quarta-feira, 15 de março de 2023

25 de ABRIL: TRANSFORMAÇÕES NAS ESCOLAS E NOS PROFESSORES (V) - Eduarda Dionísio

O início do ano lectivo de 74/75

 

Foram muitos os professores que não quiseram ter férias em 74. Tomaram "revolucionariamente" para si as tarefas que anteriormente cabiam ao reitor e às secretarias - desde as matrículas à organização das turmas, passando pelos horários e pela organização da escola. Tratava-se de, quando o "Ano Lectivo nº 1" da "Era da Revolução" se iniciasse, ter entre mãos uma escola nova.

O ministério tinha entretanto nomeado uma Comissão de Estudo da Reforma Educativa (para os ensinos primário, preparatório, liceal e técnico, como então se chamavam), presidida por Mário Dionísio e formada por dezenas de comissões de professores dos vários graus e disciplinas. O trabalho consistia não em fazer, por enquanto, a "reforma", mas, em poucos meses, eliminar dos programas a ideologia fascista, introduzir as alterações mais óbvias nas disciplinas mais "desfalcadas" ou mais "marcadas". Quando o ano lectivo começou, os programas não eram já os mesmos do ano anterior, havia "textos de apoio" (em vez dos manuais), "introdução à Política" no ensino complementar, a religião e moral era completamente facultativa.

Mas foi sobretudo nas escolas que se iam dando as grandes transformações. Os professores estavam organizados em "grupos de trabalho" que proliferavam - para tudo e mais alguma coisa - para estudar, propor, pôr em prática. Os "organigramas" - palavra nova - dos novos modelos de gestão escolar" - conceito novo - sucediam-se e eram vivamente discutidos. Tratava-se de assegurar a máxima participação de todos os que trabalhavam e estudavam nas escolas, a maior representatividade de todos em todos os órgãos (todos eles novos - desde os conselhos de grupo aos conselhos de turma, passando pelas reuniões de escola e de sector, etc....), a mais larga "abertura ao meio". Tratava-se de ter nas mãos a escola em que se trabalhava ou se estudava - que se "habitava", como se dizia então -, fazê-la acompanhar o movimento social, a "revolução", quando não até ultrapassar o seu passo... Isto passava-se sobretudo nas escolas que batalhavam, na sequência da Lista B, pela "autonomia" e que eram contra um modelo único de gestão, como o Ministério e a CDP do Sindicato preconizavam.

Todas as transformações (sobretudo as que não coincidiam com os desejos da CDP ou lhe passavam à margem) eram o resultado de "lutas". Era possível ser recebido no Ministério pelos novos responsáveis, sem muito custo nem muita burocracia - uma novidade. Mas impor as propostas que se traziam das escolas e passá-las à prática com "aprovação superior" era sempre o resultado de conversações sem fim... Rapidamente se entendeu que se devia prescindir dessa "aprovação"...

Lembro-me das dificuldades postas pelo Ministério na transformação imediata da nossa escola - que era um liceu "masculino", com uma pequena secção "feminina" numa zona à parte, antes do 25 de Abril - numa escola "mista". argumentos invocados: a falta de "preparação" das mentalidades; os problemas que iriam surgir... Alguns professores mais conservadores, sem se atreverem a opor-se, sugeriam que as turmas passassem a ser mistas, sim, mas que as alunas deveriam ocupar as primeiras filas das salas...

Lembro-me da recusa da escola em receber mais alunos na escola - em nome da "democratização", o Ministério tentava obrigar a fazer turmas de 40 alunos - e como a reabertura de escola só aconteceu muito tarde, depois de uma enorme batalha em que todos participaram e que passou por contínuas informações para os jornais (que as publicavam), pela discussão com os alunos e pais, pela anexação de novos espaços que os professores se propunham gerir. 

Quando as "férias" terminaram, era uma outra escola: as turmas eram mistas, a distribuição dos alunos por turmas e por turnos visava combater a selectividade, a elaboração dos horários atendia sobretudo ao interesse dos alunos, caminhava-se para a semana de 5 dias (antes do 25 de Abril as aulas funcionavam aos sábados) e a recepção aos alunos (até então inexistentes) fazia-se em reuniões de turma (com todos os professores e alunos) que se aproximavam de "assembleias", com mesa, propostas, inscrições, votações, acta, etc...

Os professores da escola tinham respondido a um inquérito, na base do qual os grupos de trabalho eleitos decidiam e punham em prática critérios, depois de ratificados em assembleias. Havia um "caderno reivindicativo" aprovado que ultrapassava em muito as questões laborais e que avançava, por exemplo, para a criação duma creche dentro do liceu (que nunca foi autorizada). Os professores já se tinham manifestado quanto ao fim dos exames e por formas de avaliação contínua. Preparavam em conjunto (e às vezes com os alunos) programas, antologias. Os autores já eram outros. Já havia século XX. Também na escola e nas aulas, já se falava em "exploração", as colónias já não era o "ultramar, havia Leste, América Latina, política, cartazes.

Em Novembro e Dezembro de 74, toda a escola discutia - começando a discussão nas turmas e acabando em RGEs (Reuniões Gerais de Escola, com professores, alunos e empregados) - propostas divulgadas por escrito e da autoria de cada sector, ou grupos de alunos (alguns dos quais se identificavam partidariamente): as questões do saneamento (para o qual tinha sido constituída uma comissão aberta com regulamento aprovado publicamente), a avaliação, a gestão (com número igual de alunos e professores, com a participação de empregados e que incluía "Subcomissões" - cultural, informativa, sonora, técnica, desportiva...), um regulamento interno (utilização dos pátios e dos espaços - não havia sala de convívio -, aulas "abertas", faltas não eliminatórias, abolição das faltas de material e de castigo, material escolar à disposição em cada sala, julgamento de casos disciplinares com a presença dos implicados, etc...).

Simultaneamente, a comissão sindical - que era o motor de arranque de quase todas as questões e iniciativas (e que garantia uma autonomia financeira graças às quotas sindicais que não era difícil cobrar) continuava a divulgar textos e a promover, à noite, colóquios largamente participados onde se confrontavam correntes de opinião distintas e que a imprensa relatava. Lembro-me de  um sobre a "função de um sindicato" que reuniu na mesa pessoas com conceitos bem diferentes (Marcelo Curto, Teresa Rosa, Augusto Mateus, Manuel Gusmão), outro sobre a "função da escola", outro sobre "gestão", outro sobre "partidos". Aos muitos participantes era distribuído material. As pessoas continuavam a aprender. E gostavam do que faziam.

 

Em: O FUTURO ERA AGORA - O movimento popular do 25 de Abril, Coordenador: Francisco Martins Rodrigues, Edições Dinossauro, Lisboa, 1994, pp. 187 a 190.