sábado, 20 de agosto de 2022

Aos Poetas - Miguel Torga


 
Somos nós 
As humanas cigarras. 
Nós, 
Desde o tempo de Esopo conhecidos... 
Nós, 
Preguiçosos insectos perseguidos. 
 
Somos nós os ridículos comparsas 
Da fábula burguesa da formiga. 
Nós, a tribo faminta de ciganos 
Que se abriga 
Ao luar. 
Nós, que nunca passamos, 
A passar... 
 
Somos nós, e só nós podemos ter 
Asas sonoras. 
Asas que em certas horas 
Palpitam. 
Asas que morrem, mas que ressuscitam 
Da sepultura. 
E que da plantura 
Da seara 
Erguem a um campo de maior altura 
A mão que só altura semeara. 
 
Por isso a vós, Poetas, eu levanto 
A taça fraternal deste meu canto, 
E bebo em vossa honra o doce vinho 
Da amizade e da paz. 
Vinho que não é meu, 
Mas sim do mosto que a beleza traz. 
 
E vos digo e conjuro que canteis. 
Que sejais menestréis 
Duma gesta de amor universal. 
Duma epopeia que não tenha reis, 
Mas homens de tamanho natural. 
 
Homens de toda a terra sem fronteiras. 
De todos os feitios e maneiras, 
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele. 
Crias de Adão e Eva verdadeiras. 
Homens da torre de Babel. 
 
Homens do dia-a-dia 
Que levantem paredes de ilusão. 
Homens de pés no chão, 
Que se calcem de sonho e de poesia 
Pela graça infantil da vossa mão.
 
Em: Miguel Torga, Antologia Poética - obra completa - Círculo de Leitores, 2001, pp.85/6