terça-feira, 20 de setembro de 2022

O Testamento de um burro aos seus inimigos

Os «Motes» são cantigas de mal-dizer que, durante séculos, os rapazes faziam às raparigas solteiras na aldeia de Covas de Barroso e, mais tarde, também as raparigas faziam aos rapazes durante o Carnaval. Eram críticas irreverentes e bem-observadas ao comportamento e carácter de uns e outros, com linguagem propositadamente satírica. Estes motes, no entanto, são uma expressão de profunda indignação. Estes são alguns excertos das «talhadas» dadas no enterro do burro, na manifestação contra as minas em Boticas, que encerrou o Acampamento em defesa das Covas do Barroso.

A Savannah é uma peste
que se instalou no Barroso
Ataca tudo o que mexe
desde o mais velho ao
mais novo

É bem pior do que a praga
ou febre que dá e passa
É como o bicho dos pinheiros
ou o míldio da batata

E a quem bater à porta
essa febre ou maldição
é rezar-lhe pela alma
e encomendar-lhe um caixão

Em tudo ela é igual
ou pior que a peste negra
que se pegava pelos ratos
esta pelos ratos da empresa

E desses há-os às dúzias
temo-los na empresa
aos trambolhões
Essa espécie de ratisse
não são ratos são leirões

Se vos atestam o depósito
ou dão jeito ao telhado
isso tem sempre um propósito
é presente envenenado

Há uma segunda intenção
De graça ninguém vos serve
Olhai que quem meren-
das come
sabeis bem, merendas deve

Estes que vós ali vedes [apontam
ao burro]
teso como um carapau
também lhes foi na cantiga
e hoje é o seu funeral

De que morreu não sei
mas tenho a firme certeza
ser obra de bolo-rei
oferecido pela empresa

Outros culpam o padeiro
mas sem provas não se pode
Que se enganou na farinha
E o matou de overdose

Tem sempre desculpa a morte
mas seja lá como for
desta tropa minha gente
quanto mais longe melhor

Quantos de vós acreditam
em histórias da carochinha
Que o futuro do Barroso
é em cada canto uma mina

Têm para vender essa banha
meia dúzia de lambe-cús
espalhados por todo o lado
estão ali dentro alguns [apon-
tam para a sede da Savannah]

E querem fazer passar
por parvos
um povo inteiro
Comprando aquilo que é nosso
Pagando com o nosso dinheiro

E mentem ao afirmar
que foram por nós aceites
como se fosse possível
misturar água e azeite

Prometem mundos e fundos
mas a mim quer-me parecer
que a esmola que mata o pobre
é melhor nunca aparecer

Vamos-lhes dar a talhada
com esta exigência do povo
Ide comer aos quintos
dos infernos
Bem longe do nosso Barroso

(...)

Barroso, diz Galamba
não é bem o que se supunha
a última vez que lá fui
vim de lá com os socos na unha
[expressão que significa fugir]

Para que foste cagar lérias
onde não foste chamado
Quiseste ir buscar lã
vieste de lá tosquiado

Quem quer ir dar eleições
como tu em terra estranha
foge com o rabo entre as pernas
e vem com uma carga de lenha

Mas como recordação
e a intenção é que conta
Levas o piroco do burro
põe-lhe um brinquinho
na ponta

O Costa é quem governa
mas tenho cá na ideia
que ele só faz o que manda
a Comunidade Europeia

Mandar na casa dos outros
isso é que era bonito
Se o Costa baixa as calças
O povo faz-lhe um manguito

Mas é bem mandado o António
que faz tudo sem resmungar
A única pergunta que faz
é onde falta assinar

Levas no olho do cú
Toma lá que te dou eu
agora já podes fazer favores
com aquilo que é teu

O presidente Marcelo
esse nem é boi nem vaca
A tudo ele diz que sim
faça o governo o que faça

É sempre tão falador
com opinião sobre tudo
Quando se fala de minas
não dá pio, fica mudo

Para ter postura diferente
levas a cabeça do burro
Acena-lhe com as orelhas
não digas amém a tudo

No Ministério do Ambiente
a corja anda calada
É de desconfiar minha gente
que vem foda ou canelada

E temos novo ministro
mas cuidado com o artista
Está sempre de pé atrás
o gajo é malabarista
 
Saiu um, entra outro igual
É sempre o mesmo retrato
É tudo a mesma ganga
farinha do mesmo saco
 
Vão levar os intestinos
É o que o Ministério quer
que os deles estão todos rotos
de tanta merda fazer
 
O Plano de resiliência
é uma medida bonita
O rico fica mais rico
e o pobre mais pobre fica
 
É sempre a mesma panelinha
os que mamam o dinheiro
São os que têm bons padrinhos
ou amigos no poleiro
 
Todos de olhos na bazuca
vem aí nota à fartura
parecem os porcos na pia
à espera da lavadura
 
Com apetite tamanho
qualquer coisa os satisfaz
levem os figos que deixou
o burro a cagar para trás
 
Diz-se independente a APA
mas não tem sido capaz
Tudo o que o governo diz
para fazer
a APA faz
 
estudos para inglês ver
o governo manda assinar
Relatórios para ceguinhos
e a APA é só carimbar

Para assinarem de cruz
pode ser que esteja errado
mas que foram fazer à escola
de que valeu terem estudado
 
O tempo que lá passaram
era mais aproveitado
atrás de um rebanho de cabras
tiravam mais resultado
 
Mas se fizéreis vista grossa
e são outros quem decide
a culpa cai sobre vós
deste povo que aqui vive
 
O burro dá-vos as patas
É um favor que vos faz
Dai-lhe um coice no focinho
Fazei-os afastar para trás
 
Os empregos disponíveis
para o povo da região
é trabalho de limpezas
vassoura, balde e esfregão
 
E trazem-nos nas palminhas
Enchem-nos de mordomias
Mas escorraçam-nos como cães
Ao não terem a serventia
 
Levais os olhos do burro
e um conselho vos é dado
Olhai por quem dos teus
se aparta
Pelos estranhos é escornado
 
O presidemte de Montalegre
tem um bigode bonito
tem parecenças com
um vassoiro
Desses de varrer os penicos 

Se for maior o bigode
o Orlando não é capaz
de varrer por mais que queira
a merda toda que faz

De manhã é contra as minhas
À tarde é a favor
E meia palavra basta
para bom entendedor

E diz para trás, diz para a frente
Se é pedra diz que é pau
Orlando muda de lentes
andas a ver muito mal

Levas os miolos do burro
e a ti vem-te a calhar bem
Ficas mais inteligente
e não fazes mal a ninguém
 
Nos jornais e televisões
pintam-nos como uns tolinhos
que vivem atrás dos torgos
somos uns atrasadinhos
 
Mas depois abrem os jornais
A falar de seca extrema
E sem querer dão-nos razão
Nesta luta que travamos
 
Os motes chegaram ao fim
e há uma lição a tirar
Para não acabarmos como
o burro
assim de papo para o ar
 
Antes de lhe dardes entrada
lembrai-vos bem da toupeira
trocou os olhos pelo rabo
e viveu cega a vida inteira

E não os julgueis inocentes
que sabem o que é que fazem
e o mal que iriam causar
caso as minas avançassem

Mas isto não lhes tira o sono
A ganância trá-los cegos
Se não os corrermos daqui
Fazem-nos a vida num inferno

E depois do mal estar feito
não adianta chorar
O burro morto cevada ao
rabo [provérbio]
como é costume falar

Fazendo da minha voz
a voz de todo o Barroso
as minas não passarão
e quem manda é  povo

Transcrito de: MAPA / JORNAL DE INFORMAÇÃO CRÍTICA / SETEMBRO-NOVEMBRO 2022