terça-feira, 22 de novembro de 2022

HOMENAGENS E OUTROS EPITÁFIOS - EUGÉNIO DE ANDRADE

AO MIGUEL, 

NO SEU 4.º ANIVERSÁRIO, 

E CONTRA O NUCLEAR, NATURALMENTE

Vais crescendo, meu filho, com a difícil

luz do mundo. Não foi um paraíso,

que não é medida humana, o que para ti

sonhei. Só quis que a terra fosse limpa,

nela pudesses respirar desperto

e aprender que todo o homem, todo,

tem direito de sê-lo inteiramente

até ao fim. Terra de sol maduro,

redonda terra de cavalos e maçãs,

terra generosa, agora atormentada

no próprio coração; terra onde teu pai

e tua mãe amaram para que fosses

o pulsar da vida, tornada inferno

vivo onde nos vão encurralando

o medo, a ambição, a estupidez,

se não for demência apenas a razão;

terra inocente, terra atraiçoada,

em que nem sequer é já possível

pousar num rio os olhos de alegria,

e partilhar o pão, ou a palavra;

terra onde o ódio a tanta e tão vil

besta fardada é tudo o que nos resta,

ou aos chacais, que do saber fizeram

comércio tão contrário à natureza

que só crimes e crimes e crimes paria.

Que faremos nós, filho, para que a vida

seja mais que cegueira e cobardia?

11-3-84

Em: Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa [1940-1986], 3.ª edição aumentada, II Volume, Círculo de Leitores, 1987, p. 47/8