quarta-feira, 26 de junho de 2024

Europeias: mais tropas para a guerra contra a Humanidade



A extrema-direita ganhou as Europeias de 2024. Já tinha ganho a União Europeia antes mesmo de as urnas estarem abertas. A tentativa de normalização da situação atual, promovendo a descrição de que há um centro “europeísta” que aguentou o embate eleitoral não passa de uma mistificação. A extrema-direita não é uma força política, são várias. Mais do que isso, a extrema-direita é um programa político, que vigora na União Europeia de forma cada vez mais explícita

Comecemos com números, que são a maneira mais usual de “normalizar” mistificações. Dos 720 membros do Parlamento Europeu, a extrema-direita “oficial”, aquela que ainda será descrita como extrema durante mais alguns meses, dividida entre ID (Identidade e Democracia) e ECR (Conservadores e Reformistas), elegeu 131 eurodeputados, o que faria deste o terceiro maior grupo do Parlamento, atrás do Partido Popular Europeu e dos Sociais-Democratas. No entanto, há ainda no mínimo mais trinta eurodeputados de extrema-direita não-alinhados e nos “Outros”. De entre estes, destacam-se os 15 eurodeputados do AfD na Alemanha, os 10 do Fidesz na Hungria, os 5 da AUR na Roménia. A extrema-direita será efetivamente a segunda força do Parlamento Europeu, mesmo que não esteja toda no mesmo grupo.

O partido com mais eurodeputados em todo o Parlamento Europeu é o Rassemblement National de Marine Le Pen, com 30. O terceiro partido com mais eurodeputados é o Fratelli d’Italia com 24. O quinto é o PiS da Polónia, com 20 (empatado com o PD italiano e o PSOE espanhol). Na Alemanha, o maior país da UE, a extrema-direita foi o segundo partido mais votado. Excluindo coligações, a extrema-direita foi o partido mais votado em oito países: França, Itália, Polónia, Holanda, Áustria, Bélgica, Hungria e Letónia.

Como se a informação anterior não fosse suficiente, há perguntas essenciais a fazer sobre os restantes partidos. Programas políticos de todo o espectro político foram atraídos para o buraco negro do ódio da extrema-direita. Por isso surgem aberrações políticas como a chamada Aliança (Bündnis) Sahra Wagenknecht, partido com um programa racista e nacionalista que se apresenta como “esquerda”. O governo alemão, liderado pelo Partido Social-Democrata (teoricamente de centro-esquerda) e Verdes, governa com uma política de direita e extrema-direita em quase todas as áreas – do ambiente às migrações, passando obviamente pela chacina na Palestina. A resposta nas eleições colocou-os abaixo de qualquer dos partidos de direita: porquê votar na imitação quando há fascistas que não têm vergonha de o ser?

Também em França a viragem de Macron à direita não travou a ascensão do Rassemblement National (RN), que teve mais que o dobro dos votos do seu partido neoliberal. Na sequência da chamada de eleições, o líder dos Republicains, antigo partido de Nicolas Sarkozy, já declarou que apoiaria um governo francês de extrema-direita liderado pelo RN. Não existe nenhuma linha vermelha.

Mas uma política de extrema-direita é mais do que o número de deputados reconhecidamente de extrema-direita. É preciso ser claro que os programas eleitorais da esmagadora maioria dos partidos do Partido Popular Europeu, o “vencedor” oficial das eleições, são programas de extrema-direita, anti-migrantes, nacionalistas, contra trabalhadores, advogando regressos ao passado e aos ódios históricos dos europeus – contra as mulheres, contra muçulmanos, contra judeus, contra negros e outras minorias étnicas, contra a comunidade LGBTQ. E, obviamente, são programas negacionistas da ciência e por consequência, negacionistas da crise climática, disfarçando o seu serviço às grandes multinacionais como “realismo económico”.

A política da União Europeia será, portanto, uma política de extrema-direita, em que se manterão os preceitos neoliberais deixando cair quaisquer máscaras. A União Europeia serve para manter as empresas europeias a dar lucros aos seus acionistas e dirigentes. E se queremos ser honestos, é o que a União Europeia sempre fez, embora no passado com algum esforço de maquilhagem.

O que muda, portanto? As instituições continuarão a utilizar os seus vários ramos – legislativo, executivo, judicial, coercivo e mediático – para impedir que se trave a crise climática e para garantir o colapso da Humanidade, como faziam até agora. No entanto, a aliança que governa a Europa recebeu luz verde para a aplicação da violência institucional (policial e militar) e a disseminação do ódio a partir do topo, incentivando uma desagregação ainda maior das já frágeis sociedades existentes na crise estrutural do capitalismo na sua fase neoliberal.Um primeiro teste chegará em breve, com o regresso das regras fiscais do semestre europeu, que significará nada mais do que o regresso da austeridade cruel que bem conhecemos, aplicada à França, Itália, Espanha, Alemanha, Bélgica e Holanda. Mas o martelo pneumático da crise climática não parará, é uma guerra provocada por governos e empresas contra a sociedade e agravar-se-á nos próximos anos. A ascensão da extrema-direita, previsível perante a ausência de uma esquerda disruptiva, traz novas tropas para esta guerra contra a humanidade.

O apelo urgente à união das esquerdas institucionais, sem uma análise crítica às suas políticas, às suas estratégias e às suas táticas que também nos trouxeram até aqui, é só desespero. Uma união abstrata para salvar este sistema comatoso, empurrando tudo para o centrão, serve apenas como seguro de garantia da extrema-direita, tornando-a o centro da política. Parece basear-se na análise de que a legitimidade deriva principalmente de atos eleitorais que cristalizam o poder nas sociedades, ignorando tudo o que a extrema-direita esteve a fazer durante a última década e ignorando principalmente o que a esquerda não fez durante a última década. Será que agora, quando a estabilidade do nosso planeta e das nossas sociedades oscilam como nunca, agora que até as veneradas instituições dos capitalismos nacionais, europeus e globais começam a cair nas mãos do fascismo, se manterá o foco nas instituições e no regresso ao passado pré-extrema direita?

Como a política real não é simplesmente a soma de pequenos aglomerados de ideias, mas sim de programas políticos concretos, qual será o programa para a união das esquerdas a que se está a chamar? Que há várias crises já se sabe, mas qual é o programa político que responde às questões políticas essenciais do nosso tempo? Terá a esquerda a coragem de assumir que o capitalismo declarou uma guerra até à morte contra a Humanidade? Reconheceremos que o capitalismo está a recrutar ativamente uma parte cada vez maior da sociedade para matar a outra através da política da extrema-direita? Se sim, aceitamos organizar-nos para ganhar esta guerra?

 

João Camargo – Investigador em alterações climáticas, membro do Climáximo

Artigo de opinião no Expresso, 13 de Junho 2024