tempo. Particularmente por parte de republicanos. 

O principal motivo terá sido o princípio marxista que Gneco defendeu, da ação política autónoma da classe trabalhadora. Necessariamente independente do Partido Republicano. O historiador Rocha Martins explicaria que Gneco “não recusava o seu auxílio aos republicanos, mas livrava-se de se deixar conduzir por eles”.[8] 

Não teve grande sucesso. Muitos trabalhadores descuraram os seus sindicatos e as suas reivindicações próprias, aliciados pela propaganda republicana. Poucos anos depois não faltariam os desiludidos com esse regime, mas na altura foi assim. 

Gneco manteve a sua posição, afirmava que “nunca virou a casaca”.[9] 

Um dos seus maiores críticos foi o jornalista republicano José do Vale. Passados alguns anos, emendou a mão e disse isto: 

“Gneco, com quem, aliás, cortei relações e combati rudemente na imprensa com todo o impulso dos meus vinte anos, era dos cérebros mais bem formados que tenho conhecido. Inteligência clara e ilustração vastíssima, traduzindo com segurança os fenómenos sociais, ardentemente socialista e sacrificando tudo à causa do proletariado – a justiça vem sempre, embora tardiamente… Gneco, dizia, foi dos primeiros em Portugal a organizar o movimento operário, conseguindo após dolorosos esforços, criar uma forte corrente de opinião”.[10] 

Vieram depois os 48 longos anos de ditadura, os quais mutilaram a memória coletiva e o conhecimento histórico acerca do antigo movimento operário e sindical. 

Mas, cento e onze anos depois da morte de Azedo Gneco, não será tempo de se valorizar esta figura histórica na vila, no concelho e na região onde ele nasceu? 

Além do indivíduo, da pessoa em concreto que ele foi, e do especial contributo que deu, Gneco é um símbolo da história colectiva à qual ele se devotou: a história da classe trabalhadora, do movimento operário e sindical; a história dos “de baixo” na hierarquia social; a arraia miúda, o povo. 

 Luís Carvalho 

Notas: 

 [1] Carvalho (2021), “Marxismo em Portugal: uma evocação de Azedo Gneco”, in Esquerda.Net 

[2] Carvalho (2021), “Gneco, um correspondente de Engels nos primórdios de A Voz do Operário”, in A Voz do Operário 

[3] Nomeadamente em O Século 01/05/1893, p.1; e A Vanguarda, 01/05/1896, p.1. 

[4] Paróquia de Samora Correia, Livro de Registo de Batismos 1846-1956, folha 44, verso. 

[5] Pereira (1931), “Eudóxio César Azedo Gneco”, in Almanaque Socialista. 

[6] Júdice (1896), “Azedo Gneco”, in A Federação, 01/05/1896, p.2. 

[7] Carvalho (2021), Dois poemas para Azedo Gneco, in Abrilabril 

[8] Martins (1935), “O 1º de Maio e Azedo Gneco”; in Diário de Notícias, 01/05/1938, p.1 

[9] Nogueira (1953), “Vultos operários – Azedo Gneco”, in República, 08/07/1953, p.4 

[10] Vale (1920), “A causa operária”, in O Mundo, 23/08/1920, p.1

Artigo originalmente publicado no Mais Ribatejo a 2 de Agosto de 2022