segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

E a repressão estatal? – um ensaio pela Equipa Legal do Climáximo

Com a crise climática a intensificar-se num contexto capitalista, as ativistas de todas as causas progressistas vão enfrentar repressão. Em muitos casos, nem vai ser preciso cometerem algum “crime”, só estarem organizadas será prova suficiente. Sabem como sabemos isso? Sabemos porque a crise climática já está com força total em muitos países e nesses países o capitalismo só está a conseguir sustentar-se por força bruta, atacando todas as manifestações de solidariedade, organização e protesto. As ações pela justiça climática no Norte Global estão a prenunciar este colapso social, antes do planeta inteiro entrar num espiral de violência dirigida pelos elites e executada por nós contra nós. Só agindo agora é que podemos evitar os piores cenários.

Neste contexto do colapso iminente, nos últimos 3 meses, os apoiantes do Climáximo participaram em 29 ações diretas para alertar a população: os governos e as empresas declararam guerra contra as pessoas e o planeta.

Registámos entre 60 e 80 detenções (dependendo de se contamos as identificações que ainda não tiveram seguimento por uma queixa). Estas pessoas estão a acionar os seus privilégios, colocar a sua própria integridade física em risco e enfrentam repressão de várias formas. Mas isso é expetável: se os governos e as empresas estão a destruir as condições físicas e químicas dum planeta habitável e se eles fazem isso duma forma deliberada e coordenada, então quem diz isto publicamente com estas palavras vai ter de ser calada.

As instituições do Estado e as escolhas que se faz

A repressão estatal é estrutural, mas é sempre mediada pelas pessoas: pessoas que não são do 1% mais ricos, pessoas que vão perder as suas famílias para a crise climática, pessoas que tomam decisões. A Polícia de Segurança Pública (PSP), o Ministério Público (MP) e os tribunais são instituições desenhadas para manter as várias formas de injustiças e desigualdades estruturais nas nossas sociedades, mas são simultaneamente instituições em que há pessoas com agência própria.

No contexto de crise climática, queremos explorar que opções reais existem.

Para isso, vamos correr uma ação do início até ao fim:

1ª Fase: Alguém chama a PSP por causa dum protesto de rua.

Polícias chegam e verificam: Há alguma violência física ou alguém a destruir propriedade? Ou seja, há alguma intervenção que tem de ser feita de imediato? Se a resposta é negativa, então isto é uma manifestação espontânea sobre a crise climática, o assunto mais importante da nossa sociedade que não estava nem no telejornal nem nos debates parlamentares ontem. O que interessa uma rua cortada durante umas horas, se com as cheias as ruas ficam cortadas durante dia e noite?

A primeira coisa que a PSP tem de fazer então é: cortar o trânsito para garantir a segurança da manifestação.

Quando um chefe de polícia dá ordem para tirar os manifestantes, ele está a tomar uma decisão contra si e contra os seus filhos.

2ª Fase: Depois de garantir a segurança, os polícias podem abordar os manifestantes para perceber qual é o propósito e se há algum plano.

Podem perguntar se os manifestantes querem ficar onde estão ou se querem marchar, por exemplo. Podem também perguntar se há um promotor – se não houver, para preparar uma participação, os polícias podem querer identificar todos os manifestantes. Entretanto os polícias podem observar a atitude das manifestantes: se estão a ser responsivas e se estão a ser abertas a comunicação. Esta conversa em si pode demorar tempo. Os manifestantes podem querer discutir entre si o que querem fazer. (Afinal, isto é uma manifestação espontânea.)

Quando um polícia agarra num manifestante pelo pescoço, ele está a tomar uma decisão contra si e contra o seu amigo no bairro que perdeu a sua cozinha devido às infiltrações nas últimas inundações. Quando um polícia põe o seu joelho em cima duma manifestante para algemá-la, ele está a tomar uma decisão contra si e contra o seu avô reformado que vive numa casa fria. Quando um polícia dá um soco num manifestante, ele está a tomar uma decisão contra si e contra as centenas de milhares de pessoas na Líbia que perderam a sua cidade inteira devido à maior tempestade do Mediterrâneo no verão passado.

3ª Fase: Depois da manifestação passar a sua mensagem e o polícia pode ter registado tudo que precisa para escrever a sua participação, a PSP pode abrir o trânsito duma forma faseada.

Quando um chefe de polícia dá ordem de detenção e leva os manifestantes para a esquadra, ele está a tomar uma decisão contra si e contra a 30 milhões de pessoas no Paquistão que perderam as suas casas nas cheias no ano passado.

Vamos assumir que tomaram todas estas decisões, e agora os manifestantes estão numa esquadra.

4ª Fase: Na esquadra, os polícias podem fazer a papelada necessária e libertar as manifestantes.

Quando um chefe duma esquadra ordena a manutenção das pessoas algemadas com as mãos atrás das costas, durante horas, ele está a tomar uma decisão contra si e contra tudo que ama. Quando um chefe de esquadra manda despir os manifestantes para revistas, sabendo que essas pessoas estiveram simplesmente sentadas no chão para alertar a população sobre a maior crise que a Humanidade alguma vez enfrentou, ele está a tomar uma decisão contra si e contra todos os agricultores do mundo. Quando os polícias seguem esta ordem e até fazem escolhas aleatórias (só mulheres? só duas pessoas?) para insultar os manifestantes, eles estão a tomar decisões contra si e contra as suas próprias famílias.

Quando chega uma ordem de pôr as manifestantes a passar mais de 24 horas numa célula “para evitar a continuação dos protestos”, várias pessoas na PSP (e no MP) já tomaram várias decisões contra si e contra as suas comunidades.

5ª Fase: Agora com a identificação devidamente feita, a papelada vai para o Ministério Público.

Um procurador recebe-a. Um grupo de manifestantes trouxe a crise climática à atenção pública. O procurador ouviu o rádio hoje de manhã e ninguém estava a agir como se estivéssemos numa crise existencial da civilização. Estes protestos são mesmo essenciais para insistir num debate alargado. O procurador pode olhar para o documento:

– Houve uma manifestação espontânea, exercício dum direito constitucional.

– Houve talvez inicialmente alguma insegurança rodoviária. Ainda bem que a PSP foi lá. Fica então de responsabilidade da PSP garantir a segurança rodoviária. Os manifestantes não têm essa obrigação e não causaram qualquer dano ou qualquer acidente.

– Houve uma ordem de dispersão, à qual os manifestantes não obedeceram. Essa ordem não era suposto ser dada.

Sabendo o que sabe sobre a crise climática, o procurador arquivava o caso de imediato.

Cada vez que um procurador prossegue com um caso contra o ativismo pela justiça climática, ele está a tomar uma decisão contra o seu presente e o seu futuro.

Cada vez que um procurador escreve um caso, de processo sumário, em que as únicas testemunhas são os agentes da PSP (que têm um incentivo estrutural para justificar a sua intervenção), ele está a tomar uma decisão contra si e contra o Estado de Direito.

Já houve dezenas de pessoas e dezenas de decisões até aqui, mas ainda nem chegámos ao tribunal.

6ª Fase: No tribunal, a juíza pode analisar a situação com atenção.

Um grupo de cidadãos saiu das suas casas (e das suas zonas de conforto), colocou o seu corpo na linha de frente para alertar a população sobre o colapso civilizacional. A juíza pode pensar na última onda de calor e no quão difícil foi levar a sua mãe ao hospital sem que uma delas desmaiasse em 40ºC de temperatura na rua. A juíza pode simplesmente rejeitar o caso na base do Direito à Manifestação ou do Direito ao Ambiente.

Cada vez que uma juíza decide aceitar um processo e cada vez que uma juíza não absolve os manifestantes na primeira audiência, ela está a tomar uma decisão contra si e contra todos os pobres do mundo.

7ª Fase: Imaginando que houve alguma necessidade especial para ouvir o Ministério Público e a defesa, a juíza pode decidir absolver as ativistas de imediato.

Pode referir, por exemplo, a Lei de Bases do Clima, que diz especificamente que “Todos têm o dever de proteger, preservar, respeitar e assegurar a salvaguarda do equilíbrio climático, contribuindo para mitigar as alterações climáticas.” Que mais cidadania podia haver do que manifestar-se para dar visibilidade à crise climática?

Cada vez que uma juíza condena ativistas pela justiça climática, ela está a tomar uma decisão contra si e contra todos os cidadãos.

Fase intercalada: Entretanto, pode também haver alguma pressão institucional para fazer essas escolhas. Mas mesmo nesse caso, escrever uma “boa” acusação ou dar um “sólido” testemunho contra as ativistas pela justiça climática também são escolhas. Como todos aprendemos como crianças, há várias formas de não-colaboração com as regras dum jogo.

O que é que isto significa?

Não estamos a escrever este ensaio por acreditar que a PSP, o MP ou os tribunais vão de repente juntar-se à causa.

Sabemos que isso não vai acontecer, porque somos companheiras da Claúdia Simões e do Mamadou Ba.

Com este ensaio, destacamos as várias decisões pessoais que cada funcionário do Estado está a fazer e podia optar por não fazer: não é procedimento, não é protocolo, é escolha.

Estas instituições são desenhadas para manter o status quo, e neste caso o status quo implica o colapso da civilização. Compreendemos que se os funcionários deixarem de colaborar com o propósito das suas instituições pode implicar que eles deixem de ser funcionários ou que as instituições deixem de existir. Para pôr em perspetiva, a 3 de dezembro de 1973, a poucos meses da revolução, a PIDE deixou de escutar os militares. Não sabemos as razões ou como isso aconteceu, mas sabemos que depois de 25 de abril já não havia PIDE.