segunda-feira, 29 de julho de 2024

ANTI-COLONIALISMO E "DESENVOLVIMENTO"

Momentos primeiros da construção

Nestes momentos primeiros da construção
Após o desbravar das matas dos horizontes
Não perguntes quem são os poetas,
vem comigo e repara bem

Nestes tempos pioneiros da produção
Os recém-chegados e os veteranos sejam muitos
A fazer com que os radis naveguem
Fecundem a terra
E que as ferramentas torneiem e afinem
A engrenagem do processo

Sob estes ventos soalheiros da revolução
Que as quedas não sejam definitivas
E que os desfalecimentos sejam vencidos
Pela certeza da vitória que amanhecerá
Nas frescuras das madrugadas.

José Carlos Schwarz

 

“Desenvolvimento”: conceito, ideia, teoria(s), estratégia(s), política(s), são muitas as aceções e concretizações desta palavra, presente no colonialismo, no período das independências dos países colonizados e no neocolonialismo, ou seja, é uma palavra omnipresente há mais de um século.

Na realidade, ela remonta, pelo que sabemos, ao século XIX, em estreita ligação com a emergente teoria da modernização, no continente Europeu. Bebendo do evolucionismo, aponta para processos de mudança linear que retiram as sociedades da sua forma tradicional, conduzindo-as a formas modernas de organização política, económica, dos costumes, etc. Esta teoria e, sobretudo, a dicotomia tradicional / moderno advêm não só de processos históricos e ideológicos no seio da Europa mas também da visão que os países colonizadores construíram dos povos que viviam nos territórios ocupados a partir do séc. XV.

Foi, assim, emergindo uma distinção do mundo entre os/as que estão “à frente” e os que estão “atrás” nesse processo de modernização ou de… desenvolvimento. E esse processo é universal e unívoco.

Esta visão linear da história é comum aos vários quadrantes ideológicos da época, distinguindo-os a noção de quem são os atores do desenvolvimento e o fim do mesmo. De forma muito generalizante, podemos dizer que para o quadrante liberal / capitalista o crescimento económico e a “mão invisível” dos mercados conduz à riqueza dos Estados. No quadrante marxista, cabe ao Estado assegurar a produção e também a distribuição da riqueza pela população.

A ideia de desenvolvimento ganhou grande projeção no pós-II Guerra Mundial, tanto a nível dos Estados como a nível inter-Estados. Da Europa reconstruída, e ainda colonial, e dos Estados Unidos da América, bem como das novas organizações internacionais criadas após o período bélico, surge uma nova forma de marcar a dicotomia entre “tradicionais” e “modernos”: “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”.

Esta ideia de desenvolvimento assenta, acima de tudo, na economia e no crescimento económico como via única para o “progresso”, que é mensurado através do PIB per capita: isto é, dividindo a riqueza da nação pelo número de pessoas encontra-se o estado de avanço da mesma, uma média que encobre as formas de distribuição, ou não, dessa riqueza. Desenvolvimento, crescimento, progresso são palavras que foram ganhando, assim, um certo grau de sinonímia.

Com os graduais processos de descolonização acentua-se a dicotomia e a ideia que os países “subdesenvolvidos” devem seguir os passos dos “desenvolvidos”, um processo de imitação (ou de tentar apanhar os da frente) que os levará ao bom rumo. O “subdesenvolvimento” é encarado como um problema, bem como a coexistência, em muitos destes países, de caraterísticas que tanto podem ser de sociedades modernas como tradicionais. Estes países necessitam, assim, de ajuda externa para fazerem a transição, ou seja, de uma espécie de tutela que os oriente nesse caminho.

No entanto, esses países tinham, há muito, desde o período colonial, uma função na economia mundial: eram fornecedores de matérias-primas e de mão-de-obra escrava. A chamada Divisão Internacional do Trabalho correspondeu aos processos históricos de atribuição – não necessariamente desejada – a países e regiões determinada especialização nos processos produtivos mundiais, por exemplo: produzir e exportar cacau (matéria-prima) ou produzir e exportar chocolate (matéria transformada). No entanto, estes processos não têm igual valor nas trocas mundiais: 1 kg de cacau é muito mais barato do que 1 kg de chocolate… Por isso, se entende que o desenvolvimento de um Estado deve passar pela sua industrialização. Nesta visão de modernização, a agricultura e os/as camponeses foram, de forma geral, vistos/as como entraves aos processos de desenvolvimento. Logo, o meio rural foi também taxado como ‘atrasado’. Um país desenvolvido tem que passar pelo processo de urbanização e pela transformação dos/das camponeses/as em trabalhadores/as assalariados/as na indústria ou nos serviços.

As lutas de libertação, dos anos 50, 60 e 70, na sua grande diversidade, ora colocaram o desenvolvimento como desígnio da independência, ora o criticaram como imperialismo cultural do Ocidente. Mas, fundamentalmente, procuraram conceber visões distintas da aceção dominante de ‘desenvolvimento’.

No mundo bipolar da Guerra Fria, entre o dito “Primeiro Mundo” capitalista e o “Segundo Mundo” comunista, o “Terceiro Mundo” (noção pejorativa, mas que ganhou um cunho político reivindicativo por parte desses países que a usavam como modo de afirmação) foi-se posicionando, tanto quanto possível, fora desse xadrez (por exemplo, o Movimento dos Não-Alinhados) e/ou criando teorias e desenhando trajetórias alternativas às visões de desenvolvimento capitalista ou comunista.

Vamos dar uma breve panorâmica sobre algumas dessas visões, de forma não exaustiva e tendo em mente que neste exercício de síntese não conseguimos trazer toda a complexidade que cada uma abraça.

Nos anos 40-50, deu-se a confluência do pensamento e análise do sistema mundial de economistas de vários pontos do mundo, desde Raul Prebish e Celso Furtado, da Argentina e Brasil, respectivamente, passando por Samir Amin, do Egipto, até, alguns anos mais tarde, Gunder Frank, na Alemanha, que coincidam em alguns pontos: o capitalismo e o colonialismo são indutores do “subdesenvolvimento”.

 

Detalhadamente, isso quer dizer que:
– a economia de um grupo de países é condicionada pelo desenvolvimento e expansão de outros
– alguns países só se podem expandir subordinadamente à expansão dos dominantes
– o processo de acumulação capitalista acontece apenas em algumas partes do mundo
– o desenvolvimento e o sub-desenvolvimento são fenómenos de um único processo global: o capitalismo.

 

Uma das principais razões para tal, do ponto de vista económico, é que o preço dos produtos primários (algodão, cacau, minérios, etc.) não tem o mesmo valor que os produtos transformados. E, no mundo, existem países – na sua maioria países que foram colonizados por países ocidentais – que são produtores e exportadores apenas de produtos primários. Enquanto que outros se especializaram na produção de produtos manufaturados, criando monopólios dos mesmos, por exemplo, das tecnologias.

 

 

O valor que resulta da transformação dos produtos primários fica, assim, em alguns países, enquanto que outros se vêm desprovidos dessa possibilidade. Há como que uma transferência de valor de países ou regiões para outras regiões, que acumulam e monopolizam capital financeiro.

 

E, se uns exportam apenas produtos primários (mais baratos) e importam produtos transformados (mais caros) ficarão sempre a perder, enquanto que os que importam produtos primários e exportam produtos transformados ficam sempre a ganhar, o que podemos ver como assimetrias e injustiças no comércio internacional.

 

Esta leitura do mundo ficou conhecida como a “teoria da dependência” e cruzou-se com a teoria dos sistemas-mundo, que faz corresponder aos países produtores de matérias-primas a noção de “periferia” e aos produtores de produtos transformados, a de “centro”. A periferia está condenada a uma condição de subordinação ao centro e é despojada dos seus recursos naturais. Algo que, já no século XIX, o indiano Dadabhai Naoroji enunciara na sua “drain theory” (que se poderá traduzir livremente como “teoria da drenagem de recursos”).

 

O que fazer então?

• “Desconectar” (um termo de Samir Amin) do sistema mundial.
• Definir internamente os preços dos produtos primários, de acordo com o valor do trabalho, por exemplo, e não seguir os preços das bolsas ou criados pelos países compradores.
• Substituir as importações de matérias transformadas (tecnologias, por exemplo) por produção interna, o que implica industrializar os países.
• Basear-se nos seus meios, diminuindo relações de troca com outros países, ou seja, protecionismo.
• Ter intervenção estatal para planear e intervir na economia.
• Dar atenção à equidade sócioeconómica, criando mecanismos de redistribuição económica, ao pleno emprego e à educação como fatores de “desenvolvimento”.

 

Alguns destes aspectos alimentaram a política de duas comissões regionais da ONU, criadas no final da década de 40, a Comissão Económica para a América Latina e a para a Ásia e Pacífico, mas foi principalmente a primeira que mais a absorveu, no que ficou conhecido como a “Doutrina CEPAL”.





Devido a fatores internos e externos, muitos dos planos das classes políticas dos países, no pós-independência, não conduziram aos objetivos e aos valores idealizados. Pouco a pouco foram submetidos às chamadas políticas de “ajustamento estrutural” – que implicavam cortes significativos nas políticas sociais, por exemplo – levadas a cabo pelos organismos financeiros internacionais e regionais, como o Banco Mundial ou o Banco Africano de Desenvolvimento, em nome do… desenvolvimento. A pobreza, a fome foram e continuam nos discursos sobre África, Ásia e América, como fenómenos aos quais parecem condenadas.

Também na Europa se ouviam vozes críticas à noção e à prática do “desenvolvimentismo”. André Gunder Frank, crítico, por exemplo, das listas de indicadores de desenvolvimento, que se baseavam (e baseiam) nos valores e na visão de sociedade europeia. Ou o italiano Giovanni Arrighi que cunhou a expressão “ilusão desenvolvimentista”, em que criticava a aposta na industrialização como único meio dos países “subdesenvolvidos” chegarem ao desenvolvimento.

O desenvolvimento continuou a ser colocado em questão, criticado, dissecado, surgindo, a partir dos anos 80 e 90, muitas ideias alternativas, como o “pós-desenvolvimento”. Algumas delas assentam nas mesmas críticas que políticos, académicos, movimentos faziam nas décadas anteriores: o desenvolvimento é uma ideia eurocêntrica, que é preciso superar, recorrendo às visões específicas que os vários povos, na sua complexidade, têm para o bem-estar das suas comunidades.

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Links úteis

Bibliografia

Akyeampong, Emmanuel, African Socialism or the search for an indigenous model of economic development? African economic history working paper series No. 36/2017

Cabral, Amílcar, Análise de algumas formas de resistência. Edição revista e comentada. Outro modo. Odivelas, 2020.

Hettne, Bjorn, Le teorie dello sviluppo, ASAL, 1997

Maluf, Renato, Atribuindo sentido(s) à noção de desenvolvimento econômico, Estudos Sociedade e Agricultura, 15, outubro 2000: 53-86

Sarr, Felwine, Development in Africa: “We need to review the entire terminology”, iD4D Sustainable Development News, 11 outubro 2016

Artigo publicado em Outras Economias n.º 3 - https://outraseconomias.pt/outrasec/