sábado, 17 de agosto de 2024

FOI EM AGOSTO DE 1978


Tinha completado no dia 27 de Fevereiro, do ano acima referido, quarenta e cinco anos de idade quando, no dia 8 do supracitado mês, o edema pulmonar o matou, prematuramente, na sua casa de Monte Abraão (Queluz). Foi uma morte prematura e inesperada, para quem não privou com o Homem, o Cidadão e o Poeta Ruy Belo.

Para além de poeta reconhecido pelos seus pares e de todos os amantes da poesia, Ruy Belo foi também um cidadão íntegro e comprometido socialmente, como fica claro e evidente numa brevíssima nota biográfica, onde se realça a sua procura de saber, conhecimento científico e sua divulgação, através de umas quantas excelentes traduções de autores como: Antoine de Saint-Exupéry (Piloto de guerra, Cidadela e Um Sentido para a Vida), Montesquieu (Confidências sobre as causas da grandeza e da Decadência dos Romanos), Baise Cendrars (Doravagine), Raymond Aron (Ensaios sobre as Liberdades), H. - I. Marron (Do Conhecimento Histórico) e Jorge Luís Borges (Poemas Escolhidos). 

Na sua busca de conhecimento científico obtêm duas licenciaturas: Direito;  Filologia Românica; e, Doutoramento em Direito Canónico, com uma tese intitulada Ficção Literária e Censura Eclesiástica, na Universidade de S. Tomás de Aquino (Roma), em 1958.

Regressa a Lisboa e, durante cerca de três anos, é director literário da Editorial Aster e chefe de redacção da revista Rumo.

Em 1969 integrou a lista de candidatos a deputados, por Lisboa, da CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática). Em 1971 ocupa o cargo de leitor de Português na Universidade de Madrid. Como homem e cidadão íntegro e vertical, não se submeteu às clientelas político-partidárias nem aos jogos de poder, trocas de favores e influências. Por isso, quando regressou de Madrid, em 1977, apresentou requerimento para o lugar de assistente na Faculdade de Letras de Lisboa, este foi-lhe sistematicamente recusado. Apesar de ter habilitações académicas e experiência profissional que correspondiam ao então exigido, e a faculdade, como todo o sistema de ensino, ter falta de professores. Consegue, e em horário nocturno, um lugar de professor na Escola Técnica do Cacém. 

 

Ruy Belo escreveu, no seu livro País Possível, a nota que transcrevemos abaixo:

 

NOTA DO AUTOR

Este livro, que aparentemente poderia não passar de uma antologia visto que o integram um poema inédito e poemas extraídos dos meus últimos livros publicados, tem realmente uma unidade e é afinal um livro novo. E não o é apenas por eu publicar pela primeira vez na íntegra composições anteriormente truncadas por razões várias ou por eliminar ou emendar versos, por voltar a tentar suprimir o mais possível a pontuação, por resolver de vez «a guerra maiúsculas-minúscúlas» a favor do lado mais fraco.

Este livro é um livro novo porque um livro de poesia é, afinal, um lugar de convívio, um local onde os poemas reagem uns contra os outros, se criticam mutuamente, se transformam uns nos outros. É um livro novo, em suma, porque a ele, como a nenhum outro livro meu, preside indubitavelmente uma unidade temática: a do mal-estar de um homem que, ao longo da vida, tem pagado caro o preço por haver nascido em Portugal; a problemática de uma consciência que sofre as contradições próprias da sociedade em que vive e de um homem que tem atrás de si vários passados e vive várias vidas simultaneamente e que intensamente se autodestrói; que se vai suicidando lentamente porque essa sociedade o destrói e assassina e o censura e a censura se instala na sua própria consciência.

Unidade essa devida ao facto de estes poemas serem uma reflexão sobre o próprio poeta e a realidade que o rodeia, de serem uma forma de intervenção, de compromisso, de luta por um mundo melhor (não nos grita Mário Sacramento, no final da sua admirável Carta-Testamento: «Façam o mundo melhor, ouviram?») sem, por outro lado, o poeta pactuar com a demagogia, com o oportunismo que afinal representa não ver primordialmente na arte criação de beleza, construção de objectos tanto quanto possível belos em si mesmos, embora de difícil acesso porque a arte é difícil e precisa que, através da educação, da divulgação, da interpretação, quem a receba possa assim e só assim ter acesso a ela e assim se sentir vivo, vertical e assim actuar, intervir.

A poesia não é em si mesma, creio eu, uma forma de comunicação, como tão-pouco o são a pintura, a música, o romance, o verdadeiro e único romance, o romance que consegue que passe por ele a linha evolutiva da literatura. A poesia comunica, comunica até intensamente desde que se faça o leitor chegar até ela, esse leitor saído talvez de um povo que hoje, em Portugal, no estado de alienação ou alheamento em que se encontra, nem sequer se revê nas suas próprias criações, como, por exemplo, os romances do romanceiro tradicional. O povo português nem sequer se reconhece na sua música e prefere muitas vezes, penso eu, uma cançoneta de Tonicha transmitida pela rádio ou pela televisão, verdadeiras «técnicas de aviltamento», a uma composição qualquer das muitas que foram escrupulosamente recolhidas por Lopes Graça e Giacometti.

País Possível, portanto, creio eu, mais do que uma antologia, um livro novo: o livro possível, neste momento, a um homem que sente na poesia a sua mais profunda razão de vida mas se sente, simultaneamente, solidário com os outros homens, que talvez tenham dificuldade em compreendê-lo porque houve quem se empenhasse em que não compreendessem, nem pensassem, poque pensar é realmente um perigo, o maior dos perigos Pensar, pensar como um homem que nasceu livre e quer morrer livre, leva depois inevitavelmente a actuar, a lutar contra qualquer forma de opressão.

Mas só agora reparo que digo melhor tudo isto nalgum destes poemas. Estou afinal a comentar-me, a plagiar-me a mim próprio e só isso eu não aceito em arte. Por isso, ponho ponto final nesta nota, onde espero ter sido mais claro do que na minha poesia em geral.

É que não acredito realmente na clareza como um propósito da arte, quanto mais não fosse porque eu, quando construo um poema, não procedo de maneira a obter resultados que seriam decerto mais fáceis de conseguir através de uma carta, de uma conversa telefónica, de um artigo, de um discurso. É evidente que espero, ao fim e ao cabo, vir a ser claro. Mas isso não é, num poema, problema meu. Em contrapartida, espero tê-lo sido nesta nota, redigida um pouco à maneira de quem conversa em família.

Madrid, 1 de Maio de 1973.

 

Notas:

O poeta é intemporal, como o demonstra o texto acima... No fundamental, podia ter sido escrito hoje.

Os sublinhados são da nossa responsabilidade.