quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Santos Arranha, secretário-geral da CGT: memórias da guerra e da Revolução Russa

Operário marceneiro, foi dirigente da Confederação Geral do Trabalho e diretor do jornal A Batalha. Foi sete vezes prisioneiro político e permaneceu socialista-libertário até à sua morte que aconteceu há 60 anos. 
 
José da Silva Santos Arranha por volta de 1910. Foto do arquivo do Movimento Social Crítico e Alternativo.
José da Silva Santos Arranha por volta de 1910. Foto do arquivo do Movimento Social Crítico e Alternativo.

Passa este ano o centenário da sua eleição como secretário-geral da Confederação Geral do Trabalho (CGT). Teve lugar no “Congresso Operário Nacional”, realizado em outubro de 1922, na Covilhã.

Mais tarde, ele desempenhou outra elevada responsabilidade no movimento sindical como diretor do diário A Batalha, órgão da CGT. Isto em 1925/26.

Este ano cumpre-se igualmente o 60º aniversário da sua morte, ocorrida em 1962.

Operário marceneiro

José da Silva Santos Arranha nasceu a 3 de Janeiro de 1891, nas Caldas da Rainha.

Filho de um ferroviário, tornou-se marceneiro e radicou-se em Lisboa. E foi aqui que se salientou nas lutas laborais e na organização sindical do seu sector profissional. Colaborou esporadicamente no jornal A Voz do Operário, em 1916/17.

Uma das reivindicações pelas quais lutou nessa altura prendeu-se com o horário de trabalho, no sentido de obter um limite diário máximo de 9 horas. Outra reivindicação incidiu nos salários. Tratava-se de recuperar poder de compra face à elevada inflação da época, no contexto internacional da perturbação económica provocada pela 1ª Guerra Mundial.

Depois de ter sido preso político sob a ditadura de Sidónio Pais, em 1918, Santos Arranha foi um dos fundadores do novo “Sindicato Único dos Operários Marceneiros de Lisboa”. Correspondia a uma “nova tática”, buscando reunir trabalhadores (e forças) do mesmo ramo de atividade que até então estavam divididos por pequenos sindicatos de ofícios específicos.

Numa etapa seguinte, Santos Arranha foi também um dos organizadores da Federação Nacional dos Operários da Indústria de Mobiliário (em 1920).

Assumiu entretanto responsabilidades na direção da central sindical. E, já com esta experiência, foi eleito seu secretário-geral. Tinha 31 anos de idade.

Faz parte do naipe notável de sindicalistas que lideraram a CGT no seu período áureo, entre 1919 e 1927. Até ser ilegalizada pela ditadura militar.

Além de Santos Arranha, estamos aqui a falar de nomes como Manuel Joaquim de Sousa, Manuel da Silva Campos e Mário Castelhano. Todos seriam presos políticos antifascistas. E o último já não sairia com vida do cativeiro, no campo de concentração do Tarrafal…

CGT

Santos Arranha foi secretário-geral da CGT durante um ano, entre 1922 e 1923.

Uma das marcas da atividade desta central sindical nesse período foi a proposta de redução do horário de trabalho para seis horas por dia. Mas a primeira preocupação foi certamente o agravamento do custo de vida.

O próprio governo republicano reconheceu que “a carestia dos géneros de primeira necessidade” atingia preços “exorbitantes” e que era “verdadeiramente aflitiva a situação de milhares de consumidores”. Admitiu mesmo a existência de muitos “casos de exploração intensamente gananciosa” e de lucros “excessivos” que estavam “semeando a miséria”.1

Embora de aplicação prática mitigada, os governos da altura publicaram vários decretos visando travar os lucros “excessivos”, obtidos à custa de um contexto de crise social. Para os trabalhadores organizados no movimento sindical, tratou-se de uma luta defensiva, procurando tão somente recuperar os salários reais.

E defensivo foi outro problema central para a CGT nesse período: o agravamento da repressão política com que se viu confrontada, por parte das autoridades republicanas: ativistas presos, imprensa apreendida, sindicatos temporariamente encerrados, reuniões dissolvidas…

Só no período (de apenas um ano) em que foi secretário-geral da CGT, o próprio Santos Arranha foi três vezes preso político. Também lhe aconteceu começar a discursar na sede de um sindicato, e aparecer a polícia a proibi-lo de falar e a encerrar a sessão.2

Solidariedade

Neste contexto, outro foco da atividade da CGT foi o apoio e solidariedade para com trabalhadores em luta.

“Em Outubro de 1922 os mineiros de Aljustrel declaram-se em greve, reclamando melhores salários, luta que sustentaram ininterruptamente até Janeiro seguinte”. A central sindical organizou então o acolhimento temporário dos filhos destes trabalhadores em famílias de Beja e Lisboa, “para subtraí-los à fome e ajudar os pais na sua luta”.

O processo repetiu-se em Lisboa e no Porto para apoiar trabalhadores em greve na Covilhã e em São Pedro da Cova. No total terão sido acolhidas algumas centenas de crianças.

Diria Emídio Santana que estes “foram atos de solidariedade de um grande significado e demonstrativos das energias morais do movimento”.3

Divisões

A pujança da CGT quebrou-se com as discórdias e ruturas entre correntes internas. Sobretudo entre a corrente anarquista e a corrente comunista, mas também a nível interno da corrente anarquista. E com sindicalistas socialistas e republicanos pelo meio.

Santos Arranha foi um dos arautos anarquistas nesse contexto.

Em concreto, o que espoletou mais discórdia e intransigência foi uma questão bem distante do dia a dia dos trabalhadores: a filiação internacional da CGT. Era uma forma de cada corrente afirmar a sua influência: a “vanguarda” anarquista advogava a filiação numa internacional de índole anarco-sindicalista, sediada em Berlim; a “vanguarda” comunista pretendia a filiação na “Internacional Sindical Vermelha”, sediada em Moscovo. E neste jogo ambas as “vanguardas” terão afastado “massas” de trabalhadores da vida sindical…

Santos Arranha demitiu-se do cargo de secretário-geral da CGT no Outono de 1923, quando essa questão da internacional já provocava muitos estragos. Mas, um biénio depois, regressou à linha da frente do movimento sindical. Desta vez como diretor do jornal A Batalha, cargo que também só exerceu durante cerca de um ano, entre 1925 e 1926.

Era ele quem estava nesse posto quando se deu o golpe de 28 de Maio de 1926, que instaurou a ditadura militar. Uma das preocupações da A Batalha nesse período foi precisamente a denúncia e o apelo à luta contra a ameaça de uma ditadura e do fascismo.

Santos Arranha estava porventura menos intransigente mas acabou sendo alvo de uma forte oposição no seio da própria corrente anarquista. E é nesse quadro que se afastou da direção da A Batalha.4

Preso político

No final de Maio de 1927, a ditadura militar encerrou A Batalha e prendeu vários militantes que estavam, ou tinham estado, ligados a este jornal. Foi o caso de Santos Arranha. No total, ele foi preso 'político' pelo menos sete vezes, entre 1918 e 19275. Sob diferentes regimes, da ditadura de Sidónio Pais à ditadura militar, passando pela “liberal” 1ª República.

Depois, saiu do país. Foi viver para a Bélgica. E por lá manteve a sua militância, organizado num sindicato da construção civil.

Só terá regressado a Portugal para escapar às tropas de Adolf Hitler, quando a Alemanha nazi invadiu a Bélgica, em 1939 – segundo João Freire e Maria Alexandra Lousada.6

Na década de 40, em Lisboa, integrou um coletivo anarco-sindicalista clandestino: o grupo “Esperança”. Mantinha a ideologia que havia perfilhado na juventude. E manteria até ao final da vida.

Quando faleceu, a 24 de Fevereiro de 1962, Santos Arranha ainda frequentava uma discreta “tertúlia” que reunia velhos sindicalistas.

A guerra e a Revolução Russa

Na véspera de falecer, Santos Arranha tinha preparado uma reflexão crítica sobre o curso da Revolução Russa, para apresentar numa reunião clandestina.

O texto foi preservado e viria a ser publicado a seguir ao 25 de Abril, como “homenagem a Santos Arranha” por parte do jornal A Batalha, então reaparecido sob a direção de Emidio Santana.7

Espécie de testamento ideológico, é também um texto de memórias em que Santos Arranha recorda o impacto da 1ª Guerra Mundial (1914-18) e da Revolução bolchevique na Rússia (1917). Reafirma as suas convicções anarquistas: “Fui, sou e serei sempre socialista-libertário”, disse. E nessa perspetiva traça uma crítica ao Estado gerado a partir da Revolução bolchevique - a URSS - e respetivo regime político:

Oiçamo-lo:

“Estávamos em fins de 1918. Tinha-se assinado o armistício e, mais do que a simples derrota dos impérios centrais [a Alemanha e a Áustria-Hungria], o ambiente era de derrocada para a burguesia internacional. A impressão geral era a de que das trincheiras saíra o germe da revolução libertadora e, nas retaguardas, as massas populares, saturadas de sofrimento e de horror, pareciam dispostas a fazer a guerra à guerra, tomando conta dos seus destinos. Nos últimos meses da guerra, nas próprias trincheiras, deram-se prenúncios de decomposição. Sempre que podiam, os soldados, que tinham por missão entredestruírem-se, matarem-se uns aos outros sem perguntarem porquê, confraternizaram, e é sabido que algumas destas manifestações foram afogadas em sangue. Quando, assinado o armistício, o exército francês, reintegrado em Paris, ia desfilar garbosamente pelo Arco do Triunfo e se esperava que, aos acordes na “Marselhesa”, toda aquela multidão vibraria de aplausos aos bravos, dos peitos dos soldados irrompeu, unissonamente, altissonante, como uma represália contra a Autoridade que os levara à carnificina, a “Madelon”, essa canção alegre e plebeia com que, tantas vezes, nos momentos mais cruciantes da peleja, se tinham animado… e tinham afrontado a morte. E então, foi o delírio. Apoteoticamente, soldados e povo confraternizaram, num anseio de Bem Estar que pusesse termo a todas as lutas fratricidas.

Para a burguesia, a situação era de fracasso e quase de pânico. A revolução de Outubro na Rússia, vista à distância, era o facho para onde se viravam os povos ansiosos de sacudir o jugo milenário e sequiosos por viverem em regime de autêntica liberdade. Em Portugal também se viviam e sentiam esses acontecimentos: também as classes dominantes se confessavam ultrapassadas e dispostas a aceitar a fatalidade histórica.

Diziam-nos as agências noticiosas que, destronando o mais odioso regime de opróbrio e despotismo [o czarismo], o povo russo se tinha dado uma nova estrutura social, constituindo-se, desde a mais longínqua ‘estepe’ até às maiores urbes, em núcleos de “soviets” de camponeses e soldados. Que num descentralismo profícuo, esses núcleos, convergindo para os grandes conselhos de “soviets”, até proviam à equitativa [distribuição8] da produção e do consumo.

Mas a história repetiu-se. Tal como na Revolução Francesa, não faltaram os mais espertos que, alardeando uma inteligência superior, impuseram as suas diretivas. E a revolução foi sopeada. O poder de base dos “soviets” foi reduzido até ao seu virtual desaparecimento e hoje [1962] o “soviet” é apenas uma designação simbólica.

As primeiras tentativas de reação contra o desvio da Revolução foram selvaticamente afogadas em sangue. O esmagamento da revolta dos marinheiros de Cronstadt e o massacre dos camponeses macnovistas, só porque, depois de combaterem e destroçar as tropas imperialistas comandadas por generais como Wrangel, Petliura, Yudenitch, Denikine e outros, não quiseram ingressar no Exército Vermelho e trair os seus camaradas, são de triste memória e ninguém, com honestidade, poderá alegar tratar-se de atos contra-revolucionários.

Hoje [1962], a Rússia é, não o que se diz ou todos ansiávamos que fosse, mas o que é na realidade: um povo de muitos milhões de almas que, vindo de um regime arbitrário e inumano em que o chicote era argumento vulgar, se viu – após um esforço colossal no sentido da liberdade – enquadrado noutro regime em que lhe é proibido pensar livremente e usar da palavra e do escrito como expressão do pensamento.”9


Luís Carvalho - Investigador.


Notas

1 Freire/Lousada (2013), Roteiros da memória urbana - Lisboa: marcas deixadas por libertários e afins ao longo do século XX, Lisboa: Edições Colibri, p.119.

2 Santana (1987), Memórias de um militante anarco-sindicalista, Lisboa: Perspectivas & Realidades, p.61.

3 Diário do Governo (link is external) (1ª série), 21/10/1922, p. 1233.

4 A Batalha, 04/01/1975, pp. 5.

5 Na edição original, em 1975, estava impressa a palavra "destruição'', em vez de “distribuição”. Mas parece-nos uma gralha evidente, considerando o sentido da frase.

6 A Batalha, 04/01/1975, pp. 5 e 7.

7 Em artigos anteriores, nomeadamente em O Setubalense (link is external) e A Voz do Operário (link is external), mencionámos apenas seis prisões de Santos Arranha, por ainda desconhecermos a primeira vez que ele foi preso quando já era secretário-geral da CGT. Por sinal, uma prisão ocorrida em Aljustrel, quando ele ali foi apoiar os mineiros em greve. Os registos da época que subsistem hoje no Arquivo da PIDE/DGS (na Torre do Tombo), omitem frequentemente as prisões efetuadas na província.

8 Esta oposição a Santos Arranha no seio da corrente anarquista teve um cariz muito fulanizado, nomeadamente por parte do seu antecessor na liderança da CGT, Manuel Joaquim de Sousa.

9 Um caso de reunião sindical encerrada pela polícia, onde Santos Arranha foi proibido de falar, ocorreu no sindicato dos trabalhadores marítimos de Setúbal. Já aflorado aqui: Carvalho (2022), “Santos Arranha, secretário-geral da CGT”, in O Setubalense (link is external), 15/03/2022.

Artigo originalmente publicado no Esquerda.net a 07 de Agosto de 2022