quinta-feira, 25 de julho de 2024

Acumulação primitiva do capital

 


Descodificar a economia implica confrontar-nos com alguns conceitos da teoria económica que podem parecer, na sua formulação, algo complexos, mas que na realidade dizem respeito a fenómenos facilmente compreensíveis. A acumulação primitiva do capital é um destes conceitos, neste caso da teoria económica marxista, que nos conta uma história, uma história de violência, violência que está na origem do advento do capitalismo moderno.

Os séculos XVIII e XIX foram testemunhos de uma transformação profunda na Europa, mas também nos Estados Unidos ou no Japão, denominada de revolução industrial, ou seja, a passagem de uma sociedade baseada na agricultura e na produção artesanal, para um modelo assente na produção mecanizada em massa e na predominância do mercado e do trabalho assalariado. Esta revolução tornou-se possível graças a um conjunto de variáveis, como a invenção da máquina de vapor e a domesticação das energias fósseis, as inovações técnicas e a generalização dos sistemas de patente, o desenvolvimento de meios de transportes mais eficientes, nomeadamente da ferrovia, o acesso à eletricidade, os processos de urbanização e o êxodo rural, entre muitos outros fatores. Mas todas estas inovações, estas infraestruturas, estas máquinas, esta mão de obra que permitiram moldar uma nova era representam investimentos colossais. Como foi possível mobilizar tantos meios financeiros para financiar uma tão grande transformação?

Ainda que não sendo o primeiro a questionar a origem do capital, este conceito foi desenvolvido por Karl Marx que propõe uma leitura histórica sobre este fenómeno baseando-se na realidade inglesa.

A partir do final do século XVI, a parte das terras senhoriais até então livremente cultivadas pelas populações rurais, são submetidas a um processo de privatização e os campos, na altura abertos (open fields), passam a ser vedados e explorados por grandes proprietários, essencialmente para a criação de ovelhas e a produção de lã. Este processo põe fim aos comuns e ao direito de uso coletivo tradicional (era de facto um direito reconhecido) , que incluía também os direitos de pastagem, o uso da floresta e da madeira ou a respiga. Este fenómeno é denominado “Enclosures”, isto é, a apropriação e privatização das terras comunais, privando as populações rurais da sua atividade de produção direta.

Apesar das várias revoltas camponesas violentas, este novo sistema fundiário e produtivo enraizou-se e levou a êxodos rurais significativos. Camponeses/as e pastores/as foram engrossar a população urbana à procura de trabalho, constituindo a “reserva” necessária para fornecer mão de obra barata no quadro da revolução industrial. Chegou-se ao ponto de criar leis contra os “vagabundos”, com ameaças legais de prisão, tortura, trabalho forçado ou morte para quem não tinha uma ocupação, intensificando a acumulação das pessoas nos espaços urbanos.

O advento da propriedade privada das terras agrícolas e o início subsequente da produção agricola e criação intensiva permitiu uma acumulação de riqueza por parte dos novos donos da terra. Por outro lado, a desapropriação das populações camponesas dos seus meios de produção permitiu a criação de uma classe assalariada, que só detinha a sua força de trabalho.

Mas o que é que isto tudo tem a ver com o tema da revista? O processo de acumulação primitiva do capital foi também alimentado pela colonização e a escravatura. Nas colónias, o cultivo do tabaco, da cana de açúcar ou do algodão tinham uma rentabilidade muito elevada, em particular com o recurso a uma mão de obra gratuita e intensamente explorada, os escravos/as. Tanto a comercialização dos produtos coloniais como o próprio comércio das pessoas escravizadas permitiu a acumulação de imensas fortunas e a criação de uma grande burguesia comerciante. Esta atividade e os seus fluxos de mercadoria favoreceu por sua vez a industrialização de cidades portuárias importantes (Liverpool, Bordéus, Nantes…) e das regiões circundantes. Ou, nas palavras de Karl Marx:

A escravatura direta, bem como as máquinas e o crédito, etc., são o ponto de apoio da nossa industrialização atual. Sem a escravatura não teríamos algodão, sem algodão não teríamos a indústria moderna. Foi a escravatura que deu valor às colónias, foram as colónias que criaram o comércio mundial, foi o comércio mundial que constituiu a condição necessária da grande indústria mecânica. (MARX, Karl. Miséria da filosofia. Lisboa: Publicações Escorpião, 1974)

 
 
 

Cacau colono

 

Nossos irmãos de Angola
De Angola e Moçambique
Penaram 30 anos de vida
Nas roças de cacau
Dos feudos de S. Tomé

Cacau
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Para os donos de S. Tomé

Cacau
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Inferno de S. Tomé

Cacau
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Café
Inferno de S. Tomé

Pelo cacau colono
Mão-de-obra em S. Tomé
Na morte de S. Tomé

Rusga pelo cacau
Nos anos 30
Massacre pelo cacau
Cinquenta e três

Cacau
Fechou as ilhas
Encurralou
Enquistou

Não abrir o quisto!
Não abrir o quisto!

Alda Espírito Santo

 
 

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