sexta-feira, 21 de abril de 2023

Calibã e a Bruxa de Silvia Federici

De onde vêm os mecanismos de controlo do corpo feminino? Onde nasceu a violência sistémica contra a mulher? De que forma é que o advento do capitalismo contribuiu para as sucessivas vagas de violência contra ela? Quem tirou proveito da repressão das mulheres? Em Calibã e a Bruxa, Silvia Federici propõe-se a responder a estas (e outras) questões ao explorar as raízes históricas da opressão contra as mulheres.

Na sua obra, Federici percorre a posição da mulher trabalhadora na transição para o capitalismo, desde as revoltas populares da Alta Idade Média às mudanças introduzidas pela repressão imposta pela igreja católica.

Uma das propostas compreensivas lançadas na obra prende-se com a degradação da figura feminina ao longo do século xiv, abrindo caminho para a acumulação laboral e o estabelecimento de diferenciações de género na distribuição do trabalho na transição para o capitalismo. Este fenómeno abriu também portas, segundo a análise da autora, para um dos processos mais violentos da história, direcionado às mulheres, com consequências ainda hoje inscritas na nossa existência: a caça às bruxas.

Remetendo-nos para as revoltas populares dos séculos xvi e xvii, Federici expõe como qualquer resistência a uma usurpação aos bens comunais, que acompanhou a edificação das formas primordiais do estado capitalista, foi sucessivamente reprimida pela perseguição e desagregação de todas as formas de socialização coletiva: desportos, jogos, danças, festivais e afins. A progressiva descoletivização do trabalho reprodutivo e a imposição de um uso mais «produtivo» dos tempos de lazer, acompanhadas de uma crise populacional causada pela peste negra (que dizimou entre 30 a 50%% da população europeia) e da acumulação de riqueza de um setor da população, vieram introduzir biopolíticas de controlo à natalidade. A necessidade estatal de controlo (aumento) da natalidade, a fim de repor a mão de obra dizimada pela peste negra, vem, de acordo com a autora, inaugurar uma onda de repressão brutal contra as mulheres que detinham formas de controlar a natalidade e conhecimento acerca do processo reprodutivo. A necessidade de mão de obra acarreta a necessidade da sua produção - gestação, alimentação e cuidado da mão de obra só seria possível com o trabalho reprodutivo, progressivamente desvalorizado, atribuído às mulheres. A presente obra torna claro o contexto em que surge a caça às bruxas.

Apontando a lacuna que Michel Foucault deixou no seu trabalho ao excluir a caça às bruxas e a demonização do corpo da sua análise à disciplinarização do corpo, Federici apresenta estes processos como uma parte fundamental da subjugação da mulher na génese do capitalismo. A perseguição, agressão, violação e assassinato de milhares de mulheres durante a caça às bruxas deixa a nu o mecanismo que condenou as mulheres às sombras: «bruxas» eram todas que curavam, que detinham conhecimento, que abortavam, que eram casadas, que sabiam ler e escrever - alvos a eliminar, de forma violenta, para ceifar qualquer intenção de autodeterminação feminina.

A disciplina do corpo feminino, o seu controlo, a imposição do trabalho reprodutivo (e a sucessiva desvalorização deste) à mulher foram condição necessária para definir a classe trabalhadora na sua génese, excluindo inicialmente a figura feminina - ocupada com o trabalho reprodutivo, não remunerado -, e também para a disciplinarização violenta do «Novo Mundo».

Os parceiros de opressão (chamemos-lhe assim) da mulher, na era da caça às bruxas, foram as populações indígenas do chamado «Novo Mundo». Analisando os dispositivos de controlo utilizados para subjugar as populações nativas da América do Sul e África, a autora encontra vários pontos em comum na resistência à disciplinarização (seja ela a da moral cristã, seja a da colonização - ambas servindo a transição para o capitalismo): a remoção forçada de populações da sua terra de origem, o empobrecimento em larga escala e o lançamento de campanhas de «cristianização» para destruir a capacidade de autonomia e relação comunal.

Federici aponta a utilização de meios como a demonização e a desumanização das figuras do «nativo», à semelhança do que aconteceu com a «bruxa» europeia, para justificar a violência brutal com que estas populações foram dizimadas e subjugadas. Explorando vários mitos e a imaginário popular, refere, por exemplo, o mito do canibalismo em África ou em determinadas regiões da América do Sul como forma de desumanização das pessoas escravizadas, sendo este mecanismo de legitimação da exploração de mão de obra escrava. Federici afirma que a bruxa europeia, os nativos da América do Sul e os escravos africanos sofreram um destino comum: providenciar ao capital a mão de obra aparentemente infinita e gratuita necessária para a acumulação de riqueza.

A génese do patriarcado é complexa, e Federici propõe-se a contar a sua história desde o início. Este livro é uma peça incontornável na compreensão da condição feminina, da violência patriarcal e dos mecanismos de controlo do estado capitalista.

TERESA VELASQUEZ 

PELA BIBLIOTECA/LIVRARIA DAS INSURGENTES

LIVRARIADASINSURGENTESLISBOA@

Silvia Federici - Calibã e a Bruxa. As Mulheres, o Corpo e a Acumulação Original

Tradução: Pedro Morais, Edição Portuguesa 1.ª edição, 2020, Orfeu Negro.

Artigo originalmente publicado no MAPA / JORNAL DE INFORMAÇÃO CRÍTICA / MARÇO-MAIO 2023