domingo, 25 de dezembro de 2022

NATAL - MIGUEL TORGA

 NATAL

 

De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis por se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. «Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser» - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no Céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.

E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse doutra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera.se.lhe em cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza. Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra dum borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhe a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta, passava das quatro. E, como anoitecia cedo, não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer! Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo.. Areias, queriam dizer. Importava-lhe lá.

E caía, o algodão-em-rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...

Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!

Com patorras de elefante e branco como o moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro de ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.

Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças! 

Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.

Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora O diabo era arranjar lenha.

Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois dum clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos, é que não.

Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.

Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao Céu por aquela ajuda, olhou o altar.

Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe.

- Boas festas! - desejou-lhe então, a sorrir também.

Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.

Daí a pouco, envolvido pala negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de se cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca;; que mais faltava?

Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra, e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.

- É servida?

A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.

E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias-medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.

- Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia dum patriarca. - A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.


Obras Completas de Miguel Torga, Contos, Círculo de Leitores, 2002, p.p. 399 a 402.


terça-feira, 20 de dezembro de 2022

8º Encontro Nacional pela Justiça Climática

10 e 11 de Fevereiro

Departamento de Física da Universidade de Coimbra, Coimbra

Junta-te a centenas de pessoas e dezenas de organizações do movimento pela Justiça climática no 8º Encontro Nacional pela Justiça Climática (ENJC)!

Inscreve-te AQUI!

Tantas crises. E eu sou só uma pessoa.

Aumentam os preços, no fim do mês o dinheiro escasseia. Aumenta a temperatura, há cada vez menos floresta e menos água. Aumentam os lucros dos milionários, torna-se um luxo o acesso a casas, cuidados de saúde, energia e alimentos de qualidade. Estou em pânico com as notícias. Multiplicam-se as secas, as ondas de calor, os incêndios, os furacões, as cheias,… Soam os alertas. Logo normalizados

O que fazer quando um território está a arder? O que fazer quando um terço do Paquistão fica submerso e sabemos que só vai piorar? Dizem-nos que não há outro caminho. Que não temos poder. Dizem-nos que estamos isoladas. Mas nós não estamos sozinhas. Tu não estás sozinha. 

O sistema capitalista e extrativista em que vivemos está a afundar-nos numa crise civilizacional que deriva da sua incapacidade de aceitar limites e suplantar a sua natureza predadora. Nestas condições, a complexidade e gravidade ligada à criação de crises constantes, que agravam as injustiças, as desigualdades e a exploração, são inevitáveis. Perante esta rotina sempre muito justificada, mas pouco justificável, somos empurradas para uma espécie de “normalização de uma realidade adaptada a estas crises”. As lutas começam a parecer cada vez mais particularizadas e afastadas umas das outras. 

Mas porquê, se tudo isto é inerente ao sistema que coloca constantemente o lucro e não as pessoas e a Vida no centro? 

Dias 10 e 11 de fevereiro, junta-te a centenas de pessoas e dezenas de organizações do movimento pela Justiça climática no 8o Encontro Nacional pela Justiça Climática (ENJC). Pela primeira vez, o ENJC sai de Lisboa e vai para o centro de Portugal, de forma a sermos muitas mais, unindo sul e norte do país em Coimbra. Este é um espaço de partilha de conhecimento e experiências, onde tu podes conhecer as lutas que enfrentamos, as pessoas que as travam e as soluções e caminhos por percorrer. Este é o espaço e momento para conheceres e escolheres como te podes envolver nos próximos passos do movimento pela justiça climática em Portugal. 

Se és de Coimbra e queres ajudar a criar este evento incrível é só nos deixares um comentário e entramos em contacto contigo!

Este evento dependerá de muita esforço coletivo e esforço em angariar fundos para que o mesmo tenha uma participação acessível a todas. Para tal, se gostarias de contribuir e ajudar-nos, criámos Esta Página onde podes doar para o nosso evento 🙂

Aqui ficam os links para os encontros anteriores:

7º Encontro Nacional pela Justiça Climática

6º Encontro Nacional pela Justiça Climática


O 8º Encontro Nacional pela Justiça Climática  é co-organizado por:

AmbientalIST, ClimaçãoCentro, Climáximo, EcoMood, Greve Climática Estudantil, Sciaena, Scientist Rebellion, ProTejo, Último Recurso, Um Coletivo, UMAR, Youth Climate Leaders, Zero.

Com o apoio de : Centro de Estudos Sociais, Coopérnico, EcoPsi, IMVF, Já Marchavas, Linha de Fuga, M.A.E., PTRevolution,

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

"Livre não sou,..." - MIGUEL TORGA

Nestes tempos de destruição em massa e repressão sobre as pessoas que resistem e lutam em defesa da vida. Partilhamos dois poemas de Miguel Torga que também foi perseguido e preso, na sequência da publicação de O Quarto Dia da Criação do Mundo, em 1939.

 

Conquista

 

Livre não sou, que nem a própria vida

Mo consente.

Mas a minha aguerrida

Teimosia 

É quebrar dia a dia

Um grilhão da corrente.

 

Livre não sou, mas quero a liberdade.

Trago-a dentro de mim como um destino.

E vão lá desdizer o sonho do menino

Que se afogou e flutua

Entre nenúfares de serenidade

Depois de ter a lua!



S.O.S

 

Vai ao fundo o navio,

Mas eu sou o homem da telegrafia.

O que lança nas asas do vazio

O adeus da agonia...


Sei que ninguém acode à íntima certeza

De que tudo acabou quando naufraga

O veleiro do sonho.

Mas honrado poeta sinaleiro

Do destino de quantos aqui vão,

Ponho

A correr mundo o grito derradeiro

Da nossa desgraçada perdição.

 

Em: Miguel Torga, Antologia Poética, Círculo de Leitores, 2001, pp. 126/7

NÃO ESTÃO SOZINHAS! PORQUE TEMOS QUE NOS LIBERTAR DO SISTEMA ECOCIDA

Francisco Pedro (Kiko) – Jornalista e Activista da ATERRA

Não estão sozinhas porque eu também cá estou.
Não estão sozinhas porque a vossa coragem, sensibilidade e inteligência nos juntaram a todas nós, nesta linda tarde de outono, junto a este horrível tribunal. 

Não estão sozinhas porque somos muitas a dar aquilo que de mais precioso temos – o nosso tempo e os nossos talentos – para travar os projectos ecocidas duma pequena elite ignorante e imatura.

Não estão sozinhas porque somos cada vez mais homens a aprender, com a vossa ajuda, a abrir-nos às nossas emoções, a calar a boca e a escutar.

Não estão sozinhas porque as nossas antepassadas estão connosco. Porque estamos a continuar a dança de todas as que antes de nós ousaram desobedecer, cuidar e amar por entre a ignorância e a injustiça.

Não estão sozinhas porque estão connosco as nossas filhas, todas as crianças que já nasceram e que vão nascer, e é por elas que lutamos e cuidamos nesta nossa fugaz e preciosa passagem.

Não estão sozinhas porque há sempre flores de ervas daninhas a romper o betão e raízes de árvores a levantar calçadas.

Porque há imensa vida para além dos muros das cidades.

Porque todos os outros animais da terra, do ar e das águas, plantas e fungos, bactérias e vírus, estão connosco também, e nós estamos com eles.

Porque por toda a parte a vida quer regenerar-se e prosperar, e temos a curiosidade de redescobrir o nosso papel nesse natural e misterioso re-equilíbrio da mãe Terra.

Não estão sozinhas porque nenhuma de nós o está. Porque juntas superamos as ilusões da separação, da solidão e da depressão. Porque juntas fazemos a nossa história, aquela que vem depois do patriarcado, do capitalismo e do colonialismo, em que nenhum ser vivo ficar para trás.

Não estão sozinhas porque a vida é muito mais divertida, simples e verdadeira quando desobedecemos ao que dizem as elites e obedecemos ao que diz o coração.

Não estão sozinhas.
Não estamos sozinhas.

Mensagem às activistas presas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e, posteriormente, levadas a tribunal. Processo judicial que se arrasta, com nova audiência marcada para dia 16.

 Publicada, entre outras, em: https://naoestaosozinhas.pt

Notas: O Kiko, também já foi preso e levado a tribunal por dizer publicamente umas verdades, na presença do primeiro dos ministros (o que preside ao concelho) e seus correlegionários politico-ideológicos e patrões/empresários/empreendedores/corporativos, cujos interesses o Estado garante e os contribuintes pagam e sofrem as consequências, dos crimes pelos mesmos cometidos. 

Ecocida: que ou o que é agente ou causador de ecocídio.

Ecocídio: destruição intencional de um ecossistema.

Dicionário da Língua Portuguesa - Porto Editora, Lda, 2009


 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

NÃO AO NOVO GASODUTO!


Comunicado | Não ao novo gasoduto!

Campanha Gás é Andar para Trás opõe-se à construção do novo gasoduto entre Portugal e Espanha.

Hoje os governos de Portugal, Espanha e França reúnem para decidir os detalhes de um plano criminoso: a expansão da infraestrutura fóssil em plena crise climática. Trata-se da construção da terceira conexão via gasoduto entre Portugal e Espanha, de Celorico da Beira até Zamora, com seguimento no gasoduto entre Barcelona a Marselha (nova ligação entre Espanha e França).

A Campanha Gás é Andar para Trás opõe-se à construção desta infraestrutura ociosa que nos prende ao vício do gás fóssil e impede reais soluções.

O novo gasoduto não vai transportar energia renovável

A denominação “corredor de energia verde” é mais uma tentativa do governo português de pintar de verde um projeto poluente e criminoso. As energias renováveis – solar, eólica, ondas, etc – não necessitam de um gasoduto.

Segundo o governo, o gasoduto é “verde” porque servirá para transportar hidrógenio, algures no futuro.
Em primeiro lugar, Hidrogénio não é uma energia renovável, precisando de uma fonte de energia para ser produzido. Não há garantia de qual será a energia utilizada para produzir esse hidrógenio, sendo a maioria do hidrógenio atualmente produzido através de combustíveis fósseis.
Em segundo lugar, sabemos que a infraestrutura de gasodutos não tem capacidade técnica para transportar 100% hidrógenio visto ser um gás instável e que cria microfissuras nos gasodutos. Assim, a infraestrutura de gasodutos atual é capaz de transportar no máximo 20% de hidrogénio necessitando de ser misturado com gás fóssil. Assim, mesmo no melhor cenário, será necessário que no mínimo 80% da matéria a ser transportada seja “gás natural”, um combustível fóssil.

Descobre mais sobre hidrogénio AQUI.

O novo gasoduto bloqueia uma transição energética

Este projeto fóssil desvia financiamento público. Tratam-se de milhões de euros de fundos públicos a serem utilizados para uma nova infraestrutura fóssil ao invés de serem utilizados para a construção de infraestruturas de energias renováveis e para garantir uma transição justa para todos os trabalhadores da indústria fóssil. Estes investimentos em gás fóssil não são compatíveis com a trajetória de neutralidade climática da União Europeia e não podem ser considerados investimentos sustentáveis ou com contributo para os objetivos climáticos europeus. Fazê-lo é apenas estender novamente o tapete à promoção de projetos obsoletos e extremamente prejudiciais para a vida de todas as pessoas.

Em plena crise climática, em que enfrentamos cheias e secas extremas, um gasoduto é uma arma de crime contra a vida e uma infraestrutura ociosa que nos prende ao caos climático e impede a real transição.

O novo gasoduto não vai levar a preços de energia e gás mais baratos

A causa principal da inflação atual é gás fóssil, como refere a Agência Internacional de Energia: “Os altos preços da energia estão a causar uma enorme transferência de riqueza dos consumidores para os produtores, para níveis similares aos de 2014 no caso do petróleo, mas totalmente sem precedentes no caso do gás natural. Os preços altos dos combustíveis são responsáveis por 90% do aumento dos custos médios da geração de eletricidade a nível global, com o gás natural à cabeça, sendo responsável por mais de 50% do aumento.”

Ao mesmo tempo que os preços de gás dispararam os lucros das empresas fósseis bateram recordes. O nosso dinheiro está a ir diretamente para os bolsos dos acionistas. A construção de novas infraestruturas de gás fóssil só alimentam este vício e especulação.

Ao mesmo tempo, as energias renováveis como solar e eólica nunca tiveram tão baratas e acessíveis. Aliás, com o mesmo investimento que a Europa tem feito na expansão de gás fóssil – com mais importações e mais infraestruturas – seriamos capazes de produzir mais 10% de energia, se fosse antes utilizado para aumentar de capacidade de energia solar.
O plano para soberania e democracia energética que garante energia acessível a todas é energia pública e 100% renovável.

Hoje voltamos a dizer Não ao Novo Gasoduto!

Não é a primeira vez que o governo português tem este plano criminoso. Em 2018 o movimento pela justiça climática lutou contra este mesmo projecto, que foi cancelado por pretender atravessar património mundial. Hoje o movimento pela justiça climática reitera a sua posição: não deixaremos a construção de mais armas de crime contra a vida de todas as pessoas que têm como único fim o lucro da indústria fóssil.

Via: https://www.climaximo.pt/2022/12/09/comunicado-nao-ao-novo-gasoduto/