terça-feira, 16 de agosto de 2022

A Colecção: EXÍLIOS SEM FRONTEIRAS - Percursos e Memórias de Exilados Militantes

Esta colecção é da responsabilidade da Associação de Exilados Políticos Portugueses. Até ao momento foram publicados três volumes. É deste: Exílios.3 - Exílio Sem Fronteiras - Percursos e memórias de exilados militantes, Carlos Ribeiro, Editor Coordenador, 2021, que transcrevemos partes do depoimento escrito por José Louza. 

 Um povo em fuga

15 de Março de 1966. Naquela noite o nosso grupo era composto por nada menos que 315 homens e 2 mulheres, uma das quais notoriamente grávida. Entre todos eu era o único que não podia ser apanhado pelos guardas espanhóis e recambiado para a origem. Cairia nas garras da polícia militar ou, pior, nas da PIDE. (...).

Três guarda-costas

Conversávamos, sobretudo durante o dia, escondidos em barracões perdidos nas montanhas. Fiquei a saber que para emigrar é preciso desfazermo-nos do único bem: a vaca ou a porca com leitões, as arrecadas da mulher ou da mãe ou endividarmo-nos a algum agiota. (...). Falava-se da muita miséria e da esperança de uma vida melhor que permitisse viver e fazer viver a família que tinha ficado, por enquanto para trás. Mas respirava-se entreajuda e solidariedade. E foi assim que, desde o segundo dia, me vi atribuídos três guarda-costas voluntários e abnegados. Eles aperceberam-se, enquanto falava com outro companheiro, amigo para sempre e que me acompanhava desde o início da viagem, que era desertor. Imediatamente um deles declarou:

- O meu aspirante terá de chegar a França. Nós vamos protegê-lo.

Perante o meu espanto, acrescentou:

- Fizemos dois anos de Guiné e estivemos mais dum ano à espera dum passaporte que nos foi sucessivamente recusado. Deveríamos ter feito como o meu aspirante.

Grupos na montanha

Foi assim que até Paris tive sempre nas proximidades três simpáticas «carraças». Guardo do périplo pelos Pirenéus uma imagem indelével que resume muito do que foram aqueles tempos. Talvez no dia anterior à pasagem da fronteira, já a rair a manhã, seguíamos na cauda da longa fila do grupo que deveria contar com cerca de 150 pessoas e ao atingir o topo da montanha percebemos finalmente por que todos paravam e se agitavam ao atingir o ponto em que nos encontrávamos. Na montanha em frente um grupo praticamente idêntico ao nosso subia a encosta. Era a visão brutal dum país em marcha, dum povo em fuga. Um povo com coragem para fugir à miséria e ao negrume da esperança. Após a junção dos dois grupos estávamos em condições de atacar o derradeiro acto da viagem: entrar em França. Não era o primeiro grupo que se juntava ao nosso, outros muito menos numerosos j+a o haviam feito em dias anteriores.

(...).

O apoio solidário da população

Nas inúmeras vezes que tenho narrado esta aventura há um facto que nunca me esqueço de salientar: a simpatia e o apoio solidário da população de Cambo-les-Bains, em que incluo os componentes da esquadra local. Era domingo e toda a população, diminuta naquela época do ano, já que Cambo é uma estância termal, andava pelas ruas. O nosso grupo não podia passar despercebido e rapidamente todos ficaram a saber quem éramos e qual era a nossa situação. Pela parte que me toca assinalo dois factos. Primeiro: antes da hora do almoço os polícias comunicam-me que tinha uma consulta marcada num médico local. Tinha-lhes falado dum pequeno problema que me causava alguns incómodos. O médico mandou-me tomar um duche, ofereceu-me umas ceroulas e uma pomada, desejando-me toda a sorte do mundo neste novo país que agora era o meu, segundo as suas palavras. Segundo: dirigi-me a uma pastelaria, com o meu grupo restrito, para comer qualquer coisa. As proprietárias do estabelecimento não só não permitiram que pagássemos como nos ofereceram dois enormes caixotes com todos os bolos que tinham restado, explicando que como era domingo iriam encerrar e só tornariam a abrir na terça-feira seguinte. Antes de sairmos pedem-nos para esperar e, para nosso espanto, tiram todas as notas da caixa registadora (ou, pelo menos, foi o que nos pareceu) e entregam-mas, dizendo que tinham sabido que muitos não tinham dinheiro e que ainda tínhamos caminho pela frente. Depois de nos desfazermos em agradecimentos, regressámos à esquadra. Rapidamente e com a equidade possível pudemos distribuir todo o dinheiro. Quanto aos bolos, creio que ao chegar a Paris ainda havia alguns croissantes no fundo dos caixotes.

Em: EXÍLIOS SEM FRONTEIRAS - Percursos e memórias de exilados militantes - Exílios . 3 - 61AEP74 Coleção EXÍLIOS - Exílios.3 AEP61-74 - Associação de Exilados Políticos Portugueses, 2021, PP. 45, 46 e 47.