sábado, 27 de julho de 2024

FOI UM SONHO LINDO QUE ACABOU: AS OLIMPÍADAS POPULARES DE BARCELONA (1936) - EUPREMIO SCARPA

Fotografia emblemática "da Guerra Civil Espanhola: a jovem Marina Ginestà, de 17 anos, vestida de miliciana com arma ao ombro, no terraço do Hotel Colón" na Praça da Catalunha, Barcelona, Espanha. 

Autor: Hans Gutmann, fotojornalista alemão
(21 de julho de 1936) 

 

Era 1936, ano de Jogos Olímpicos, a manifestação esperada e aguardada por todos como o momento alto de fraternidade e paz entre as nações de todo o mundo.

Assim não foi. As Olimpíadas de 1936, de Berlim, serão recordados como os jogos da exaltação e arrogância racista e violenta de Hitler e dos seus seguidores.

Mas há um ano alternativo de 1936, menos conhecido. Um ano de eventos que poderiam ter contrabalançado esta propaganda nazi disfarçada de evento desportivo. Eram as Olimpíadas Populares de Barcelona. Eis a sua epopeia.


1931: Berlim escolhida como sede dos Jogos Olímpicos de 1936

A eleição de Berlim como sede das Olimpíadas aconteceu em 1931, quando a Alemanha ainda vivia sob a instável democracia da República de Weimar. A cidade de Barcelona também se candidatara, tendo até já preparado toda a logística para receber um evento dessas dimensões (uma vila olímpica, o estádio de Montjuïc), dado que em 1929 recebeu a Exposição Universal. Barcelona era a favorita, mas, apenas dez dias antes da escolha da cidade-sede dos Jogos de 1936, em 14 de Abril de 1931, fora proclamada a II República Espanhola, tendo sido determinante para a derrota da candidatura catalã. Diversos membros do Comité Olímpico Internacional (COI), desconfiava do governo republicano recém-eleito, decidiram optar por Berlim. OOs eventos ocorridos apenas dois anos depois - a ascensão de Hitler e do Partido Nacional-Socialista - já previam um aproveitamento deste evento global como caixa de ressonância e propaganda deste regime autoritário e racista, mas tal não demoveu o COI.

Começou então uma massiva acção de boicote aos Jogos de Berlim de 1936. O movimento reuniu desde a esquerda tradicional e grupos liberais até organizações judaicas, passando por federações desportivas e atletas que acreditavam que as Olimpíadas não deveriam ser utilizados para tais fins. Além de Espanha, tal movimento ganhou repercussão - ainda que efémera - em países como Grã-Bretanha, França, Suécia, Checoslováquia e Holanda, tendo particular força nos Estados Unidos, onde algumas federações debateram a adesão ao boicote e a comunidade judaica se mobilizou pela causa. Os alemães exilados fora de seu país também fizeram campanha contra os jogos e, individualmente, atletas judeus de diversas nações aderiram ao movimento. Porém, esta mobilização não teve efeitos práticos, tendo, por exemplo, os EUA decidido participar e o evento seguido em frente na sua preparação.

Manifestou-se então, mesmo se com um certo atraso (faltavam seis meses para o início dos Jogos), a decisão de realizar um evento paralelo às Olimpíadas de Berlim. Embora a ideia já estivesse a ganhar força em Espanha e no movimento desportivo internacional, foi decisivo o resultado da eleição espanhola de fevereiro de 1936, com a vitória da Frente Popular, que reunia todas as forças progressistas e de esquerda espanhola (com o tácito apoio dos anarquistas também).

 

 As Olimpíadas Populares são uma realidade!

Foi criado o Comité Catalão Pró-Desporto Popular que pressionou o governo para boicotar oficialmente os Jogos de Berlim e financiar uma Olimpíada verdadeiramente inclusiva e universal. Sem esperar resposta do governo, o novo comité organizador tinha menos de três meses para concretizar o evento. A organização não foi simples, já que tinham um orçamento muito limitado - as Olimpíadas Populares só contaram com um financiamento modesto, mas importante, dos governos de Catalunha, Espanha e França, à época também sob um governo de Frente Popular.

O evento contaria com 16 modalidades. Haveria modalidades olímpicas tradicionais, como futebol, râguebi, basquetebol, andebol, beisebol, boxe, ténis, ténis de mesa, atletismo, natação, ciclismo, remo, tiro e luta, além de outros, entretanto, retirados: pelota basca e xadrez. Os jogos contariam ainda com exibições de ginástica e aviação sem motor. Além disso, as competições seriam acompanhadas de uma programação cultural, com mais de 3.000 artistas a participar em danças populares, música e teatro. Esta programação concretizava a concepção de que as duas dimensões - desporto e cultura - eram inseparáveis e contribuíam para a formação integral dos indivíduos. Entre os participantes das actividades culturais esteve o grande violoncelista Pau Casais.

Um dado impressionante é que os Jogos alternativos de Barcelona contariam com um número de participantes maior que os de Berlim, embora não contassem com todos os atletas mais conhecidos, como o evento oficial. A capital alemã recebeu pouco mais de 4.000 atletas de 49 países, enquanto nas Olimpíadas Populares participaram cerca de 6.000 atletas de 23 países. Ainda eram esperadas outras 20 mil pessoas para acompanhar os Jogos. A maior delegação estrangeira era a francesa, com 1.500 atletas, sendo 500 de federações oficiais, seguida da Suíça com 200 e da Bélgica, Holanda e Reino Unido, com 50 atletas cada.

As Olimpíadas Populares, além de receberem delegações nacionais, possibilitaram a inscrição de equipas regionais e locais que estavam a lutar pela sua autonomia ou independência. Foram inscritas, por exemplo, delegações da Catalunha, do País Basco e da Galiza, dentro do território espanhol, e da Alsácia, do território francês. Além disso, estiveram presentes equipas das colónias francesas em Marrocos e Argélia, da Palestina, à época em mãos inglesas, e dos territórios espanhóis de África. Tudo isto simbolizava, claro, o apoio aos movimentos independentistas e um sinal de solidariedade com os povos oprimidos. Haveria também a participação de representações de exilados políticos alemães, auntríacos e italianos e uma equipa de judeus de diferentes nacionalidades.

Outra prioridade do evento era a de estimular a participação das mulheres nas competições. As Olimpíadas «oficiais» contaram sempre com escassa presença feminina, que enfrentava a oposição do próprio fundador dos jogos modernos, Pierre de Coubertin. Nos Jogos de Berlim, por exemplo, as atletas foram apenas 8% do total de inscritos. Mesmo não havendo dados certos sobre o número de mulheres participantes no evento, entidades e federações desportivas femininas estiveram na organização e competiram no evento.

Muitos dos atletas participantes foram enviados por clubes e associações desportivas ligadas a sindicatos e partidos de esquerda, e não por comités patrocinados pelos Estados - com algumas exceções como a França, que inscreveu atletas para as duas Olimpíadas. No final, participaram dez federações internacionais, oito espanholas e seis catalãs. O objetivo não era realizar mais uma competição internacional de atletas amadores ou outra edição dos tradicionais jogos operários, mas sim organizar um grande evento desportivo que contrastasse com os Jogos «oficiais» de Berlim.

Na tarde de Sábado, 18 de junho, a cidade estava repleta de atletas, artistas e músicos, num verdadeiro espírito de fraternidade, amizade e solidariedade. O estádio de Montjuïc fervilhava de actividade, com muitos atletas estrangeiros que aí estiveram para treinar e conviver com outros participantes. Estava tudo pronto para a grande inauguração do dia seguinte. Infelizmente, corriam já rumores sobre um golpe militar nos territórios das colónias espanholas em África, mas ainda havia esperança de que tudo voltasse ao normal e os Jogos pudessem começar sem transtornos.

 

Um sonho interrompido: 

o golpe de 19 de julho e o início da Guerra Civil

Na noite de 18 de julho, Pau Casals dirigiu os ensaios da Nona Sinfonia de Beethoven que a orquestra, com a colaboração do coral Orfeó Gracienc, iria apresentar, no dia seguinte, no Teatre Grec de Montjuïc, na abertura das Olimpíadas. Durante o ensaio, apareceu um emissário 

oficial que sugeriu que se interrompesse o ensaio e se refugiassem num lugar seguro: já circulavam notícias sobre uma revolta militar. Casals ficou chocado, mas não quis parar; dirigindo-se aos músicos, disse «Não sei quando nos encontraremos novamente. Proponho que, antes de nos despedirmos, todos executemos a sinfonia juntos.» E, levantando a batuta, continuou o ensaio.

O coral também havia ensaiado o hino das Olimpíadas Populares, escrito pelo poeta Josep Maria de Segarra - - «sob o céu azul / a única palavra apropriada / um grito de alegria, Paz» -, mas este nunca seria tocado oficialmente. No dia seguinte, de madrugada, uma insurreição militar explodiu e tentou controlar a cidade. Numa crónica da época, conta Auguste Delaune, dirigente francês que participou da organização das Olimpíadas: «Foram dois dias de combates até que as forças legalistas controlassem a capital catalã, com um saldo de centenas de mortos e cerca de mil feridos.

Com o início do conflito, muitos dos atletas estrangeiros deixaram o país. Mas houve atletas que, entretanto, decidiram ficar e colaborar com a República, principalmente franceses e exilados alemães e italianos. Segundo o historiador Antony Beevor, no seu livro The Battle for Spain, «muitos dos atletas estrangeiros uniram-se, no dia seguinte, aos operários para lutar contra o fascismo, e uns duzentos deles incorporaram-se, mais tarde, nas colunas das milícias populares.» Não temos números exactos, mas é certo que muitos atletas colaboraram com a resistência, entrando nas Brigadas Internacionais que, entretanto, estavam a ser organizadas. Conta um atleta: «Viemos para desafiar o fascismo num estádio e deram-me a oportunidade de combatê-lo!»

Por exemplo, a nadadora anarquista suíça Clara Thalmann entrou na Coluna Durruti. Hans Gutmann, um fotojornalista comunista alemão que veio a Barcelona para cobrir as Olimpíadas Populares, ficou a acompanhar o início do conflito, imortalizando diversos momentos da Guerra Civil. É dele uma das fotografias mais emblemáticas da Guerra Civil Espanhola: a jovem Marina Ginestà, de 17 anos, vestida de miliciana com a arma ao ombro, no terraço do Hotel Colón. O que era desconhecido é que esta heroína foi uma das atletas preparadas para competir nas Olimpíadas, nos 80 metros, nos 600 metros e no salto em comprimento (como curiosidade, estas são as suas marcas individuais: 12 segundos nos 80 metros, 2' 15:02 nos 600m e 3,85 no salto em comprimento).

As Olimpíadas Populares foram um sonho interrompido. Mas um sonho que ficará, eternamente, na memória de todos os libertários e democratas como um exemplo de solidariedade e fraternidade internacionalista.

Viva o desporto popular!

Artigo publicado no Jornal A BATALHA, n.º 301, ABRIL / JUNHO DE 2024