sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Azedo Gneco, ilustre filho de Samora Correia  

 

                                                            

O que há hoje em Portugal de sindicalismo, de cooperativas e associações mutualistas; de partidos de esquerda; de ideias socialistas e marxistas[1]: de tudo isto ele foi um dos mais destacados ‘pais fundadores’, desde a década de 1870 até falecer, em 1911. 

Esteve na linha da frente dos primeiros protótipos de central sindical neste país: a «Associação Fraternidade Operária» (1872), a «Associação dos Trabalhadores na Região Portuguesa» (1873) e a «Confederação Nacional de Associações de Classe» (1894). 

Foi também fundador (em 1875), e ‘líder histórico’, do primeiro partido operário e marxista: o antigo «Partido Socialista Português» (em cuja sede se viria a realizar o primeiro congresso do «Partido Comunista», em 1923). 

No plano internacional, foi um dos raros portugueses que se corresponderam diretamente com Friederich Engels, o mais próximo camarada de Karl Marx.[2] 

Fez parte da missão operária portuguesa à Exposição Internacional de 1889, em Paris. 

Foi o único delegado português ao Congresso Internacional Operário de 1896, em Londres. E foi um dos oradores na inauguração da sede operária «Casa del Pueblo», em Madrid, a qual acabaria encerrada e destruída sob a ditadura do general Franco. 

 

                                                              II

 É porventura a mais relevante figura histórica nascida na vila de Samora Correia, concelho de Benavente. 

Esta origem foi divulgada em vários artigos biográficos publicados no seu tempo.[3] E o facto está bem documentado nos registos da Igreja Paroquial de Samora Correia: ele foi ali baptizado, a 19 de Julho de 1849, com o peculiar nome de Eudóxio César. Ficaria mais conhecido pelos seus apelidos: Azedo Gneco. 

Segundo esse registo, ele tinha nascido no dia 11 do mês anterior. O pai seria de origem italiana embora já natural de Lisboa. Havia também uma ascendência alentejana, pelo lado da avó paterna. A mãe e os avós maternos eram todos oriundos de Lisboa[4]. 

Segundo o operário gráfico António Francisco Pereira, próximo camarada de Gneco, o pai deste terá sido um “importante lavrador”.[5] Presume-se que terá sido dessa atividade do pai que veio a ligação da família a Samora Correia. 

Quanto à vida profissional do próprio Gneco, essa levou-o para Lisboa. Sobre isso, um outro operário e seu camarada, Sotto Maior Júdice, contava que ele, “bem novo ainda dedicou-se à escultura e em 1865, contando apenas 16 anos de idade, entrou para a Casa da Moeda onde completou a sua educação artística como abridor de cunhos e medalhas, e gravador tipográfico, exercendo por último, profissionalmente, a galvanoplastia”. Alguns dos seus trabalhos foram premiados em exposições realizadas em Lisboa e Paris.[6]

 

                                                              III 

 Compulsando a imprensa da época, é fácil encontrar vitupérios contra Azedo Gneco. Ele esteve no centro das discórdias que dividiram o movimento sindical português à época. Discórdias entre as correntes socialista, anarquista e republicana. E no seio da própria corrente socialista. 

Também houve quem escrevesse poemas em sua honra[7]. Mas, à semelhança de Marx, ele foi certamente um dos homens mais caluniados do seu tempo. Particularmente por parte de republicanos. 

O principal motivo terá sido o princípio marxista que Gneco defendeu, da ação política autónoma da classe trabalhadora. Necessariamente independente do Partido Republicano. O historiador Rocha Martins explicaria que Gneco “não recusava o seu auxílio aos republicanos, mas livrava-se de se deixar conduzir por eles”.[8] 

Não teve grande sucesso. Muitos trabalhadores descuraram os seus sindicatos e as suas reivindicações próprias, aliciados pela propaganda republicana. Poucos anos depois não faltariam os desiludidos com esse regime, mas na altura foi assim. 

Gneco manteve a sua posição, afirmava que “nunca virou a casaca”.[9] 

Um dos seus maiores críticos foi o jornalista republicano José do Vale. Passados alguns anos, emendou a mão e disse isto: 

“Gneco, com quem, aliás, cortei relações e combati rudemente na imprensa com todo o impulso dos meus vinte anos, era dos cérebros mais bem formados que tenho conhecido. Inteligência clara e ilustração vastíssima, traduzindo com segurança os fenómenos sociais, ardentemente socialista e sacrificando tudo à causa do proletariado – a justiça vem sempre, embora tardiamente… Gneco, dizia, foi dos primeiros em Portugal a organizar o movimento operário, conseguindo após dolorosos esforços, criar uma forte corrente de opinião”.[10] 

Vieram depois os 48 longos anos de ditadura, os quais mutilaram a memória coletiva e o conhecimento histórico acerca do antigo movimento operário e sindical. 

Mas, cento e onze anos depois da morte de Azedo Gneco, não será tempo de se valorizar esta figura histórica na vila, no concelho e na região onde ele nasceu? 

Além do indivíduo, da pessoa em concreto que ele foi, e do especial contributo que deu, Gneco é um símbolo da história colectiva à qual ele se devotou: a história da classe trabalhadora, do movimento operário e sindical; a história dos “de baixo” na hierarquia social; a arraia miúda, o povo. 

 Luís Carvalho 

Notas: 

 [1] Carvalho (2021), “Marxismo em Portugal: uma evocação de Azedo Gneco”, in Esquerda.Net 

[2] Carvalho (2021), “Gneco, um correspondente de Engels nos primórdios de A Voz do Operário”, in A Voz do Operário 

[3] Nomeadamente em O Século 01/05/1893, p.1; e A Vanguarda, 01/05/1896, p.1. 

[4] Paróquia de Samora Correia, Livro de Registo de Batismos 1846-1956, folha 44, verso. 

[5] Pereira (1931), “Eudóxio César Azedo Gneco”, in Almanaque Socialista. 

[6] Júdice (1896), “Azedo Gneco”, in A Federação, 01/05/1896, p.2. 

[7] Carvalho (2021), Dois poemas para Azedo Gneco, in Abrilabril 

[8] Martins (1935), “O 1º de Maio e Azedo Gneco”; in Diário de Notícias, 01/05/1938, p.1 

[9] Nogueira (1953), “Vultos operários – Azedo Gneco”, in República, 08/07/1953, p.4 

[10] Vale (1920), “A causa operária”, in O Mundo, 23/08/1920, p.1

Artigo originalmente publicado no Mais Ribatejo a 2 de Agosto de 2022