quinta-feira, 6 de novembro de 2025

AO MIGUEL, NO SEU 4.º ANIVERSÁRIO, E CONTRA O NUCLEAR, NATURALMENTE - EUGÉNIO DE ANDRADE


Vais crescendo, meu filho, com a difícil
luz do mundo. Não foi um paraíso,
que não é medida humana, o que para ti
sonhei. Só quis que a terra fosse limpa,
nela pudesses respirar desperto
e aprender que todo o homem, todo,
tem direito de sê-lo inteiramente
até ao fim. Terra de sol maduro,
redonda terra de cavalos e maçãs,
terra generosa, agora atormentada
no próprio coração; terra onde teu pai
e tua mãe amaram para que fosses
o pulsar da vida, tornada inferno
vivo onde nos vão encurralando~
o medo, a ambição, a estupidez,
se não for demência apenas a razão;
terra inocente, terra atraiçoada,
em que nem sequer é já possível
pousar num rio os olhos de alegria,
e partilhar o pão, ou a palavra;
terra onde o ódio a tanta e tão vil
besta fardada é tudo o que nos resta,
ou aos chacais, que do saber fizeram
comércio tão contrário à natureza
que só crimes e crimes paria.
Que faremos nós, filho, para que a vida
seja mais que cegueira e cobardia?

11-3-84

Em: Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa [1940-1986], 3.ª edição aumentada, II volume, Círculo de Leitores, 1987, pp. 47, 48. 

A resistente Alda Nogueira, professora n’A Voz do Operário


Resistência

Alda Nogueira foi uma das mulheres que mais se destacaram na resistência à ditadura de Salazar. Por isso esteve presa, durante 9 anos da sua vida, no Forte de Caxias.

Pouco tempo depois do 25 de Abril, Alda Nogueira contou que tinha sido professora d’A Voz do Operário.

Aconteceu no período a seguir a terminar o curso, na Faculdade de Ciências, em 1946. E antes de passar à clandestinidade, em 1949.

Disse ela: “Logo a seguir à minha formatura ainda exerci a minha profissão como professora legal na Escola Industrial Alfredo da Silva, no Barreiro, na Voz do Operário, [em Lisboa, e noutra escola], em Olhão” [Melo (1975), p.178].

Palavras diferentes

Mais recentemente, tem sido divulgada uma ‘informação’ da PIDE, de que Alda Nogueira deu aulas num suposto “Externato Comercial da Voz do Operário”.

Na história da resistência em Portugal, esta é precisamente uma das mais abundantes fontes de equívocos: a propensão a reproduzir-se, de forma acrítica, as ‘informações’ da polícia política. Sem o elementar cruzamento com outras fontes. E repetindo a sua terminologia, os seus conceitos.

Como se a PIDE fosse um modelo historiográfico de rigor científico e de respeito pela verdade…

Para além dos problemas levantados pela sua função repressiva, por exemplo na manipulação de interrogatórios e respectivas transcrições, importa ter presente a sua função ideológica, difusora de determinados “valores”. Essa função que Althusser assinalava estar presente em todos os “aparelhos de Estado”.

O que a PIDE chamou de “externato” era o curso comercial d’A Voz do Operário.

E estas palavras fazem diferença. Porque A Voz do Operário não é, nunca foi, uma vulgar escola privada, com fins lucrativos.

É um projecto colectivo, desde a origem norteado por fins de solidariedade e igualdade social. E com a identidade de classe que o seu nome expressa.

Em 1948

A contratação de Alda Nogueira ficou registada na reunião da direção d’A Voz do Operário de 17 de Março de 1948. Foi admitida para substituir outra professora, a meio do ano lectivo.

Era uma jovem com 25 anos de idade. Mas já era uma assumida opositora à ditadura de Salazar.

Em 1945, aderiu ao Movimento de Unidade Democrática (MUD) – que a ditadura ilegalizou em menos de dois anos.

Em 1947, proferiu uma conferência versando a mulher e a ciência, no âmbito de uma exposição sobre livros escritos por mulheres. Um evento que, de tal forma incomodou o regime, que este resolveu encerrar a associação promotora – o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas.

Além dessa, Alda Nogueira estava envolvida na Associação Feminina para a Paz. Outra que acabaria encerrada pelas autoridades, 4 anos depois.

E, desde 1942, que era militante do Partido Comunista Português (PCP) – este ilegalizado logo em 1927, nos primórdios da ditadura.

Quando deu aulas n’A Voz do Operário, Alda Nogueira era uma das três responsáveis pelo “setor de mobilização e organização das mulheres comunistas”. Um organismo que “trabalhava à escala nacional”, em “movimentos democráticos associativos, recreativos, desportivos, etc” [Melo (1975), p.177].

E depois?

Um ano depois de dar aulas n’A Voz do Operário, a professora Alda Nogueira abdicou da sua carreira profissional, para se consagrar à resistência que o seu partido movia contra a ditadura.

Passou a viver na clandestinidade e veio a ser uma das primeiras mulheres no comité central do PCP. Com um papel dirigente que não se limitou a tratar apenas de questões estritamente femininas.

Há testemunho de que foi responsável pela estrutura do PCP entre os empregados bancários e dos seguros [Samara (2019), p.42].

E pode verificar-se o conjunto de 5 artigos que publicou na revista teórica do seu partido, entre 1954 e 1958. Os quais assinou com o pseudónimo «Lídia« [PCP (2023), p.9].

O primeiro versou sobre “a mobilização e organização das mulheres”. Os dois seguintes abordaram o papel dos intelectuais e dos católicos na luta contra a ditadura.

No quarto artigo, sobre o 20º Congresso do PC da URSS, expressou uma visão crítica do stalinismo, ou “culto da personalidade de Stáline”, como então foi designado. E no último artigo, publicado em Março de 1958, analisou o “momento político nacional”, perante as pseudo-eleições presidenciais que a ditadura iria encenar, nesse ano.

Até que, como aconteceu a milhares de pessoas, Alda Nogueira foi presa pela PIDE. Mas poucas mulheres foram sujeitas a tão longos anos de cárcere em Portugal, por motivos políticos.

Em liberdade

Derrubada a ditadura, voltou-se a ouvir a voz de Alda Nogueira n’A Voz do Operário.

Em Abril de 1976, participou, aqui, num evento do PCP, no qual defendeu a necessidade de serem “criadas condições sociais, económicas e outras, assim como estruturas (creches, jardins de infância, cantinas, etc.) que facilitem a vida das mulheres trabalhadoras”.

Também apelou à memória histórica. Recordou os governos da ditadura, que “entoavam loas à família. Mas que fizeram eles na prática? […] toda a sua política de discriminação, obscurantismo, opressão e super exploração mais não fez que agravar a insegurança, a coesão e a harmonia da família e, em especial, das famílias trabalhadoras” [O Diário, 09/04/1976, p.12].

Luís Carvalho - Investigador

Este artigo foi originalmente publicado no Jornal "A Voz do Operário" a 4 de Novembro de 2025