quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

O capitalismo contra o clima

João Camargo (texto e ilustrações), ativista do Climáximo e investigador em alterações climáticas

Tempo aproximado de leitura: 18 minutos

Não é raro falarmos de capitalismo “fóssil”, mas o objetivo desta formulação é apenas tornar clara a origem da crise climática: a queima de combustíveis fósseis. Poderia haver quem argumentasse que, se há um capitalismo fóssil, também haveria “verde”. Essa é, no entanto, uma impossibilidade. O capitalismo não pode não usar combustíveis fósseis. Não significa que não possa também usar outras formas de energia. A ligação entre capitalismo e combustíveis fósseis é absoluta, como é portanto a ligação entre o capitalismo e a crise climática. É preciso ser claro: o capitalismo criou a crise climática. É preciso ser mais claro ainda do que isto: o capitalismo criou e sabia há muito que criou a crise climática. Além disso, é preciso dizer que o capitalismo é e será incapaz de travar a crise climática.

 

Tendemos a assumir que o capitalismo é o estado natural das coisas porque somos permanentemente bombardeados na guerra cultural que fez das nossas cabeças e da nossa imaginação um campo de batalha sobre o que é ou não possível. Desde a cultura dominante no capitalismo às notícias, às redes sociais, tudo nos diz que o mundo é isto e não pode ser isto. No entanto, sabemos que somos uma espécie que tem entre 200 e 300 mil anos de existência. Também sabemos que só nos últimos 12.000 anos surgiram as condições para o aparecimento de agricultura, de grandes aglomerados populacionais e da “civilização” como a conhecemos. Foi o clima do Holoceno que nos permitiu essa evolução. O capitalismo como forma de produção e organização social não tem muito mais de 200 anos, apesar das suas alianças com outras formas antigas de organização repressiva, como o patriarcado e o colonialismo. A lengalenga de que a maneira como alguns grupos se comportam em capitalismo é “natureza humana” não passa disso mesmo – uma lengalenga. Como todas as lengalengas, tem aderentes. O que eles querem conformar é a ideia de que não há alternativa a este sistema, e que portanto devemos simplesmente aceitar que é assim. Apesar de termos vivido enquanto espécie neste planeta durante pelo menos 198.800 anos sem capitalismo, e apesar de termos agricultura, aglomerados populacionais e civilização há pelo menos 11.800 sem capitalismo. Apesar disto, dizem-nos que não há alternativa ao capitalismo. Sim, é ridículo e não passa qualquer crivo histórico ou científico.

 

Em 2006, Sir Nicholas Stern escreveu no seu livro “The Economics of Climate Change”, que as alterações climáticas eram a maior falha de mercado que o mundo já viu. Stern reconhecia que havia um grave problema “o maior que o mundo já viu”, mas chamava-lhe uma “falha”. Não é verdade. O capitalismo necessitou e necessitar ignorar os efeitos das suas atividades para funcionar. Se o capitalismo tivesse de pagar a degradação ambiental que as suas atividades produzem, teria de abdicar dos seus lucros e portanto deixaria de funcionar. O capitalismo tem de desprezar o facto básico de os recursos humanos serem não só escassos como finitos, razão pela qual encoraja permanentemente (e além da cultura, a publicidade tem aqui um papel essencial) produtores e consumidores a gastar os recursos de acordo com o ritmo das “condições de mercado”.  Mercado é uma palavra-chave em capitalismo. De acordo com a Investopedia, um “mercado é um lugar onde as partes se juntam para facilitar a troca de bens e serviços, tendo compradores e vendedores, podendo ser físico ou virtual”. Além disso, algumas características chave do mercado incluem a “disponibilidade de um local, compradores e vendedores e uma mercadoria que possa ser comprada e vendida”. Este mercado, em particular os “mercados internacionais”, não são algo que nós consigamos ver ou participar. Talvez sejam mais simples explicar que mercados são pessoas ricas que decidem o que comprar e vender, porque essa definição descreve a quase totalidade dos mercados nacionais e internacionais. Não é uma entidade abstrata: tem nomes, moradas e interesses representados em bolsa.

 

O capitalismo necessita que tudo seja mercadoria e, portanto, transacionável – recursos, naturais, plantas, animais, o clima, as emissões – mesmo que o seu valor seja incalculável, como a capacidade que as plantas têm para fornecer oxigénio. Algo que não possa ser transacionável entre os ricos (“mercados”) tende a ser ignorado em capitalismo porque não tem valor de troca e, portanto, não poderá render imediatamente a alguém. Isso pode ser algo como a dignidade ou direitos humanos, como pode ser a habitabilidade de um território, o colapso de um ecossistema terrestre ou a vida de uma comunidade. A atribuição de um valor monetário a qualquer um destes é um processo de alienação, até porque um valor monetário, uma “moeda”, seja ela qual for, depende apenas de uma crença e não tem qualquer correspondente material.

 

No livro “Capital Fóssil” de Andreas Malm, ele explica-nos a origem e fusão completa entre o capitalismo e os combustíveis fósseis, partir do início da revolução industrial. O abandono da utilização da água como fonte de energia, trocada pelo carvão e o vapor não foram apenas um “avanço tecnológico”, como tantas vezes nos explicam em livros de história: foram uma maneira de aumentar o controlo sobre a maneira como se produzia e, principalmente, sobre quem produzia. O carvão e, mais tarde, o petróleo e o gás, ganharam sobre a água e o sol como fonte de energia porque permitiram aumentar o controlo dos patrões sobre quem trabalhava, aumentando simultaneamente o poder da burguesia industrial sobre o Estado.

 

Permitiram construir fábricas longe da água e ignorar as horas do dia, colocando quem trabalha – crianças, mulheres, homens, idosos – a trabalhar todas as horas do dia, 14 a 16 horas por dia, seis dias por semana. A concentração da energia também permitiu arruinar pequenos produtores que não tinham capacidade de produzir à mesma velocidade e com a mesma quantidade das fábricas, que se desenvolviam à volta dos motores a carvão. Além disso, o carvão (como o petróleo e o gás) são matérias cuja extração é de muito maior dificuldade, tendendo a criar grandes monopólios. Os combustíveis fósseis fazem parte integral das relações de propriedade burguesas: foi o carvão que criou a grande fábrica e o proletariado industrial. A “transição” para o carvão foi uma decisão deliberada e extremamente útil para consolidar o capitalismo como modo de produção, tal como as inúmeras decisões tecnológicas que sucederam desde o final do séc. XVIII. As decisões tecnológicas foram sempre orientadas por relações de poder e não de racionalidade energética.

 

Além das turbinas a carvão e petróleo, em 1804 foi criada a primeira locomotiva a carvão em Inglaterra. As locomotivas a vapor e a petróleo continuaram a evoluir e a ser adaptadas a vários usos, desde os comboios às fábricas e aos barcos, permitindo a explosão de produção e distribuição de produtos, que levou ao êxodo rural das populações do campo para as cidades e as indústrias, que continuou durante os séculos seguintes. Os caminhos de ferro foram-se expandindo, como o foi também a navegação marítima alimentada agora não apenas a ventos e marés, mas também a carvão e petróleo – isto tornou o mundo mais pequeno, aumentou o comércio, a extração de matérias-primas em todos os continentes e o modelo de desenvolvimento industrial capitalista.

 

 

Os combustíveis fósseis têm outra vantagem sobre as energias eólica, solar e da água – são uma pilha, têm energia solar armazenada, pois são o resultado da degradação de seres vivos há milhões de anos. Como estavam no subsolo, estavam fora do sistema biológica de circulação. Podem ser transportados e armazenados para ser consumidos a qualquer altura. E a sua queima liberta na atmosfera o dióxido de carbono que tinha sido fixado pelos seres vivos enquanto estavam vivos.

 

Em 1864 Nikolaus Otto inventou o motor a 4 tempos, que deu origem aos motores a gasolina e a diesel. Simultaneamente, o motor elétrico também era desenvolvido, mas a sua menor rentabilidade e predisposição a controlo monopolista colocou-o sempre em segundo plano. O primeiro carro a combustíveis fósseis foi inventado no séc. XIX, tal como o primeiro carro elétrico – o segundo praticamente desapareceu durante mais de 100 anos. O Ford-T foi o primeiro automóvel produzido em massa numa fábrica, e o seu objetivo era ser barato e acessível a milhões. Entre 1908 e 1927 for produzidos 15 milhões de Ford-Ts. Desde o início do século passado cerca de 3 mil milhões de carros foram produzidos, tornando-se um dos principais meios de transporte do planeta, e criando inúmeros monopólios simultâneos – da produção dos automóveis, das peças, do combustível, da construção das estradas, etc.. Nos anos 30 do século passado foi inventada a turbina a jato, que lançaria o transporte aéreo, também a combustíveis fósseis, e que se foi desenvolvendo para ocupar o espaço das viagens cada vez mais curtas, substituindo barcos e comboios. A eletrificação das sociedades e economias ocidentais exigiu a criação de grandes centrais elétricas, cujos proprietários tinham forte poder sobre a sociedade (seja pelo preço da energia, seja pela quantidade e regularidade de abastecimento). Eletricidade, fábricas, portos, aeroportos e estradas, todos dependentes de combustíveis fósseis, são expressão mais clara de como o capitalismo é e só pode ser capitalismo fóssil.

 

O capitalismo não pretende produzir bens e serviços, mas sim capital e acumulação. Se para isso tiver de destruir o planeta, fá-lo-á sem problemas, a não ser que seja travado. Mas também é flexível e, por isso, quando os capitalistas deixam de conseguir acumular riqueza a ritmos crescentes, ou quando vêm uma oportunidade, “inovam” e tornam-se “empreendedores”.

 

 

A gigante confusão entre crescimento e desenvolvimento é o terreno fértil em que o capitalismo quer ser eterno. Infelizmente esta confusão domina e é por isso que se alimenta a ideia errada de que, para haver empregos, é preciso destruir o ambiente e o clima. O capitalismo diz-nos que abdicar dos combustíveis fósseis é escolher viver nas cavernas, quando a realidade é que continuar a usar combustíveis fósseis significará, na melhor das hipóteses, viver nas cavernas. O mundo já está fundamentalmente diferente daquele em que o capitalismo se desenvolveu e prosperou. Agora só degradando cada vez mais e muitas vezes de forma irreversível o trabalho, o ambiente e o clima poderá continuar a manter as suas taxas de retorno, os seus lucros, a sua extração de mais-valia.

 

A austeridade é um sintoma disso mesmo, como é a crise do custo de vida, que hoje já tem como fonte direta o preço dos combustíveis fósseis e a crescente escassez material ligada à crise climática. Enquanto houve capitalismo, a crise climática continuará sempre a exprimir-se como uma crise de custo de vida, em que nós pagaremos os prejuízos e os lucros das elites capitalistas, que nunca pararão. O capitalismo considera mesmo que a escassez de estabilidade climática pode ser uma oportunidade de negócio a ser aproveitado por aqueles que possuem capital e tecnologia para aproveitar o momento. Como o capitalismo nunca aceita perder, além das “oportunidades” no combate às alterações climáticas também vê “oportunidades” no caos climático. O frenesim das seguradoras e das resseguradoras é total, e a financeirização uma necessidade. Assim, o capitalismo procura rentabilizar já não só futuros lucros como lucrar com as catástrofes. Nos últimos anos houve uma explosão financeira para transferir riscos climáticos através de derivativos climatéricos e títulos de catástrofe (cat bonds).

 

“Descarbonizar” a economia, por outro lado, é um jogo de palavras proclamado por vários governos e empresas, sempre que não se pára a utilização de combustíveis fósseis, que não se encerram indústrias com elevadas emissões, sempre que não se transformam os transportes e a produção agro-pecuária e florestal. Renováveis não tiram dióxido de carbono da atmosfera e os novos modelos de renováveis estão a mimetizar os monopólios fósseis e são mesmo algumas destas empresas que já dominam o novo sector: com grandes centrais, grandes redes de distribuição e a manutenção do poder nas mãos dos “mercados”.

Em muitos locais do mundo as alternativas já existem e estão a ser praticadas: a permacultura, a democracia energética, a revolução alimentar, o combate às energias fósseis em funcionamento, os transportes alternativos. No entanto, a escala a que estas alternativas estão a ser praticadas é residual e estas são mantidas na marginalidade pelas leis que defendem o status quo, o poder como ele sempre foi e, acima de tudo, a propriedade.

 

O capitalismo não poderá jamais abdicar de lucro, e há mais reservas de petróleo e gás no subsolo do que aquelas que queimámos até hoje – e é por isso que até hoje as emissões nunca pararam de aumentar. Eles não têm alternativa a fazer todo o lucro que possam e por isso têm de ser derrubados para poder continuar a haver Humanidade.

Artigo originalmente publicado em: https://outraseconomias.pt/outrasec/o-capitalismo-contra-o-clima