quarta-feira, 19 de novembro de 2025

perguntas - poesia de Afonso Dias



no dia mundial da criança

    deixemos suspirar as nuvens
    qual criança?
    quais crianças?
de que cor? 
de que brilhantes?
de que bairro?
de que choça?
de que palha?
de que berço?
     deixemos suar os olhos
     qual criança?
     quais crianças?
da rocinha?
da buraca?
do restelo?
do restolho?
de israel?
da palestina
pequenina?
     deixemos o pensamento
     atrapalhado
     qual criança?
     quais crianças?
da horta da areia?
da quinta do lago?
do desmaio da fome?
do fato vincado?
da festa de serralves?
do algodão doce?
da desilusão?
sem cor ou doçura?
de catar o lixo
com as ratazanas?
do brinquedo caro
no comércio rico?

se é de áfrica é preta!
(nenúfar no mediterrâneo)
se é cigana é nula!
se é loura é bonita!

e dormes sereno?
e dormes serena?

1.6.2018

Em: Afonso Dias, Poesia - largo do mercado, edição bons ofícios associação cultural, 2018, pp. 155/6

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Algumas teses preliminares sobre o conceito de ecocivilização

 

 

John Bellamy Foster (*)

  

 

Na Revolução Industrial do século XIX, em Inglaterra, Newcastle estava no centro da indústria do carvão. A expressão idiomática “levar carvão para Newcastle” surgiu então para indicar levar algo inutilmente para um local onde já estava presente em abundância. Para um pensador ocidental falar para um público na China sobre civilização ecológica (ou ecocivilização) é como levar carvão para Newcastle, uma vez que é na China onde o conceito está mais desenvolvido. No entanto, defenderei que a noção de ecocivilização está intrinsecamente relacionada com o marxismo. Esta palestra terá, portanto, como objetivo examinar o conceito de ecocivilização numa ampla perspetiva ecológica marxista. Neste sentido, tenho dez teses preliminares sobre a ecocivilização.

 

(1) O conceito de civilização ecológica tem origens marxistas e é inerentemente socialista. Surgiu pela primeira vez como uma perspetiva sistemática no final dos anos 1970 e nos anos 1980, na União Soviética, inspirada por considerações do pensamento ecológico de Karl Marx, e foi imediatamente adotada por pensadores chineses. Praticamente não tem presença até hoje no Ocidente, pois está radicalmente afastado da noção de civilização capitalista, bem como das visões eurocêntricas da modernidade (1).

 

(2) A perspetiva filosófica fundamental da ecocivilização tem raízes profundas nas primeiras noções civilizacionais da modernidade, ou da relação humana ativa com o mundo orgânico-material, tal como descritas pelos pensadores marxistas Joseph Needham e Samir Amin nas suas críticas ao eurocentrismo. Esta perspetiva filosófica orgânico-materialista surgiu no que é conhecido como a Era Axial, particularmente na civilização helenística e no Período dos Estados Combatentes na China, do quinto ao terceiro séculos a.C.. O próprio Marx adotou desde o início uma visão orgânico-materialista, desenvolvendo uma noção dos humanos como seres da natureza automediadores, o que rompeu com o mecanismo ocidental e as conceções eurocêntricas da modernidade, por intermédio do seu encontro com a filosofia materialista epicurista (2). No entanto, muito disto foi soterrado no marxismo posterior e foi completamente extinto na tradição filosófica marxista ocidental. Na China, a continuidade da civilização através do taoísmo (que foi paralelo ao epicurismo), do confucionismo e do neoconfucionismo, significou a perpetuação destas primeiras visões orgânico-materialistas, tornando a China mais recetiva à ecologia e às perspetivas ecológicas de Marx em particular (3).

 

(3) Embora tenha raízes filosóficas antigas, a civilização ecológica, enquanto perspetiva histórica transformadora, é um produto da sociedade pós-revolucionária e do desenvolvimento do socialismo. Reflete a noção dos seres humanos como seres automediadores da natureza, que era parte integrante de toda a visão de Marx sobre o desenvolvimento humano sustentável, incorporada na sua teoria da fratura metabólica. Esta abordagem rejeita qualquer noção de que a ecocivilização seja um produto direto do pré-modernismo ou do pós-modernismo, ou que possa ser explicada, como propuseram alguns teóricos ecológicos chineses, pela sequência da civilização tradicional para a civilização agrícola, para a civilização industrial e para a civilização ecológica (4).

 

(4) O conceito de civilização ecológica socialista na China concretizou estas ideias da forma mais completa. A civilização ecológica socialista deve ser considerada um desenvolvimento dentro do socialismo. É importante realçar que não pode existir qualquer conceito de “civilização ecológica capitalista”, pois o capitalismo é inerentemente estranho e destrutivo à natureza/ecologia. Falar, então, de civilização ecológica socialista é falar simplesmente de socialismo completo, como a afirmação plena do desenvolvimento humano sustentável, incorporando tanto a igualdade substantiva como a sustentabilidade ecológica. Significa a reconciliação da humanidade com a natureza.

 

(5) A civilização ecológica aponta para aquilo que os marxistas chineses apresentaram como a necessidade de “modernização da existência harmoniosa entre a humanidade e a natureza”. Isto é sustentado pelos princípios básicos do socialismo. Por conseguinte, é antitético à chamada modernização ecológica como filosofia de mecanismo e como projeto puramente tecnocrático no Ocidente (5). Ao mesmo tempo, adota algumas das mesmas tecnologias necessárias para uma transformação ecológica, mas utilizadas de acordo com princípios socialistas, exigindo relações sociais diferentes. O que é crucial aqui é a conceção fundamentalmente diferente da modernização dentro do marxismo chinês e do pensamento ecológico (6).

 

(6) O conceito de “comunidade da vida” desenvolvido pela teoria ecológica socialista na China é essencial para definir a civilização ecológica. Esta tem três componentes: (1) comunidade de vida com ecossistemas; (2) “a comunidade da vida da humanidade e da natureza”; e (3) uma síntese dialética, constituindo “a comunidade de toda a vida na Terra” e um “futuro partilhado” (7). Como escreveu o grande conservacionista norte-americano do início do século XX, Aldo Leopold “Abusamos da Terra porque a consideramos uma mercadoria que nos pertence. Quando vemos a Terra como uma comunidade à qual pertencemos, podemos usá-la com amor e respeito”. Leopold propôs uma ética da Terra que alargou “os limites da comunidade… para incluir os solos, as águas, as plantas, os animais ou coletivamente: a Terra” (8). Marx defendia que ninguém é dono da Terra, nem mesmo todos os países e todas as pessoas do planeta são donos da Terra, mas meramente “seus possuidores, seus beneficiários, que têm de a legar num estado melhorado às gerações seguintes como boni patres familias [bons chefes de família]” (9).

 

(7) A noção de sustentabilidade ecológica incorporada no conceito de comunidade da vida é exemplificada no “Pensamento de Xi Jinping sobre a Civilização Ecológica”. Xi afirmou que se tivermos de escolher entre “montanhas douradas” e “montanhas verdes”, precisamos de escolher montanhas verdes, reconhecendo que “águas límpidas e montanhas verdejantes são ativos inestimáveis”. Adotando uma abordagem materialista marxista da ecologia, Xi defendeu que a ecologia é “a forma mais inclusiva de bem-estar público”. Fazendo eco de Friedrich Engels sobre a “vingança” da natureza, Xi indicou que “qualquer dano que infligirmos à natureza acabará por voltar para nos assombrar”. A questão da natureza, além disso, insiste ele, vai para além da mera sustentabilidade material, abraçando também a estética, como no seu conceito de “Bela China” (10). Desta forma, a noção de civilização ecológica, como comunidade da vida, é ampliada e recebe um significado social mais amplo para o trabalhador coletivo, por meio da renovação da linha de massas.

 

(8) Marx defendia que o roubo da natureza pelo capitalismo, resultando na rutura metabólica, significava o enfraquecimento da base natural ou ecológica eterna da civilização. Isto significa que a relação metabólica precisava de ser restaurada, o que só é possível no socialismo (11). Com o mundo mergulhado numa crise ecológica planetária, tal restauração é a primeira prioridade (para lá da ameaça nuclear) na determinação do futuro da humanidade. Nos países ricos, caraterizados pelo excesso, isto levanta a questão do decrescimento. Para a humanidade como um todo, isto levanta a questão do desenvolvimento humano sustentável e, em última análise, da civilização ecológica sob o socialismo completo.

 

(9) O conceito de decrescimento estava ausente do socialismo do século XIX, embora Marx tivesse uma visão do desenvolvimento humano sustentável. O decrescimento como processo de desacumulação atinge todo o seu significado numa perspetiva marxista, a partir do sistema irracional do capitalismo monopolista/imperialismo e das suas crises de sobreacumulação. Qualquer movimento decisivo em direção à ecologia nos principais países capitalistas no centro do sistema mundial requer, portanto, um afastamento das estruturas do capitalismo monopolista/imperialismo (12). Os países capitalistas dominantes, que são também os principais países capitalistas monopolistas e imperialistas, são caracterizados ecologicamente pelo excesso ambiental, tendo pegadas ecológicas para além — por vezes até três ou quatro vezes para além — do que a Terra pode suportar se generalizadas para a humanidade como um todo. Estas enormes pegadas ecológicas refletem o imperialismo económico e ecológico. Portanto, do ponto de vista da humanidade global, estas nações devem reduzir drástica e desproporcionalmente a sua utilização de energia per capita, a utilização de recursos e as emissões de carbono, juntamente com a sua expropriação líquida de riqueza do resto do mundo. Uma vez que o capitalismo monopolista promove um vasto desperdício económico como meio de acumulação/financeirização, gerando pobreza artificial, e exibe níveis astronómicos de desigualdade, com um punhado de indivíduos a deter mais riqueza do que metade da população, uma estratégia de decrescimento planeada é consistente com condições económicas e sociais dramaticamente melhoradas para a maioria da classe trabalhadora (13).

 

(10) Em todos os países do mundo, a crise ecológica planetária exige uma revolução ecológica, abrangendo tanto as forças produtivas como as relações sociais. Em todos os casos, isto significa o desenvolvimento do proletariado ambiental em conflito com o capitalismo monopolista generalizado e o imperialismo. Na China e em alguns outros países pós-revolucionários, tal pode ser efetuado por uma linha de massas ecorevolucionária e pela construção de uma sociedade sustentável enraizada em estruturas comunitárias e coletivas já existentes. Para a maioria dos países do Sul global, o desenvolvimento humano sustentável requer uma desvinculação do sistema imperial de valor e uma ação revolucionária por parte de um proletariado ambientalista que vise a sobrevivência humana e a criação planeada de uma sociedade de desenvolvimento humano sustentável. No próprio Norte global, a revolução ecológica exige a destruição do imperialismo e a reunificação da humanidade no seu todo numa base igualitária num processo de solidariedade mundial. As pegadas ecológicas precisam de ser equalizadas em todo o mundo. O trabalho nos países ricos não pode ser ecológico quando nos países pobres (e no planeta como um todo) as bases da existência ecológica estão minadas.

 

 

 

 

 

 

(*) John Bellamy Foster (n. 1953) é professor de Sociologia na Universidade de Oregon (E.U.A.) e o atual diretor da indispensável revista marxista norte-americana Monthly Review. Discípulo de Paul Sweezy e continuador da escola de pensamento crítico por este fundada (com Paul Baran e Harry Magdoff), tem publicado numerosos livros sobre a crise ecológica e sua interseção com a economia política do capitalismo, bem como sobre história do pensamento, desenvolvimentos científicos, atualidade política e muitos outros temas. Merecem destaque: The Vulnerable Planet: A Short Economic History of the Environment (1994); Marx’s Ecology: Materialism and Nature (2000); Ecology Against Capitalism (2002); Naked Imperialism: The U.S. Pursuit of Global Dominance (2006); The Great Financial Crisis: Causes and Consequences, com Fred Magdoff (2009); The Ecological Revolution: Making Peace with the Planet (2009); The Ecological Rift: Capitalism's War on the Earth, com Brett Clark e Richard York (2010); What Every Environmentalist Needs To Know about Capitalism: A Citizen's Guide to Capitalism and the Environment, com Fred Magdoff (2011); The Endless Crisis, com R. W. McChesney (2012); The Theory of Monopoly Capitalism (2014); Marx and the Earth, com Paul Burkett (2016); Trump in the White House: Tragedy and Farce (2017); The Robbery of Nature: Capitalism and the Ecological Rift (2020), com Brett Clark; The Return of Nature: Socialism and Ecology (2020); Capitalism in the Anthropocene: Ecological Ruin or Ecological Revolution, com Hannah Holleman (2022) e The Dialectics of Ecology: Socialism and Nature (2024). O presente artigo foi publicado originalmente no N.º 6 do Volume 76 (novembro de 2024) da revista Monthly Review. O presente texto resulta de uma palestra proferida (via rede) no Simpósio Internacional sobre “O Progresso Ecocivilizacional da China num Mundo em Mudança”, Universidade de Pequim, 20 de outubro de 2024, tendo sido publicado no Volume 76, N.º 8 (janeiro de 2025) da revista Monthly Review. Todos os direitos reservados. A tradução é da responsabilidade de Ângelo Novo.

 

 

___________________________

NOTAS:

 

(1) Leia-se a discussão desta história em John Bellamy Foster, The Dialectics of Ecology (New York: Monthly Review Press, 2023), pp. 161–66.

 

(2) Karl Marx, Early Writings (London: Penguin, 1974), p. 356; István Mészáros, Marx’s Theory of Alienation (London: Merlin Press, 1975), pp. 162–65; John Bellamy Foster, Breaking the Bonds of Fate: Epicurus and Marx (New York: Monthly Review Press, a publicar, 2025).

 

(3) Joseph Needham, Within the Four Seas: The Dialogue of East and West (Toronto: University of Toronto Press, 1969), pp. 27, 66–68, 93–97, 212; Samir Amin, Eurocentrism (New York: Monthly Review Press, 2009), pp. 13, 22, 108–11, 212–13; Foster, The Dialectics of Ecology, pp. 171–74.

 

(4) Leia-se Chen Yiwen, “Marxist Ecology in China: From Marxist Ecology to Socialist Eco-Civilization Theory”, Monthly Review vol. 76, n.º 5 (October 2024): pp. 32–46 (um tradução em língua portuguesa deste artigo está publicado neste mesmo número de O Comuneiro); Zhihe Wang, Huili He e Meijun Fan, “The Ecological Civilization Debate in China: The Role of Ecological Marxism and Constructive Postmodernism—Beyond the Predicament of Legislation”, Monthly Review vol. 66, n.º 6 (November 2014): pp. 37–59.

 

(5) Chen Yiwen, “Marxist Ecology in China,” 41–42; John Bellamy Foster, Brett Clark e Richard York, The Ecological Rift (New York: Monthly Review Press, 2010), pp. 41–43, 253–58.

 

(6) Chen Xueming, The Ecological Crisis and the Logic of Capital (Boston: Brill, 2017), pp. 467–72, 566–70.

 

(7) Chen Yiwen, “Marxist Ecology in China”, pp. 41–43; Foster, The Dialectics of Ecology, p. 13.

 

(8) Aldo Leopold, The Sand County Almanac (New York: Oxford University Press, 1949), p. viii; John Bellamy Foster, Ecology Against Capitalism (New York: Monthly Review Press, 2002), pp. 86–87.

 

(9) Karl Marx, Capital, vol. 3 (London: Penguin, 1981), p. 911.

 

(10) Chen Yiwen, “Marxist Ecology in China”, pp. 42–43; Xi Jinping, The Governance of China (Beijing: Foreign Languages Press, 2020), pp. 3, 6, 20, 25, 54, 417–24.

 

(11) Karl Marx, Capital, vol. 1 (London: Penguin, 1976), pp. 637–78; John Bellamy Foster e Brett Clark, The Robbery of Nature (New York: Monthly Review Press, 2000), pp. 12–13.

 

(12) Paul Burkett, “Marx’s Vision of Sustainable Human Development”, Monthly Review vol. 57, n.º 5 (October 2005): pp. 34–62; Brian M. Napoletano, “Was Karl Marx a Degrowth Communist?”, Monthly Review vol. 76, n.º 2 (June 2024): pp. 9–36.

 

(13) John Bellamy Foster, “Planned Degrowth: Ecosocialism and Sustainable Human Development”, Monthly Review vol. 75, n.º 3 (July–August 2023): pp. 1–29.

 


Em: Revista "O Comuneiro" N.º 41 - Setembro de 2025:


www.ocomuneiro.com


domingo, 9 de novembro de 2025

A AMAZÓNIA É FONTE DE VIDA!

 



A Amazónia é fonte de vida para todos nós, armazena milhares de milhões de toneladas de carbono, regula as chuvas em todos os continentes e alberga uma em cada dez espécies na Terra. A ciência vem agora confirmar o que a história já havia demonstrado: as comunidades Indígenas são as melhores guardiãs da floresta. Onde os seus direitos aos territórios são legalmente reconhecidos, a desflorestação reduz drasticamente e a floresta prospera.

Com a proximidade da principal cimeira mundial sobre o clima que ocorrerá no Brasil e com as eleições já no próximo ano, o Presidente Lula está sob crescente pressão para mostrar liderança no tema da Amazónia. Esta é a nossa oportunidade para ajudar a garantir os direitos territoriais que podem proteger a floresta e os seus povos durante gerações. 


🌱🌳🌿
Porque reconhecer os direitos territoriais dos Povos Indígenas é a melhor forma de proteger a Amazónia
  • Florestas vibrantes: Os Povos Indígenas cuidam das florestas mais saudáveis da Terra. A regularização fundiária e os direitos legais permitem-lhes usar o seu conhecimento ancestral para conservar ecossistemas vivos onde outros grupos falharam.
  • Percentagens mais baixas de desflorestação: As terras geridas pelos Povos Indígenas têm menos 83% de desflorestação, e as florestas sob sua guarda têm uma regeneração 20% mais rápida do que as áreas circundantes.
  • Previne a mineração e extração: Onde os direitos territoriais dos Povos Indígenas são reconhecidos, estes conseguem parar a mineração e outros projetos de extração nocivos para o clima, mantendo os rios limpos, as florestas vivas, as comunidades, a vida selvagem e o nosso clima a salvo.
  • Justiça que funciona: O reconhecimento dos direitos territoriais dos Povos Indígenas é frequentemente mais rápido, mais justo e bastante mais eficaz do que as políticas de conservação centralizadas. Unidos, podemos ajudar a proteger as culturas Indígenas e a Amazónia por muitas gerações.
Partilhamos esta mensagem da AVAAZ: https://secure.avaaz.org 

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

AO MIGUEL, NO SEU 4.º ANIVERSÁRIO, E CONTRA O NUCLEAR, NATURALMENTE - EUGÉNIO DE ANDRADE


Vais crescendo, meu filho, com a difícil
luz do mundo. Não foi um paraíso,
que não é medida humana, o que para ti
sonhei. Só quis que a terra fosse limpa,
nela pudesses respirar desperto
e aprender que todo o homem, todo,
tem direito de sê-lo inteiramente
até ao fim. Terra de sol maduro,
redonda terra de cavalos e maçãs,
terra generosa, agora atormentada
no próprio coração; terra onde teu pai
e tua mãe amaram para que fosses
o pulsar da vida, tornada inferno
vivo onde nos vão encurralando~
o medo, a ambição, a estupidez,
se não for demência apenas a razão;
terra inocente, terra atraiçoada,
em que nem sequer é já possível
pousar num rio os olhos de alegria,
e partilhar o pão, ou a palavra;
terra onde o ódio a tanta e tão vil
besta fardada é tudo o que nos resta,
ou aos chacais, que do saber fizeram
comércio tão contrário à natureza
que só crimes e crimes paria.
Que faremos nós, filho, para que a vida
seja mais que cegueira e cobardia?

11-3-84

Em: Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa [1940-1986], 3.ª edição aumentada, II volume, Círculo de Leitores, 1987, pp. 47, 48. 

A resistente Alda Nogueira, professora n’A Voz do Operário


Resistência

Alda Nogueira foi uma das mulheres que mais se destacaram na resistência à ditadura de Salazar. Por isso esteve presa, durante 9 anos da sua vida, no Forte de Caxias.

Pouco tempo depois do 25 de Abril, Alda Nogueira contou que tinha sido professora d’A Voz do Operário.

Aconteceu no período a seguir a terminar o curso, na Faculdade de Ciências, em 1946. E antes de passar à clandestinidade, em 1949.

Disse ela: “Logo a seguir à minha formatura ainda exerci a minha profissão como professora legal na Escola Industrial Alfredo da Silva, no Barreiro, na Voz do Operário, [em Lisboa, e noutra escola], em Olhão” [Melo (1975), p.178].

Palavras diferentes

Mais recentemente, tem sido divulgada uma ‘informação’ da PIDE, de que Alda Nogueira deu aulas num suposto “Externato Comercial da Voz do Operário”.

Na história da resistência em Portugal, esta é precisamente uma das mais abundantes fontes de equívocos: a propensão a reproduzir-se, de forma acrítica, as ‘informações’ da polícia política. Sem o elementar cruzamento com outras fontes. E repetindo a sua terminologia, os seus conceitos.

Como se a PIDE fosse um modelo historiográfico de rigor científico e de respeito pela verdade…

Para além dos problemas levantados pela sua função repressiva, por exemplo na manipulação de interrogatórios e respectivas transcrições, importa ter presente a sua função ideológica, difusora de determinados “valores”. Essa função que Althusser assinalava estar presente em todos os “aparelhos de Estado”.

O que a PIDE chamou de “externato” era o curso comercial d’A Voz do Operário.

E estas palavras fazem diferença. Porque A Voz do Operário não é, nunca foi, uma vulgar escola privada, com fins lucrativos.

É um projecto colectivo, desde a origem norteado por fins de solidariedade e igualdade social. E com a identidade de classe que o seu nome expressa.

Em 1948

A contratação de Alda Nogueira ficou registada na reunião da direção d’A Voz do Operário de 17 de Março de 1948. Foi admitida para substituir outra professora, a meio do ano lectivo.

Era uma jovem com 25 anos de idade. Mas já era uma assumida opositora à ditadura de Salazar.

Em 1945, aderiu ao Movimento de Unidade Democrática (MUD) – que a ditadura ilegalizou em menos de dois anos.

Em 1947, proferiu uma conferência versando a mulher e a ciência, no âmbito de uma exposição sobre livros escritos por mulheres. Um evento que, de tal forma incomodou o regime, que este resolveu encerrar a associação promotora – o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas.

Além dessa, Alda Nogueira estava envolvida na Associação Feminina para a Paz. Outra que acabaria encerrada pelas autoridades, 4 anos depois.

E, desde 1942, que era militante do Partido Comunista Português (PCP) – este ilegalizado logo em 1927, nos primórdios da ditadura.

Quando deu aulas n’A Voz do Operário, Alda Nogueira era uma das três responsáveis pelo “setor de mobilização e organização das mulheres comunistas”. Um organismo que “trabalhava à escala nacional”, em “movimentos democráticos associativos, recreativos, desportivos, etc” [Melo (1975), p.177].

E depois?

Um ano depois de dar aulas n’A Voz do Operário, a professora Alda Nogueira abdicou da sua carreira profissional, para se consagrar à resistência que o seu partido movia contra a ditadura.

Passou a viver na clandestinidade e veio a ser uma das primeiras mulheres no comité central do PCP. Com um papel dirigente que não se limitou a tratar apenas de questões estritamente femininas.

Há testemunho de que foi responsável pela estrutura do PCP entre os empregados bancários e dos seguros [Samara (2019), p.42].

E pode verificar-se o conjunto de 5 artigos que publicou na revista teórica do seu partido, entre 1954 e 1958. Os quais assinou com o pseudónimo «Lídia« [PCP (2023), p.9].

O primeiro versou sobre “a mobilização e organização das mulheres”. Os dois seguintes abordaram o papel dos intelectuais e dos católicos na luta contra a ditadura.

No quarto artigo, sobre o 20º Congresso do PC da URSS, expressou uma visão crítica do stalinismo, ou “culto da personalidade de Stáline”, como então foi designado. E no último artigo, publicado em Março de 1958, analisou o “momento político nacional”, perante as pseudo-eleições presidenciais que a ditadura iria encenar, nesse ano.

Até que, como aconteceu a milhares de pessoas, Alda Nogueira foi presa pela PIDE. Mas poucas mulheres foram sujeitas a tão longos anos de cárcere em Portugal, por motivos políticos.

Em liberdade

Derrubada a ditadura, voltou-se a ouvir a voz de Alda Nogueira n’A Voz do Operário.

Em Abril de 1976, participou, aqui, num evento do PCP, no qual defendeu a necessidade de serem “criadas condições sociais, económicas e outras, assim como estruturas (creches, jardins de infância, cantinas, etc.) que facilitem a vida das mulheres trabalhadoras”.

Também apelou à memória histórica. Recordou os governos da ditadura, que “entoavam loas à família. Mas que fizeram eles na prática? […] toda a sua política de discriminação, obscurantismo, opressão e super exploração mais não fez que agravar a insegurança, a coesão e a harmonia da família e, em especial, das famílias trabalhadoras” [O Diário, 09/04/1976, p.12].

Luís Carvalho - Investigador

Este artigo foi originalmente publicado no Jornal "A Voz do Operário" a 4 de Novembro de 2025

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

TODOS OS OLHOS NA PALESTINA. NÃO DESVIEMOS O OLHAR AGORA.

 

19 Outubro 2025

 

Este é o manifesto lido este domingo, 19 de outubro, na Marcha pela Palestina, em Lisboa, numa mobilização conjunta de solidariedade e clamor pela dignidade e vida do povo palestiniano, que saiu à rua para exigir o fim do genocídio, do regime de apartheid e da ocupação da Palestina, o levantamento do bloqueio ilegal imposto a Gaza e a pronta entrada de ajuda humanitária sem restrições, bem como a responsabilização pelos crimes cometidos.

 

 

Todos os olhos na Palestina.

Chamam-lhe paz, mas para o povo palestiniano arrisca ser o apartheid no seu auge. É com estas palavras de Francesca Albanese, Relatora Especial das Nações Unidas, que queremos começar este apelo: o momento que vivemos não é de celebração, mas de vigilância.

O cessar-fogo traz alívio, mas não paz. O silêncio das bombas não põe fim a décadas de ocupação ilegal e de apartheid. A agressão genocida dos últimos dois anos é o ponto mais cruel de uma violência que se prolonga há décadas — marcada por sucessivas ofensivas e por quase vinte anos de cerco ilegal imposto a Gaza. O sistema de saúde foi destruído, os hospitais atacados e a contaminação do solo e da água ameaça a sobrevivência de toda uma população — uma agressão que não destrói apenas vidas, mas também as condições de as sustentar. Hoje, o povo palestiniano em Gaza continua enclausurado por esse cerco, privado de necessidades básicas como água potável, cuidados médicos e educação.

A destruição de Gaza e o sofrimento do povo palestiniano são o retrato de um sistema de opressão que permanece intacto em toda a Palestina, onde mulheres, homens e crianças são vítimas da mesma violência colonial que lhes nega os direitos mais fundamentais: o direito a viver, em segurança e com dignidade. A mesma ocupação que isola Gaza estende-se por toda a Palestina, onde a violência colonial não cessa — continuam as demolições, as incursões militares, a expansão dos colonatos, as prisões e as mortes quotidianas sob o regime de apartheid. Um “acordo” que não ponha fim à ocupação não é paz — é a normalização da injustiça.

É por isso que saímos mais uma vez às ruas: para afirmar, com esperança e determinação, que a solidariedade com a Palestina é hoje uma necessidade e um dever. O genocídio em curso é o culminar de décadas de ocupação e colonização sob um regime de apartheid que o Tribunal Internacional de Justiça declarou ilegal e que deve ser terminado de forma imediata e incondicional. Perante esta clareza, é urgente transformar a lei em ação e a indignação em compromisso. A justiça internacional só terá sentido se se traduzir em atos concretos que ponham fim à agressão e garantam que os responsáveis respondem pelos seus crimes.

O primeiro passo é pôr fim ao cerco. Exigimos o levantamento imediato do bloqueio ilegal imposto a Gaza e a entrada segura e sem restrições de ajuda humanitária — alimentos, água, medicamentos, combustível e todos os bens essenciais à sobrevivência. Nenhum cessar-fogo será verdadeiro enquanto um povo inteiro continuar a ser privado do mínimo para viver.

Mas aliviar o sofrimento não chega: é preciso pôr fim à impunidade. A ocupação e o genocídio persistem porque Israel continua a agir sem consequências. É tempo de aplicar sanções políticas, económicas e diplomáticas até que o direito internacional seja respeitado. A cumplicidade deve cessar: nenhum governo, empresa ou instituição pode manter laços com um regime de apartheid sem partilhar a sua culpa.

A solidariedade é ação e continuidade. Cabe aos governos cumprir as suas obrigações, às sociedades civis reforçar os movimentos de boicote, desinvestimento e sanções, e a todas as pessoas sustentar formas de resistência pacífica que afirmem o direito do povo palestiniano à autodeterminação, à justiça e à reparação.

Mas a nossa voz é também uma voz de esperança. A solidariedade internacional já mudou o curso da história — contra o apartheid na África do Sul, contra a guerra e a opressão noutros lugares — e voltará a fazê-lo. A força coletiva de milhões de pessoas em todo o mundo pode pôr fim à injustiça e abrir caminho à liberdade. O povo palestiniano não está só. Cada gesto de solidariedade é um passo em direção a uma paz verdadeira: uma paz com justiça, dignidade e igualdade.

Hoje, como sempre, olhar para a Palestina é defender a humanidade. A luta do povo palestiniano é uma luta pela liberdade de todos. Como lembrava Nelson Mandela, ninguém é livre até que todos sejamos livres.

Por isso, este manifesto é também um compromisso: continuaremos a marchar, a falar, a agir — até que cessem a ocupação, o apartheid e a impunidade; até que todas as vidas tenham o mesmo valor; até que a Palestina seja livre.

Todos os olhos na Palestina. Não desviemos o olhar agora.

 

Amnistia Internacional Portugal, Fundação José Saramago, Greenpeace Portugal, Médicos Sem Fronteiras Portugal e Plataforma Unitária de Solidariedade com a Palestina.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

A propósito do Dia Internacional para a Irradicação da Pobreza


A pobreza é inerente ou, parafraseando o ministro das finanças, uma das marcas de água do sistema capitalista, que a produz e dela se alimenta.

Por isso, a pobreza é usada para gerar negócio rentável e com elevada margem de lucro, para além disso, também dá estatuto social às personalidades do sistema, e que dele se alimentam, que se apresentam, ou são publicamente apresentadas, como paladinos do combate à pobreza, armados de uma retórica hipócrita, paternalista e suficientemente armadilhada ao ponto de convencerem, os incautos, de estarem genuinamente empenhadas e determinadas em acabar com a pobreza.

E, ano-após-ano, década-após-década, a pobreza persiste, agrava-se e o fosso entre os mais ricos e os mais pobres acentua-se cada vez mais. Tudo isto é triste, tudo isto existe, e vai continuar enquanto o permitirmos, enquanto não nos libertarmos da ideologia hegemónica que o sistema nos incute, através de todo o seu aparelho de Estado, meios de difusão públicos e privados, e transmitida de geração em geração…

E, como somos formatados para não nos questionarmos, muito menos, questionarmos o sistema e as suas verdades absolutas, inquestionáveis, intrínsecas e sistémicas, vamo-nos adaptando, acomodando e, em última análise, sustentando e suportando o próprio sistema, isto é, somos quem garante o funcionamento de toda esta engrenagem, que nos explora, oprime, humilha e mantém na pobreza…

A pobreza é muito mais do que «viver com menos de 632 euros por mês», por um lado, uma pessoa com um salário, pensão ou reforma daquele valor não vive, sobrevive, morre lentamente e não tem capacidade física e intelectual para se libertar do jugo que lhe foi imposto e nele é mantida, através dos mais diversos paternalismos e declarações pomposas de combate à pobreza, enquanto estruturalmente se aprofundam e agravam as causas geradoras de pobreza material e intelectual.

«Morre lentamente quem abandona um projecto antes de iniciá-lo,
não pergunta sobre um assunto que desconhece
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves,
recordando sempre, que estar vivo exige um esforço muito maior
que o simples facto de respirar.

Somente a perseverança fará com que conquistemos
um estágio esplêndido de felicidade.
»

Em: “Morre Lentamente” Pablo Neruda

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

MORRE LENTAMENTE

Morre lentamente quem não viaja,
quem não lê, 
quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.

Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajectos,
quem não muda de marca,
não se arrisca a vestir uma nova cor
ou não conserva com quem não conhece.

Morre lentamente quem faz da televisão o seu guro.

Morre lentamente quem evita uma paixão,
quem prefere o negro sobre o branco
e os pontos nos "is" em detrimento de um remoinho de emoções,
justamente as que resgatam o brilho dos olhos,
sorrisos dos bocejos,
corações aos tropeços e sentimentos.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,
quem não se permite pelo menos uma vez na vida
fugir de conselhos sensatos.

Morre lentamente,
quem passa os dias queixando-se da sua má sorte
ou da chuva incessante.

Morre lentamente quem abandona um projecto antes de iniciá-lo,
não pergunta sobre um assunto que desconhece
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves,
recordando sempre, que estar vivo exige um esforço muito maior
que o simples facto de respirar.

Somente a perseverança fará com que conquistemos
um estágio esplêndido de felicidade.

Pablo Neruda (12/07/1904 - 23/09/1973)



O ANALFABETO POLÍTICO

 

O pior analfabeto
é o analfabeto político.

Ele não houve, não fala,
nem participa dos acontecimentos políticos.

Ele não sabe que o custo de vida,
o preço do feijão, do peixe, da farinha,
do aluguer, do sapato e do remédio,
dependem das decisões políticas.

O analfabeto político
é tão burro que se orgulha
e estufa o peito dizendo
que odeia a política.

Não sabe o imbecil que
da sua ignorância política
nasce a prostituta, o menor abandonado
e o pior de todos os bandidos:

O político vigarista,
pilantra, corrupto e lacaio
das empresas nacionais e multinacionais.

Bertolt Brecht (10/02/1898 - 14/08/1956)


domingo, 28 de setembro de 2025

BREVE PROGRAMA PARA UMA INICIAÇÃO AO CANTO



 


Ao escrever, e independentemente do valor do que escrevo, tenho às vezes a vaga consciência de que contribuo, embora modestamente, para o aperfeiçoamento desta terra onde um dia nasci para nela morrer um dia para sempre. Dou palavras um pouco como as árvores dão frutos, embora de uma forma pouco natural e até antinatural porquanto, sendo como é a poesia uma forma de cultura, representa uma alteração, um desvio e até uma violência exercidos sobre a natureza. Mas, ao escrever, dou à terra, que para mim é tudo, um pouco do que é da terra. Nesse sentido, escrever é para mim morrer um pouco, antecipar um regresso definitivo à terra.

Escrevo como vivo, como amo, destruindo-me. Suicido-me nas palavras. Violento-me. Altero uma ordem, umas harmonia, uma paz que, mais do que a paz invocada como instrumento de opressão, mais do que a paz dos cemitérios, é a paz, a harmonia das repartições públicas, dos desfiles militares, da concórdia doméstica, das instituições de benemerência. Ao escrever, mato-me e mato. A poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação, até ao nível do conformismo, da conivência com a ordem, qualquer ordem estabelecida.

O poeta deve surpreender-se e surpreender, recusar-se como instituição, fugir da integração, da reforma que até mesmo pessoas e grupos aparentemente progressivos lhe começam subtilmente a tentar impor o mais tardar aos trinta anos. Abaixo o oportunismo, a demagogia, seja a que pretexto for. O poeta deve desconfiar dos aplausos, do êxito a até passar a abominar o que escreveu logo depois de o ter escrito. Numa sociedade onde quase todos, pertencentes a quase todos os sectores, procuram afinal instalar-se o mais cedo possível, permanecer fiéis à imagem que de si próprios criaram pessoalmente ou por interpostas pessoas, o poeta denuncia-se e denuncia, introduz a intranquilidade nas consciências, nas correntes literárias ou ideológicas, na ordem pública, nas organizações patrióticas ou nas patrióticas organizações.

Escrever é desconcertar, perturbar e, em certa medida, agredir. Alguém se encarregará de institucionalizar o escritor, desde os amigos, os conterrâneos, os companheiros de luta, até todas aquelas pessoas ou coisas que abominou e combateu. Acabarão por lhe encontrar coerência, evolução harmoniosa, enquadramento numa tradição. Servir-se-ão dele, utilizá-lo-ão, homenageá-lo-ão. Sabem que assim o conseguirão calar, amordaçar, reduzir.

É claro que falo do poeta e não do poestastro, do industrial e comerciante de poemas, do promotor da venda das palavras que proferiu. Falo do homem que nunca repousou sobre o que escreveu, que se recusou a servir-se a si e a servir, que constantemente se sublevou.

Falo do homem que, ombro a ombro com os oprimidos, empunhando a palavra como uma enxada ou uma arma, encontrou ou pelo menos procurou na linguagem um contorno para o silêncio que há no vento, no mar, nos campos.

O poeta, sensível e até mais sensível porventura que os outros homens, imolou o coração à palavra, fugiu da autobiografia, tentou evitar a todo o custo a vida privada. Ai dele se não desceu à rua, se não sujou as mãos nos problemas do seu tempo, mas ai dele também se, sem esperar por uma imortalidade rotundamente incompatível com a sua condição mortal, não teve sempre os olhos postos no futuro, no dia de amanhã, quando houver mais justiça, mais beleza sobre esta terra sob a qual jazerá, finalmente tranquilo, finalmente pacífico, finalmente adormecido, finalmente senhor e súbdito do silêncio que em vão tentou apreender com palavras, finalmente disponível não já tanto para o som dos sinos como para o som dos guizos e chocalhos dos animais que comem a erva que afinal pôde crescer no solo que ele, apodrecendo, adubou com o seu corpo merecidamente morto e sepultado.


Em: Ruy Belo - Todos os Poemas, Círculo de Leitores, 2000, pp. 267/8

Nota: Os sublinhados são da nossa responsabilidade.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

CARTA ABERTA


Concidadãs e concidadãos, a todas as pessoas que vivem no concelho de Rio Maior, e não só, se nos permitem, colocamos à vossa consideração e convidamos-vos a pensar e reflectir connosco sobre a notícia incluída na página 6, do Boletim Municipal de Rio Maior, n.º 17 de Junho de 2025, com o título seguinte:

«Reabilitação da Casa Ruy Belo a bom ritmo»

Perante uma notícia destas só poderíamos concluir que, após décadas de abandono a que a casa esteve sujeita, finalmente as obras, necessárias e urgentes, de reabilitação prometidas, recorrentemente prometidas, em cada campanha de propaganda eleitoral autárquica, tinham começado...

Mas não, a realidade desmente a notícia, a casa já não existe, foi demolida, ruiu, porque lhe tiraram o telhado, em época de chuvas e, como era de adobes, ruiu, na prática, para além de décadas de abandono e degradação, foi demolida.

Por isso, não é possível a «obra de reabilitação e conservação» de uma casa que não existe.

Ficou o local, não a casa, onde o poeta, ainda menino, olhava pela janela o rio Maior e imaginava o rebentar do mar que já conhecia «das páginas dos livros que já tinha lido». Nessa casa ninguém vai poder entrar e pisar o mesmo soalho que o poeta pisou, nem andar «dentro dela de janela em janela», como o poeta andou...

Porque nada disso existe, nada disso tem reabilitação e conservação possível...

As obras que estão a decorrer, no local, são de construção de uma casa, e não de reabilitação e conservação, como está escrito no edital da obra, da casa onde nasceu e viveu o poeta Ruy Belo...

Esta lastimável situação, sendo da responsabilidade do executivo camarário e da junta de freguesia local, vai custar às pessoas que pagam impostos, directos e indirectos, pelo menos, 530 mil euros, segundo o que veio a público.

Consideramos que, perante este vergonhoso processo, é no mínimo exigível que a verdade seja reposta e a propaganda enganosa extirpada.

E isso só é possível com a participação organizada e continuada das pessoas que não abdicam dos seus direitos e deveres cívicos, em defesa da verdade, da cultura, da história, do património e da memória colectiva da comunidade.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

CONTRA OS FOGOS: PELA FLORESTA DO FUTURO

 


Deseucaliptar | Descarbonizar | Democratizar 
chamado para mobilização popular em defesa das nossas vidas, pelas florestas, solo, água e ar respirável.
Instigadas pelo sofrimento das populações rurais que, em Portugal, são as mais vulneráveis perante o repetido terror dos incêndios e com o peso das centenas de pessoas mortas este verão em Portugal pela Galp, EDP, Navigator e Altri, através das ondas de calor voltamos a sair à rua em defesa das vidas de todas nós, ano após ano mais e mais ameaçadas, e por uma floresta que nos ajude a mitigar o impacto crescente das altas temperaturas e a destruição causada por um clima cada vez mais feroz e errático. 
Fazemo-lo pelo terceiro Setembro consecutivo, juntando centenas de pessoas em várias cidades, vilas e aldeias do país – agora com concentrações por todo o mundo, no ambito da Draw The Line / Delimite em que várias organizações, povos, comunidades e lideranças indígenas, “da Amazónia ao Pacífico”, nos convocam a retomarmos as rédeas do futuro, pois a única resposta somos nós: as comunidades e as pessoas.   
Fazemo-lo ainda, ou sobretudo, porque o poder político, celuloses e indústria fóssil, em sólito conluio, seguem na contra-mão do que seriam verdadeiras e urgentes políticas-de-vida: conscientes dos desafios climáticos e da pressa em interromper e superar um sistema que coloca o lucro (nunca distribuído) e a falácia do crescimento económico infinito como única possibilidade ao viver humano. 
O resultado desta acção, voluntária e premeditada, atingiu globalmente o seu ponto crítico: turbulências económicas, catástrofes ecológicas e climáticas, instabilidades políticas, ataques violentos aos direitos humanos fundamentais, militarização e genocídios, com os ricos ficando mais ricos e influentes e os pobres mais pobres e manietados.   
Em Portugal a desgraça é congénere. Somos um país onde as populações do interior foram empurradas para o litoral, transformando grande parte do espaço rural em zonas de pilhagem. As empresas e as suas monoculturas impostas, mataram a biodiversidade e, exponenciadas pelo aquecimento global, transformam Portugal num deserto, fustigado pelos incêndios sem tréguas.
Somos, em termos relativos, o país com mais área de eucalipto no mundo. Em termos absolutos, o quarto. Ao perigo da monocultura do eucalipto adiciona-se o tempo quente e seco, resultado de décadas de atividade encorajada pelo poder político e subsidiada pela indústria fóssil e da celulose. Como consequência, somos o país que mais arde na Europa. Empresas como a Navigator e Altri sequestraram para si uma fatia imensa do território e, como todos os males não travados, cresce na sua tentativa de propagação além fronteiras, como agora se assiste com o recente projecto aprovado de uma fábrica da Altri na Galiza.   
Por outro lado, a indústria da celulose e as empresas de combustíveis fósseis como a Galp e EDP fazem lucros recorde enquanto as suas emissões levam a recordes de temperatura e milhares de pessoas mortas em ondas de calor. Outros males alheios ao bem-estar de pessoas, animais e seus biomas, concorrem para a destruição sócio-ambiental do nosso território: extração de lítio, agroplantações e pecuária intensivas, o embuste que tem sido a gestão das faixas de combustível e as instalações de parques fotovoltaicos e eólicos em ecossistemas abatendo milhares e milhares de sobreiros e carvalhos – essenciais para a resiliência às alterações climáticas e absorção de emissões -, o turismo massificado, a construção civil predatória, a ascensão da extrema- direita. 
Todas são manifestações do crescimento capitalista a todo o custo e o desmantelamento da democracia. A imposição da destruição e colapso como única opção de futuro são a captura total do poder popular pelas elites políticas e económicas, forças destruidoras da sociedade e do planeta. 
A luta pela vida e pelo fim da destruição é uma luta pelo bem comum e por uma democracia verdadeira e não apenas estes simulacros, rituais e processos vazios que hoje se encontram no seu lugar. Cabe-nos reaver o mundo e, colectivamente, exigir e lograr um futuro justo. 
DESEUCALIPTAR 
Mais do que nunca, temos de deseucaliptar e parar as monoculturas enquanto é tempo, para construir uma verdadeira floresta do futuro – floresta autóctone e biodiversa. Essa floresta tem de ser arrancada das mãos da indústria do eucalipto e da biomassa. Temos de garantir a expulsão do eucaliptal e o controlo da monocultura do pinheiro. Para começar, é preciso erradicar 700 mil hectares de eucaliptal em Portugal. 
Temos de transformar a mistura explosiva de eucaliptal, pinhal e invasoras em verdadeira floresta e bosques resilientes, que aguentem o futuro mais quente, que travem o deserto e promovam uma rehabitação digna do interior do país. Tal será feito com as comunidades no centro, garantindo que quem resiste no meio rural tem fontes de rendimento que lhes permita viver com dignidade. 
DESCARBONIZAR
Atingido o ponto de ruptura total, é imperativo que nos organizemos colectivamente para uma descarbonização imediata – medida sem a qual não poderá ser travada a crise climática. Queremos garantir o fim aos fósseis até 2030, através de uma transição justa, sustentável e ecológica. Tal implicará parar já todos esses projectos alienados de qualquer ideia de futuro, como são o gasoduto no Norte de Portugal, as minas de lítio e a Fábrica da altri na Galiza tal como os consumos desnecessários e do ultra-luxo.
Agirmos em comunhão com todos os povos nesta luta implicará, igualmente, 1) expulsar do Sul Global as empresas da indústria fóssil sediadas em Portugal, 2) o cancelamento da dívida dos países do Sul Global, 3) garantir que as empresas culpadas pela crise climática sejam responsabilizadas pelos danos causados.  
DEMOCRATIZAR
Temos de tomar nas nossas mãos o rumo do planeta, recuperando o verdadeiro sentido da Democracia. Basta de imposições empresariais em conluios políticos contra os povos. É preciso construir uma sociedade em que as decisões são feitas pelas pessoas e para as pessoas, de forma colectiva, participativa e plural; em que a terra pertence às pessoas, e onde no centro estão as necessidades reais de todas as pessoas, tendo em conta as comunidades locais e justiça global. 
Em Portugal, precisamos um cadastro rural total que permita avançarmos para a gestão coletiva das terras abandonadas. Para isso temos de nos organizar nas nossas localidades e em rede, para agirmos lado a lado. 
Contra todos estes flagelos a nossa coragem e o desafio histórico de as enfrentar. Não nos sobra alternativa além de nós mesmas. Dia 20 de Setembro, junta-te a nós em algum dos muitos locais de protesto e organização popular.
Organizado por: Rede Emergência Florestal / Floresta do Futuro 
Subscrito por: 
ADPLP – Associação de Desenvolvimento e Proteção Local das Póvoas 
Associação Intervalo de tempo – ass cultural sem fins lucrativos 
Associação PRIP 
Casa de Gigante 
Climáximo 
CooLabora – Intervenção Social 
Cova da Beira Converge 
Fim ao Fóssil Coimbra 
Greve Climática Estudantil Lisboa 
Lousitânea, Liga de Amigos da Serra da Lousã 
proTEJO – Movimento pelo Tejo 
Reabrir a Galé 
SOS Árvores de Braga 
Arbor 
Global Florest Coalition 
ClimAção Centro 
Um Colectivo
MUDA (Movimento de União em Defesa das Árvores) 
Eco-Cartaxo 
Associação Cultural e Ecológica Palettentheater 
Kollektiv 
SOS Quinta dos Ingleses
Academia Cidadã
Plataforma Anti Transfobia e Homofobia de Coimbra
Movimento Cívico Ar Puro
Habitat Açores

A Rede Emergência Florestal / Floresta do Futuro foi criada em 2022 na sequência da Caravana pela Justiça Climática, reunindo membros de dezenas de aldeias e cidades em Portugal. Une os seus membros a convergência sobre a necessidade de mobilização social acerca de incêndios florestais em Portugal, incidindo nos três principais vértices deste tema no nosso tempo: eucaliptização, abandono e crise climática.
florestadofuturo2025@gmail.com