sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Papel? Qual pap€l?: IDEIAS PARA OUTRO MODO DE PRODUÇÃO

Preços em Crescendo e outras cantigas da Economia esverdeada

Filipe Olival, João Vinagre, João Fialho e, Ilustrações, Ana Farias

 

Ideias para outro modo de produção

Estamos subordinados às leis irracionais e autotélicas do(s) Mercado(s). Por mais que procuremos revelar as suas facetas mais pérfidas, (ainda) pouca força temos para resistir aos seus efeitos. Isto porque dependemos de uma cadeia de abastecimento internacional sobre a qual não temos nenhuma influência e que subentende divisão e exploração social e destruição ambiental.

Por mais utópico que isto possa soar, para termos algum controlo sobre os produtos de que necessitamos para viver (e para viver criando) temos de ser nós a produzi-los. É possível e desejável recriar a indústria do papel segundo princípios cooperativos e agroecológicos. Afinal, o que queremos não é a abolição de um produto, mas a redução dos impactos nefastos da sua indústria, seja em quem nela participa, seja nos ecossistemas sobre os quais é erigida. Portanto, deixamos aqui algumas ideias sobre como poderia ser produzido o papel numa sociedade pós-capitalista.

A iniciativa de organizar a produção de papel de forma ecológica e cooperativa tem de emergir das próprias comunidades (...) No final de contas, a questão-chave é inverter a lógica que subjaz à nossa actividade económica: deixar de produzir para enriquecer uma minoria e começar a produzir para enriquecer tanto comunidades quanto eco-sistemas.

Tendo reconhecido que a lógica da maximização do lucro impulsiona a busca por mão-de-obra cada vez mais barata, sobretudo em países em que a legislação laboral poucos direitos garante aos trabalhadores, mas também a desconsideração peos danos ambientais provocados, parece-nos evidente que uma produção de papel em moldes ecológicos e socialmente justos implicaria uma auto-gestão horizontal. Assim, os próprios cooperantes poderiam decidir democraticamente o montante dos seus salários e o que fazer com o excedente - a sua riqueza comum (commonwealth)(10). No entanto, para evitar cair numa lógica capitalista, as cooperativas de papel não poderiam ter como objectivo competir no mercado com outros produtores; pelo contrário, a produção de papel deveria responder directamente às necessidades da comunidade. Embora, obviamente, se procurasse reduzir o seu consumo. Além disso, o sucesso deste modo de produção depende de relações de apoio mútuo entre produtores de diferentes ramos, consumidores e o resto da comunidade implicada e da partilha de valores que sustentem a cooperação ao invés da competição, o bem comum em detrimento do lucro.

Isso implicaria, claro, que a produção de pasta de papel fosse sustentada pelo cultivo agroecológico, em alternativa ao regime de monocultura. No entanto, como já vimos, o eucalipto é uma planta particularmente problemática nesse sentido. Portanto, parece-nos lógico que se procure uma alternativa viável. Uma possibilidade seria o cânhamo, a mesma Cannabis sativa que, devido aos seus efeitos psicoativos, foi alvo de demonização, perseguição policial e punição judicial desde a segunda metade do século passado, sobretudo por influência dos EUA. Apesar de vários Estados a terem legalizado nas últimas décadas e de termos assistido a uma explosão de «lojas de CBD», onde se podem comprar extratos da planta com teor quase nulo de THC (Tetra-hidrocanabinol, a sua substância psicoativa), em Portugal a utilização desta planta para o fabrico de papel ainda é praticamente inexistente. O que é intrigante, visto que o CBD é extraído sobretudo da flor da canábis, enquanto a pasta de papel é produzida através do caule (embora as suas resistentes fibras também possam ser utilizadas para tecelagem, construção ou até mesmo para criar alternativas ao plástico), o que os tornariam complementares.

A fibra de cânhamo é utilizada para a produção de papel há mais de dois mil anos, e até aos finais do século XIX constituía a sua principal matéria-prima. Os resíduos de cordas, velas náuticas, roupas e trapos, sobretudo feitos de cânhamo ou linho, eram incluídos na sua confecção. Foram impressos em papel de cânhamo tanto notas bancárias quanto jornais e livros, desde os clássicos de Mark Twain, Victor Hugo e Alexander Dumas à Constituição e Declaração da Independência dos EUA e à Bíblia de Gutenberg. A madeira só se torna matéria-prima para pasta de papel com a revolução industrial, o que implicaria a sobre-exploração de florestas.

Em Portugal, a absoluta maioria do papel produzido no presente século provém do eucalipto, sobretudo devido ao seu rápido crescimento (10 a 12 anos até à colheita) em comparação com a de outras árvores. No entanto, o cânhamo apresenta uma série de vantagens sobre o eucalipto, inclusive ter um ciclo cultural de 3 a 6 meses, podendo ser introduzido num regime de rotação de culturas agrícolas e/ou conjugado com outras espécies benéficas para o ecossistema; exige pouca água, fertiliza o solo, previne a sua erosão e absorve quantidades substanciais de cobre, chumbo e cádmio; sequestra maior quantidade CO2 da atmosfera; é menos inflamável, reduzindo a propagação em caso de incêndios; a sua fibra contém até três vezes mais celulose que a madeira; o seu papel, cuja produção não requer substâncias tóxicas de branqueamento, dura centenas de anos mais, sendo resistente à decomposição e ao amarelecimento e podendo ser reciclado até oito vezes (comparado a três vezes no caso do papel de árvore); além disso, as restantes partes da planta podem ser utilizadas para outros fins, incluindo alimentícios, energéticos, medicinais.

Infelizmente, na atualidade apenas 23 fábricas de papel no mundo todo utilizam fibra de cânhamo, sobretudo destinado à produção especializada de alta qualidade. Portugal, apesar de não acolher nenhuma delas, já foi um grande produtor de cânhamo, sobretudo destinado a fibras de tear, inclusive para as velas e cordas das caravelas utilizadas nas explorações marítimas. Esta planta também marca a toponímia portuguesa, como é o caso de Marco de Canaveses, em tempos um imenso canavial (i.e. campo de cânhamo). O Ministério da Agricultura português, que a descreve como «uma planta vigorosa com uma forte raiz aprumada tendo um forte poder estruturante do solo», sublinha que «dada a sua proximidade com a cannabis indica (marijuana) a regulamentação desta cultura é muito restrita» e que «[é] proibido para os produtores de cânhamo resemear a própria semente» (sic). Estas declarações evidenciam as políticas repressivas que subsistem quanto ao uso recreativo dsta planta psicotrópica, apesar do mundialmente reconhecido sucesso das políticas portuguesas de descriminalização das drogas ilícitas.

Embora reconheçamos que esse é um tema que ultrapassa os limites deste artigo, e que existem alternativas ao papel de eucalipto (bambu, algodão, linho, quenafe, bagaço de cana.de.açúcar, espada-de-São-Jorge, etc.), a nossa investigação aponta para a sua viabilidade, tanto em termos ecológicos como de qualidade material. Mas, no final de contas, a iniciativa de organizar a produção de papel de forma ecológica e cooperativa tem de emergir das próprias comunidades(11). Produzir papel em associação directa com consumidores, comerciantes e outros produtores permitiria reduzir o desperdício, melhor estimar as necessidades de cada parte, assim como reduzir custos em intermediários, transporte e taxas alfandegárias. Isto é igualmente aplicável a qualquer outra indústria, nomeadamente à indústria da tinta, de que o Jornal também depende. No final de contas, a questão-chave é inverter a lógica que subjaz à nossa actividade económica: deixar de produzir para enriquecer uma minoria e começar a produzir para enriquecer tanto comunidades quanto ecossistemas.


Notas

(10) Segue-se a sugestão de Massimo de Angelis (2017. Omnia Sunt Communia. Zed Books. London: 111.), como alternativa ao termo «capital [social]», para sublinhar que o que se pretende é reproduzir um sistema social distinto: um sistema comunal (commons).

(11) Por exemplo, a Cooperativa La Chanvrière, em França, produz óleo, sementes, lascas, fibra e granulado de cânhamo, com inúmeras aplicações, entre as quais a pasta de papel.

Transcrito de «ECONOMIA E CREMATÍSTICA», Jornal Mapa n.º 35, Setembro/Novembro de 2022.